Inclusão LGBT+: anunciantes e agências encaram novos desafios
Apesar da crescente incorporação da agenda da diversidade nas estratégias corporativas, ainda há lacunas na inclusão plena da comunidade
Inclusão LGBT+: anunciantes e agências encaram novos desafios
BuscarApesar da crescente incorporação da agenda da diversidade nas estratégias corporativas, ainda há lacunas na inclusão plena da comunidade
Michelle Borborema
28 de junho de 2024 - 13h51
As empresas já adotaram as siglas: Diversidade e Inclusão (D&I), Diversidade, Equidade, Inclusão e Pertencimento (DEIP), Governança Ambiental, Social e Corporativa (ESG). Contudo, apesar do crescente interesse e da incorporação dessas pautas nas estratégias corporativas por diferentes razões — algumas nem sempre consistentes –, muitas companhias ainda não estão preparadas para a inclusão plena de pessoas LGBTQIAPN+.
Na indústria da publicidade, não é diferente. Diante da predominância histórica de lideranças masculinas e dos ambientes normativos de trabalho, os desafios têm aparecido após movimentos significativos, nos últimos anos, de contratação, discursos e campanhas voltados para a comunidade. Johana Quintana, head de People & Cultura na Soko, entende que, apesar da percepção de recuo na agenda de diversidade e inclusão das agências, a pauta está avançando no mercado publicitário, mas passa por uma espécie de “ressaca”.
“As agências e empresas com pessoas diversas começaram a aparecer, mas ainda não sabemos resolver as consequências disso. Não adianta mudar todas as pessoas e não mudar nossa forma de trabalhar, que foi criada, concebida, pensada e testada para corpos iguais aos de homens, brancos, cis, héteros e normativos. Não funciona para uma mãe, para uma pessoa negra e nem para uma pessoa LGBTQIAPN+”, avalia.
A Soko é uma das 14 agências fundadoras do Observatório da Diversidade na Propaganda (ODP), que recentemente organizou um censo para entender o cenário de diversidade e inclusão nas agências e definir estratégias e metas de mudança. Com gestão da Kairós, o projeto concluiu que 24% do quadro geral de colaboradores das agências de publicidade são LGBTQIAPN+.
Em setembro do ano passado, o ODP divulgou 36 metas que devem ser cumpridas ao longo dos próximos cinco anos, organizadas em quatro blocos: contratação de talentos diversos; diversidade no casting e cadeira de fornecedores; retenção e desenvolvimento; e cultura organizacional. O objetivo é impulsionar a representatividade na publicidade brasileira e tornar as agências mais inclusivas como reflexo da demografia do país, e não da sub-representação dela.
Apesar dos avanços no mundo corporativo, o problema ainda começa, muitas vezes, pelo processo de contratação de talentos diversos. Quando o recorte são as mulheres trans e travestis, por exemplo, 90% delas atuam como profissionais do sexo como fonte primária de renda, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), e apenas 4% estão no mercado de trabalho formal. Um dos motivos por trás desses dados é simples, embora devastador: muitas empresas ainda não se dispõem a contratar essas profissionais ou reter esses talentos.
Segundo levantamento da AlmapBBDO e do Instituto On The Go, 80% das pessoas trans enfrentam discriminação nos processos seletivos de emprego. O cenário afeta a autoconfiança desse público na carreira. De acordo com a TransEmpregos, plataforma de contratação exclusiva para trans e travestis, frequentemente as pessoas usuárias da solução têm um currículo aderente a uma vaga e, mesmo assim, não confiam em si mesmas. Isso porque, durante muito tempo, se candidataram para uma posição e nunca foram chamadas para uma primeira conversa.
Quando esse grupo é contratado, novas barreiras se iniciam. Ainda de acordo com a Antra, o Brasil é o país que mais mata transsexuais no mundo, e o ecossistema de violência contra esse público cria muitas dores nesses profissionais, gerando, com frequência, dificuldades que precisam ser notadas e assistidas pelas empresas.
“O desemprego, o abandono escolar e a baixa expectativa de vida dessas pessoas trazem muitas inseguranças para o dia a dia de trabalho delas. É uma vivência muito particular desse grupo”, diz Johana.
Por isso, a executiva alerta para a importância de não olhar para a comunidade LGBTQIAPN+ de maneira generalizada na hora de pensar na atuação em diversidade e inclusão, mas para a particularidade de cada grupo da sigla. “São muitas letras, então há várias especificidades nessa comunidade. Não conseguimos, dentro da agência, pensar em uma estratégia para um grupo gigante de pessoas com perfis completamente distintos entre elas. São vários universos nessa população.”
Na Soko, eles mapeiam as dores da comunidade como um todo, mas também de cada grupo, sobretudo das pessoas trans. Além disso, contemplam interseccionalidades. Segundo Johana, as necessidades de mulheres lésbicas negras são muito distintas das de homens gays brancos, por exemplo, ou de mulheres trans negras, e isso deve ser avaliado em definições de planos de ação e metas.
O alinhamento das companhias à agenda ESG parece um caminho sem retorno diante da exigência cada vez maior dos consumidores e dos investidores, que têm avaliado a reputação das empresas com metas ambientais, sociais e de governança. Do crescimento de tal demanda têm surgido muitos índices e certificações no âmbito da diversidade e inclusão.
De acordo com levantamento recente da terceira edição da pesquisa Human Rights Campaign Foundation, por exemplo, o Grupo Reckitt obteve nota máxima como melhor empresa para pessoas LGBTQIAPN+. A companhia também tem certificação Global Equality Standard (GES), da Ernst & Young.
Para Nayran Cabral, gerente de comunicação interna e D&I da Reckitt Comercial, são muitos os desafios, ações e metas para chegar lá, da cultura interna à comunicação. “Um dos desafios é garantir que nossas políticas e práticas sejam constantemente atualizadas e alinhadas com as melhores práticas globais. Estamos nos lares de diversos brasileiros e brasileiras. Por isso, nossas marcas têm a diversidade como premissa básica para parcerias, propagandas e demais materiais de divulgação.”
Uma mudança recente das marcas do grupo no Brasil é a adoção de linguagem inclusiva nas embalagens dos produtos Olla e Jontex. Já internamente, a empresa conta com políticas internas como comitê de D&I, cartilha focada na agenda e programa de família para a comunidade LGBTQIAPN+. A educação dos funcionários sobre a importância da diversidade também é uma premissa.
O grupo, que declara ter mais de 12% do quadro de funcionários LGBTQIAPN+, realiza uma pesquisa anual com o público para garantir que todos se sintam seguros e confortáveis para serem quem são. Para avaliar o progresso das políticas e ajustar rotas, a empresa promove reuniões frequentes entre lideranças locais e grupos de afinidade.
Uma agenda corporativa sólida de diversidade e inclusão, aliás, só é possível com lideranças diversas e comprometidas com a pauta. Para Johana Quintana, o board da Soko faz toda a diferença na formação da cultura da agência de priorização do tema.
“Nosso fundador [Felipe Simi] começou a Soko com um pensamento de D&I muito bacana e evoluído para o nosso mercado. Todos os líderes trazem esse olhar, mesmo com nossos privilégios e dificuldades.”
Ariel Nobre, diretor-executivo do ODP, acrescenta: “É ilusório pensar que uma liderança 100% cisgênera terá a sensibilidade necessária para compreender os desejos e necessidades dessas pessoas”.
Hoje, no Brasil, 16% das lideranças de agências de publicidade são LGBTQIAPN+, de acordo com o censo realizado pela entidade. Do total de líderes, 88% são pessoas brancas e apenas 4,6% são mulheres negras.
Uma das reflexões de quem trabalha para impulsionar a empregabilidade LGBTQIAPN+ é em torno da importância de se atuar na comunidade trans, sobretudo por ser a mais vulnerável. Para Ariel, esse é um dos muitos desafios da indústria na pauta.
“Contribuir para a empregabilidade LGBTQIAPN+ significa, principalmente, contribuir para a empregabilidade trans, que é mais vulnerável e precisa de prioridade.”
Enquanto o ODP tem a meta de assegurar 1% de profissionais trans dentro do mercado de agências até o final de 2024, entre os anunciantes, a Tim, que acaba de conquistar a certificação da Great Place to Work como empresa brasileira que desenvolve práticas inovadoras para o acolhimento de profissionais LGBTQIAPN+, tem um olhar estratégico para a comunidade de pessoas transgênero e travestis.
“Triplicamos a representatividade de pessoas trans desde o lançamento do Transforma Tim, programa de contratação desse público, com vagas dedicadas e bolsa de graduação custeada pela empresa”, diz Maria Antonietta Russo, vice-presidente de recursos humanos da Tim Brasil.
Com um trabalho de diversidade e inclusão considerado bem estruturado pela Tim desde 2019, Antonietta avalia que o maior desafio é manter a segurança e o acolhimento da comunidade, além de desenvolver a carreira dessas pessoas.
“Com a evolução da nossa maturidade no tema, o desafio diário é manter esse ambiente seguro e acolhedor, eliminando vieses e tratando qualquer desvio ao que acreditamos, mantendo ações de comunicação e treinamento, mas garantindo a construção de confiança e a inclusão genuína nas relações interpessoais. Também temos direcionado esforços a programas de desenvolvimento e aceleração de carreira para as pessoas LGBTQIAPN+.”
A empresa investe ainda em benefícios para a comunidade e ações de inspiração, pertencimento e engajamento. “Nosso público LGBTQIAPN+ recebe consultoria jurídica e financeira para temas da comunidade, assistência gratuita para casos de LGBTfobia no ambiente de trabalho, apoio psicológico gratuito e especializado, assistente social para atendimentos, inclusão e alteração no nome social, além de folgas remuneradas para pessoas em transição de gênero.”
Neste mês de julho, a Tim anunciou o lançamento do programa Carreiras de Orgulho, projeto interno de desenvolvimento pessoal e profissional de pessoas LGBTQIAPN+. Trata-se de uma trilha de formação sobre empoderamento, competências técnicas como gestão de projetos e marca pessoal, além de conteúdo sobre a história de luta das comunidades.
Apesar dos cases bem-sucedidos e dos índices criados, para Ariel Nobre, ainda há muito a ser feito em todo o ecossistema da publicidade, e as metas do ODP estão aí para isso. “Sinto que as pessoas estão muito satisfeitas com a diversidade que existe hoje no mercado. Entretanto, ainda não está bom. Temos muito trabalho para fazer, principalmente na inclusão da comunidade LGBTQIAPN+ negra e da comunidade trans em cargos de liderança no nosso setor.”
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