Linguagem neutra na comunicação: utopia ou realidade?
As crescentes discussões sobre realidades não-binárias têm desafiado as marcas a repensar sua responsabilidade na construção de gênero
Linguagem neutra na comunicação: utopia ou realidade?
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Lidia Capitani
16 de julho de 2024 - 15h40
Há doze anos, Pri Bertucci se reconheceu como uma pessoa não-binária, muito antes desse conceito virar pauta nas redes sociais. O entendimento veio do seu contato com os estudos queer nos Estados Unidos. “Naquela época, ninguém sabia o que era ser não-binário, então percebi a necessidade de criar pontes entre os mundos”, diz. Assim, entre 2009 e 2011, Pri fundou a consultoria [Diversity BBox] e criou o Instituto [SSEX BBOX] como uma maneira de impulsionar essas discussões para o público brasileiro. “Como pessoa não-binária, precisava de visibilidade e reconhecimento, além de explicar que isso é um movimento global”, responde Bertucci, Diretore do instituto.
Por meio dos seus estudos sobre linguagem neutra, Pri desenvolveu o Sistema Ile, em que propôs o uso do “e” como neutralidade na gramática portuguesa e dos pronomes “ile/dile” para se referir a pessoas não-binárias. “Isso permite nomear pessoas que não se encaixam nos padrões binários de gênero, como ‘todes’. É importante porque se você não sabe que algo além de homem e mulher existe, nunca vai nomear isso”, afirma.
Uma pessoa não-binária é alguém que não se identifica como homem ou mulher, seja nascido com o sexo masculino, feminino ou intersexo, e que opta por não aderir às normas cis-heteronormativas. Também é importante ressaltar que uma pessoa não-binária não necessariamente será aquela que adere à uma aparência andrógina, como usar barba e pintar as unhas. “Isso seria apenas uma expressão de gênero andrógina, não uma identidade não-binária. É importante distinguir entre como alguém se veste e se expressa e como essa pessoa se identifica internamente”, explica Bertucci.
Com o tempo e a popularização desses conceitos, a linguagem neutra teve grandes avanços em sua adoção, passando a ser usada por organizações, empresas e até mesmo governos. Como por exemplo, durante a posse do mais recente governo Lula, o presidente usou a expressão “todes” em seu discurso, ato que teve grande repercussão midiática.
Entretanto, essa maior disseminação da linguagem neutra não ocorreu sem reações contrárias. “Por exemplo, tivemos um projeto de lei em São Paulo que visava acabar com a diversidade sexual na publicidade”, lembra Marcelle Felix, pesquisadora do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ações Afirmativas (GEMAA) do IESP. “Acredito que há receio e preocupação do mercado, especialmente nesse segmento mais reacionário”, afirma.
Até mesmo dentro do movimento LGBTQIAP+ surgiram respostas contrárias. “Nessa construção da linguagem neutra no Brasil, enfrentamos resistências de ONGs estabelecidas que só reconhecem transexuais e rejeitam a não-binariedade. Houve cancelamentos e perseguições, inclusive de pessoas trans, contra nosso trabalho”, diz Pri.
A comunicação e a publicidade também são responsáveis por criar e reforçar padrões e normas de gênero. Em sua pesquisa, Marcelle analisa as representações de gênero e raça na publicidade ao longo dos anos e avalia como a binariedade é expressada em campanhas. “A mulher continua sendo muito associada à preocupação com a aparência, à família e à fragilidade. Enquanto isso, percebo que a visão do homem se tornou um pouco mais plural, mas a lógica da masculinidade ainda é muito presente”, avalia Felix.
Apesar dos avanços, como a cada vez mais frequente representação das mulheres em espaços profissionais e a maior pluralidade de papeis incorporados por homens, os retratos dos gêneros ainda são muito padronizados. “Isso também afeta a lógica do não-binarismo, pois cria uma visão muito achatada da experiência das pessoas que não se identificam nem com o masculino nem com o feminino”, reflete Marcelle.
Existe certa confusão entre o que é a linguagem inclusiva e a linguagem neutra. Segundo o guia “Comunicação Inclusiva” da Gestão Kairós, a linguagem inclusiva é “aquela que busca o uso da língua sem expressões preconceituosas, ofensivas, excludentes para grupos e identidades, ou que possa representar um atentado à igualdade e ao respeito à dignidade humana”.
Já a linguagem neutra “visa respeitar os pronomes de todes”, explica o Manifesto Ile. “Perguntar os pronomes de alguém e não usar um gênero específico ao falar com essa pessoa são sinais de acolhimento, empatia e respeito”, continua o texto. Ou seja, as linguagens inclusiva e neutra são complementares.
A língua portuguesa tem a regra de generalizar grupos de pessoas no masculino, o que pode ser excludente tanto para mulheres quanto para pessoas não-binárias. “Isso remonta a uma ideia machista e sexista da língua, datada do século 19, quando se decidiu que o masculino deveria prevalecer por ser considerado mais nobre. Essa ideia persiste sem que muitas pessoas tenham consciência de sua origem e impacto”, explica Bertucci.
Inclusive, Pri destaca como línguas ancestrais, pré-colonização, tinham variações neutras. “Por exemplo, povos indígenas nos Estados Unidos reconheciam Two Spirits, que eram pessoas queer e LGBTQIAP+, já tinham conceitos de linguagem neutra incorporados em suas línguas. No Brasil, línguas como o tupi também não seguiam os mesmos conceitos binários de gênero que foram impostos pela colonização.”
Reconhecer essa história apagada da língua também é importante para entender que a não-binaridade e a linguagem neutra não são novidades e que, na verdade, a língua está em constante construção e transformação. “A questão é quem tem o poder de inventar palavras que incorporam identidades não-binárias e não brancas”, reflete.
Com a consultoria em diversidade, Pri Bertucci trabalha com marcas na adoção da linguagem neutra em suas comunicações. Já fizeram projetos para clientes como Serasa, Uber, Salesforce, TikTok e LinkedIn. “Nosso objetivo é tornar mais acessível o aprendizado sobre esse tema, usando tecnologia para ajudar as empresas a se adaptarem e prosperarem na inclusão de pessoas não-binárias”, afirma.
Entre seus produtos, a consultoria criou o Diles+, que funciona como um Google Tradutor de linguagem neutra. A ferramenta usa tecnologia de processamento de linguagem natural para adaptar textos e torná-los mais acessíveis, inclusivos e neutros.No ano passado, durante o Innovation Festival 2023, que aconteceu no espaço Cubo Itaú, em São Paulo, a Diversity Bbox lançou a RIE, primeira inteligência artificial não-binária e inclusiva do mundo. A tecnologia pretende ensinar a linguagem neutra em português para empresas. “Essa IA é uma alma digital que carrega meu livro e toda a pesquisa, respondendo perguntas sobre diversidade, equidade e inclusão”, destaca.
De modo geral, algumas empresas têm adotado algumas práticas, misturando a linguagem inclusiva com a neutra. Por exemplo, retirando o gênero das sentenças e utilizando palavras como “pessoa” ao invés de flexionar o gênero. “Ao invés de ‘bem-vinde’, podemos dizer ‘que bom que você chegou’. Acredito que essa abordagem é uma maneira de incluir sem entrar em conflito com a língua e sem afastar as pessoas da comunicação. No entanto, é essencial comunicar explicitamente essa escolha”, ressalta a head de diversidade e inclusão.
Entretanto, para Pri Bertucci, essa estratégia é inclusiva até certo ponto. “Não adianta usar uma linguagem inclusiva se a pessoa se identifica como não-binária. Nesse caso, é preciso reconhecer seu pronome e identidade de gênero”, afirma. Em sua plataforma, a Diversity Bbox disponibiliza diferentes cursos e conteúdos que informam e discutem esses temas.
No Dossiê da Linguagem Neutra e Inclusiva, a consultoria destaca cinco dicas para a adoção da linguagem neutra. Primeiro, recomenda-se praticar a substituição do “o” e do “a” pelo “e” ao final das palavras, assim como a substituição dos pronomes por “Ile”. Além disso, a plataforma incentiva a normalização da prática de compartilhar os pronomes e perguntar o pronome das pessoas. Por fim, destaca a importância de reconhecer o erro e corrigi-lo com mais naturalidade.
Para além da linguagem escrita, pensar em uma comunicação e, principalmente, uma publicidade não-binária perpassa pela revisão da representação visual dos gêneros “O desafio é como representar pessoas não-binárias de maneira que não se limite aos estereótipos, mas que também incorpore a expressão visual andrógina de gênero. Nem toda pessoa não-binária é andrógina, mas ao explorar a semiótica e mistura de características masculinas, femininas e andróginas, podemos ampliar a representação visual de forma mais inclusiva e reflexiva”, argumenta Bertucci.
A representação de corpos fora dos padrões e de outras expressões de gênero não-binárias é também uma resposta às demandas sociais por novas representações. “Dados mostram que campanhas com corpos diversos, diferentes dos padrões habituais, têm obtido resultados melhores ou significativamente diferentes das campanhas tradicionais que seguem padrões binários”, relata Debora Moura, head de diversidade e inclusão da Artplan e do Grupo Dreamers.
De acordo com um estudo da Deloitte de 2023, um terço dos entrevistados deseja mudar para um empregador mais inclusivo com temáticas LGBTQIAP+. Seis em cada 10 acreditam que é importante poder falar sobre sua orientação sexual no trabalho, mas esse número sobe para três quartos em relação à identidade de gênero.
Nesse contexto, a comunicação, seja corporativa ou publicitária, tem um papel importante nessa construção. “Ao colocarmos esse tema na pauta, estamos contribuindo para acelerar essa transformação de maneira mais eficaz e rápida, garantindo que todes compreendam a necessidade desse debate”, destaca Debora.
Entretanto, adotar a linguagem neutra traz grandes desafios, que vão desde a resistência e o preconceito até a falta de clareza sobre os conceitos de identidade de gênero, expressão e orientação sexual. Além disso, existe uma outra barreira que Debora identifica: “A maior dificuldade está em fazer com que isso seja visto como uma prioridade pelas marcas. Cada vez mais as empresas irão perceber que é crucial discuti-lo, porque pouco a pouco teremos mais pessoas não binárias-trabalhando conosco no ambiente corporativo, consumindo e interagindo com as comunicações das marcas. Simplesmente não dá para ignorar essa realidade”, reflete.
Para a executiva, as empresas precisam tomar o primeiro passo, que é colocá-lo em pauta. Depois, a marca poderá medir o impacto dessa comunicação e encontrar soluções para os desafios no meio do caminho. “Quando falamos de linguagem, não há fórmula rápida; é um processo em transformação contínua. Às vezes, não temos total controle sobre isso”, afirma a head.
Ainda existe muito receio por parte das marcas de adotarem tais práticas, visto que esse movimento acaba sendo liderado por empresas mais consolidadas no mercado. Existe, sim, a possibilidade de rejeição da marca pelo público, avalia a head do Grupo Dreamers. “Sempre há o risco de gerar desconforto e críticas, o que pode desencadear conversas negativas e até mesmo atrair haters que não aceitam essa abordagem”, afirma.
“Por outro lado, acredito que isso contribui para um novo olhar, despertando curiosidade e incentivando as pessoas a entenderem o significado por trás dessa transformação”, diz Debora. Logo, cabe à marca se planejar e criar uma estratégia de gestão de crise. “Hoje em dia, a maioria das marcas precisa estar pronta para esses desafios”, continua.
“É uma questão de lidar com esses desafios, tanto com os haters que ignoram a realidade das pessoas não-binárias quanto com os que criticam por questões linguísticas ou por resistência à mudança”, conclui a head.
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