O fracasso genial de Flavia Faugeres
Uma das maiores executivas do Brasil não esconde suas origens, insucessos, conquistas e para onde quer seguir como empreendedora, mãe e mulher
Uma das maiores executivas do Brasil não esconde suas origens, insucessos, conquistas e para onde quer seguir como empreendedora, mãe e mulher
Michelle Borborema
15 de julho de 2022 - 12h26
O fracasso pode ser “genial”? Para Flavia Faugeres, foi justamente uma situação de insucesso que a levou a sair da inércia e trocar um grande cargo em uma das maiores empresas do país por um projeto que alimentava há alguns anos: ser cada vez mais ela mesma. Na carreira, o caminho do empreendedorismo, diz, a levou a gastar energia no lugar certo e procurar fazer o bem às pessoas.
“Quando voltei para o Brasil, a inércia me levou à BRF. Eu não consegui dizer não. E foi um fracasso incrível, porque se você segue na vida por inércia, vai ter que fazer a mesma coisa com uma utilidade marginal pequena. Você passa a não aprender e a não se desafiar mais.”
A decisão de sair da empresa apenas um ano após ter assumido o cargo de presidente no Brasil parece ter sido abrupta, mas veio de um processo longo de amadurecimento que começou aos 40 anos, quando ainda estava no Burger King como CMO global e questionava o que faria para o resto da vida. “Pensava: ‘Sou muito intensa, vou morrer com 80 anos, então estou entrando na segunda metade da minha vida e fazendo a mesma coisa há 25 anos’. Não queria mais dinheiro ou poder, e a única coisa que ainda me dava prazer era ver as pessoas se desenvolvendo.”
Mas a escolha também teve suas motivações corporativas. Quando sentiu que não conseguiria fazer transformações que julgava importantes na BRF, o idealismo deu lugar à frustração. “Foi difícil chegar em um local em que eu teoricamente teria o poder da mudança e me sentir incapaz. Sou sonhadora e me alimento disso, então fiquei muito frustrada de querer melhorar algo e não conseguir. Precisei lidar com minha própria impotência e meus limites.”
Depois que deixou o cargo, em 2016, Flavia conta que passou por dois anos muito difíceis, mas fundamentais. Viajou por todos os continentes, estudou bastante e resgatou suas paixões. Diz ter sido um verdadeiro retorno à juventude, com tudo o que isso representa: “Estava perdida, e isso é bom de vez em quando. Seria fácil aceitar um cargo novo, mas eu não queria. Tive que lembrar quem eu era aos 18 anos, com todas as minhas paixões, para voltar a mim mesma. Quando você passa muito tempo fazendo a mesma coisa, acha que só pode ser aquilo.”
Apesar desse período difícil, a executiva acumula muitos sucessos em seus 30 anos carreira. Na Ambev, foi responsável pelo retorno triunfante de Zeca Pagodinho à propaganda da gigante da cerveja. No Burger King, reposicionou a marca ao lado de Bernardo Hees, o que transformou definitivamente a essência da estratégia de marketing do anunciante e levou Flavia à lista Women to Watch da revista norte-americana Advertising Age em 2012, ao lado de nomes internacionais como Lorraine Chow e Gina Boswell. Ela é poderosa, amiga dos grandes executivos do país e sabe disso, mas parece não se importar muito.
“A maior parte da minha família trabalha em universidades ou em hospitais. Acho que por eu ter vindo desse mundo, acabei indo para o business. Mas como na minha família o que vale é o conhecimento, desde o começo eu nunca fui muito subordinada ao dinheiro e ao poder. Não são valores muito fortes para mim. Sou uma mulher que acredita no mundo e acho que devemos usar cada minuto da nossa energia para fazer algo legal.”
Depois do período sabático de autoconhecimento pós-BRF, a executiva fundou ao lado de Cecília Ivanisk a Learn to Fly, startup de psicologia e educação que ajuda as pessoas a chegarem em suas melhores versões com técnicas socioemocionais, ferramentas de mentoria e autoconhecimento. A plataforma digital já tem clientes como Ambev, Kraft Heinz, Raízen e Quinto Andar.
RESPOSTA NA INFÂNCIA
Ser uma mulher bem-sucedida requer coragem e resiliência. Essa é a resposta básica de qualquer liderança feminina, mas para Flavia existe uma explicação mais profunda e simples para sua trajetória como uma das maiores executivas do Brasil: a vontade e a determinação de ser feliz. Filha única criada nos anos 1970 por uma mãe solo e professora universitária em Sertãozinho, interior de São Paulo, ela diz que tinha tudo para ser desajustada, mas fez do limão uma limonada e decidiu honrar a vida desde nova.
“Como tive uma infância com o estigma de quem não tinha pai e tudo pra dar errado, desde o começo pensei que, se não fosse eu mesma para buscar minha felicidade e as coisas que adoro, não seria ninguém. Eu não era rica, só tinha educação, então não tinha nada a perder. Ou eu me subjugava ao que as pessoas pensavam que eu me tonaria, ou seria feliz”, conta.
Mas, ao contrário do que costuma acontecer, não foi em alguma grande empresa que ela criou as bases para sua solidez. Foi ainda nova, quando a mãe aceitou um cargo para trabalhar na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 1978, e elas se mudaram para Natal. “Acho que foi o momento mais importante da minha vida, porque eu era uma menina muito tímida e ela me mostrou, no fundo, que existiam muitos mundos por aí”, conta. Depois, elas voltaram novamente para São Paulo, quando a mãe passou a dar aula na Unicamp.
Ali começou a história de uma menina forte, apesar dos contratempos. As referências femininas da família ajudavam. “Ao meu redor há histórias de mulheres fortes que nada têm de delicadas. Quando comecei no mundo corporativo, existia uma visão de que as mulheres precisavam ser comportadas e certinhas, mas não sou assim. Sou uma louca, no bom sentido. Aventureira e com muita opinião.”
DA LINGUAGEM MASCULINA PARA A LIDERANÇA FEMININA
Durante muitos anos, Flavia conta que dominar a linguagem masculina do mundo corporativo a alavancou na carreira, mas que ela nunca abriu mão de ser mulher, apesar de reprimir algumas características femininas no início: “Sempre fui perua, tive dois filhos, sou casada há 27 anos, mas no começo ainda havia uma questão nesse sentido”.
Foi a partir dos 35 anos que passou a usar a seu favor o que ela chama de linguagem feminina e conseguiu ser a líder que desejava. “Acho que nós, mulheres, aprendemos desde novas a sermos agregadoras. Podemos ter filhos, colocamos todo mundo junto. Somos afetivas, cuidamos do outro. Antes, isso era feio no mundo corporativo. Eu não podia perguntar para as pessoas se estava tudo bem. Mas é algo muito nosso, e quando comecei a ser assim, criei conexões e visões com uma potência enorme.”
A abertura das empresas para os múltiplos papéis sociais das mulheres também contribuiu para a essa virada de Flavia. “Hoje as boas práticas do universo corporativo têm a ver com características socialmente atribuídas às mulheres. Antes, eram coisas renegadas e rejeitadas. Além disso, agora você não está apenas baseada na identidade do seu papel profissional, como infelizmente aconteceu com muitas mulheres de outras gerações. Você sabe que o mundo não vai acabar se tiver uma crise no trabalho.”
Para a empreendedora, a resposta que encontrou para a boa liderança não foi deixar de ser masculina ou feminina, mas incorporar as características atribuídas às mulheres.: “Não sou mais complacente por isso, mas tenho mais acolhimento, até porque somos treinadas para isso. E em algum momento fui revelando esse meu lado e percebi que meu diferencial era ter, sim, toda a racionalidade e a objetividade atribuída aos homens, mas além disso, ter humanidade”, diz.
CONSUMIDOR REAL, MARCAS E VIRADAS
Flavia conta que, desde a sua entrada no mundo corporativo, percebeu como o que a encantava eram as pessoas, o mundo e as mudanças. Dito e feito: ela sempre esteve à frente de áreas focadas no consumidor, como marketing e inteligência de mercado. Toda a trajetória da executiva, da Unilever à BRF, foi sobre fazer melhores produtos para o que ela chama de “consumidor real”.
“Sempre busquei enxergar não o consumidor ideal, mas o consumidor real. Sempre trabalhei com cerveja e desodorante, sabe? Gosto de gente. Vou a campo, em vendas, falo com negócios. Abraço o consumidor, quero ir à casa dele. Minha paixão sempre foi por gente e pelas curiosidades do mundo, e busquei áreas que eram como janelas de escuta, de interação e de olhar para o futuro. No marketing você tem binóculos e olha para o que vai vir, tentando sempre entender como as pessoas vivem.”
Talvez pela sua história de vida, a executiva diz também que sempre preferiu trabalhar com companhias que estivessem passando por dificuldades e startups, pois é movida pelo desafio e pela curiosidade. “Não gostava de empresas com velocidade de cruzeiro. Quando a coisa está consertada, eu não gosto mais.”
MATERNIDADE E ESCOLHAS
Casada com um francês desde os 23 anos de idade, Flavia aproveitou a vida com o parceiro por dez anos até decidiram ter filhos, apesar do medo assumido. “Achava que junto com o parto viria uma lobotomia e eu ficaria burra. Mas foi transformador, porque, a partir do momento em que você tem filhos, consegue colocar em perspectiva inclusive o trabalho. Então eu fiquei melhor. Quando alguém vinha com uma crise, antes de ter filho eu a achava enorme, mas depois era ‘ok, vamos lidar com isso’.”
Para ela, a maternidade representou um crescimento exponencial como mulher e profissional, mas nem tudo era perfeito: “Tive dois filhos em um intervalo de dois anos. Do ponto de vista físico, nos primeiros quatro anos eu tinha dor no dedinho do pé. Do ponto de vista do foco e de saber o que eu queria, de entender a minha essência com clareza, foi fundamental, porque passei a fazer escolhas na minha vida. Entendi o que eu aceitava ou não, o que me ofendia e o que era essencial.”
Uma das decisões de Flavia durante a maternidade foi deixar um dos maiores cargos na Inbev, o de vice-presidente de inteligência de mercado global, porque não queria uma posição que a deixaria dias longe dos seus filhos. Simples assim: “Foi uma decisão em que eu estava arrasada, mas sabia que era o certo a se fazer. Eu não queria parar de trabalhar, mas não dava para ser daquele jeito”. A executiva foi promovida à VP global quando o primeiro filho tinha um ano de idade, mas pouco tempo depois, quando ficou grávida novamente, escolheu sair.
FUTURO E NOVAS VELHAS PAIXÕES
Quando olha para o momento atual, Flavia, que acaba de voltar de um programa sobre Impacto Social da Universidade de Harvard, diz estar em uma nova fase. Assim como os filhos, que saíram de casa para estudar, ela também quer se dedicar cada vez mais à atividade, considerada por ela uma paixão adormecida há décadas. “Estou muito feliz, porque sou nerd. Passei por um primeiro estágio de abrir novos caminhos e descobrir a Learn to Fly, mas agora estou descobrindo outras coisas também. E não quero e não consigo parar de estudar.”
Ao pensar nos próximos anos, ela diz que o futuro da sua startup é oferecer às pessoas uma verdadeira jornada de bem-estar. “Já temos toda uma parte de mentoria e de autoconhecimento, mas a ideia é que todo dia você possa entender como está e como pode fazer uma intervenção para ficar melhor. No fim do ano, vamos lançar essa jornada diária. Assim como vamos para a academia, devemos fazer ginástica emocional.”
Depois de alguns fracassos e muitas conquistas, Flavia parece estar bem longe da inércia: “Estou na execução do meu negócio, então trabalho ao todo umas doze horas por dia. Mas tenho um propósito: ajudar as pessoas a serem mais felizes.”
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