Baile de máscaras

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Opinião

Baile de máscaras

No baile de máscaras de 2020, espera-se que o ‘novo normal’ também reveja imperfeições e regras anacrônicas do ‘velho normal’


6 de maio de 2020 - 8h34

(Crédito: Panuwat Dangsungnoen/iStock)

A origem etimológica da palavra máscara deriva da italiana maschera. Esta, por sua vez, procede da palavra latina masca — aparência enganosa —, que por seu turno, provém de um vernáculo do pré-indo-europeu masca, originária do sânscrito mákara que se referia ao ornamento que se põe ou veste a cabeça ou ao artefato que torna quem o usa irreconhecível, levando ao engano.

Desde os tempos ancestrais mais remotos, as máscaras serviam nas representações artísticas e serviços religiosos, entre outras coisas, para acentuar os traços de caráter das personagens e deuses que representavam. Dessa forma, assumia assim também o significado da palavra latina ‘persona’, sinônimo do grego prósopon: personagem. No teatro grecoromano, o uso da máscara nomeava o ato ou efeito de o ator, mediante uma abertura no artefato no entorno da boca representar pelo som da sua voz uma personagem.

Nesse incerto e movediço 2020 de pandemia de coronavírus, as máscaras assumiram protagonismo inédito, por um lado dando um novo significado ao seu uso e, por outro, resgatando sua origem semântica. No início de abril, uma nota técnica da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontou que “a utilização de máscaras de proteção impede a disseminação de gotículas expelidas do nariz ou da boca do usuário no ambiente, garantindo uma barreira física que pode auxiliar na mudança de comportamento da população e diminuição de casos”.

Dessa forma, a população foi liberada a produzir suas próprias máscaras caseiras dos mais diversos tecidos e materiais. No novo repertório médico científico a que todos estamos sendo bombardeados e nos tornando experts, ficamos íntimos, por exemplo, das máscaras N95, objeto de desejo em falta no mercado, marca registrada da 3M, uma das empresas que estão nadando de braçada nesses tempos de pandemia com direito à exposição espontânea na mídia diariamente.

Para os profissionais de saúde, o uso de máscaras e dos demais equipamentos de proteção individual (os EPIs), representa a linha divisória entre ser exposto ou não ao vírus devastador. O efeito colateral do uso desses aparatos nos hospitais é a impessoalidade dos contatos desses profissionais com os pacientes, já tão fragilizados pela quarentena e ausência de entes queridos em um momento extremamente difícil.

Diante desse cenário sombrio, há algumas semanas, Robertino Rodriguez, um fisioterapeuta respiratório do Hospital Scripps Mercy, em San Diego, na Califórnia, decidiu colocar uma foto ampliada sua sorrindo sobre sua vestimenta de proteção para que seus pacientes pudessem ver o rosto por baixo das várias camadas de máscaras que usa para trabalhar na UTI. Essa pequena atitude reverberou. Apenas no primeiro final de semana em que postou sua foto no seu perfil do Instagram ganhou mais de 28 mil ‘curtidas’, centenas de comentários carinhosos e influenciou outros colegas a fazerem o mesmo em diversos hospitais nos Estados Unidos. Uma evidência inspiradora de que o uso de máscara como proteção galvaniza o cuidado e a empatia daqueles que fazem seu uso.

No baile de máscaras de 2020, sua utilização não é para enganar nem representar uma personagem, mas para proteger o próximo. Uma inédita abordagem (pelo menos no Brasil) visando o coletivo. Por outro lado, quando alguém sofre um revés implacável de narrativa ou se revela algo que gostaria que ficasse encoberto, diz-se que tal pessoa foi ‘desmascarada’. A Covid-19 trouxe consigo também esse efeito colateral indefectível: algumas máscaras caíram, outras estão desajeitadas em rostos que a pandemia expôs ainda mais suas imperfeições mal-ajambradas e há ainda os que nem chegam a ver nelas algo de valor, simplesmente desprezando-as.

No caso específico do papel das empresas e das marcas nessa crise, há algumas boas surpresas. Algumas máscaras nesse campo importante da sociedade foram forçosamente retiradas e o que se viu, em muitos casos, foram semblantes amistosos, solidários e inspiradores. A histórica mobilização da iniciativa privada e de algumas celebridades em doar recursos financeiros para a Covid-19 no Brasil é a face mais visível desse processo a despeito de alguns empresários ainda estarem buscando o falacioso trade off entre salvação de vidas e salvação da economia.

Até a terça-feira 28, o Monitor das Doações, atualizado diariamente pela Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR), contabilizava R$ 3,8 bilhões para ajudar a combater o coronavírus — valor superior em mais de R$ 1 bilhão ao orçamento mensal do Bolsa Família. A lista consolidada pela ABCR tem 182 doadores e inclui, além das grandes empresas — lideradas pela vultosa doação de R$ 1,2 bilhão do Itaú Unibanco —, nomes de alguns famosos como Galvão Bueno, Gisele Bündchen, Gusttavo Lima, Luciano Huck, Neymar e Xuxa Meneghel.

Diante da pandemia, a comunicação das marcas precisou mudar radicalmente. Apelos consumistas e representações idealizadas e forçadas de bem-estar e felicidade (o exemplo da influenciadora digital sem noção Gabriela Pugliesi é emblemático dessa cultura agora colocada em xeque) deram lugar a vídeos caseiros mostrando situações reais do dia a dia das pessoas confinadas em suas casas e mensagens empáticas. Pesquisa realizada, há poucos dias, pela Kantar mostra que 80% dos consumidores concordam que as marcas devem comunicar seus esforços para mitigar os efeitos da pandemia.

Tal atitude por parte das empresas — que ganhou ainda mais força diante da falta de comando unificado e sensato do governo federal diante da pandemia — fez com que uma regra histórica do manual de jornalismo da Rede Globo fosse flexibilizada. Desde o dia 14, a maior emissora do País exibe o quadro Solidariedade S/A, uma iniciativa editorial que mostra a mobilização das empresas diante da crise do coronavírus. Até então, o veto aos nomes de marcas era praxe no jornalismo global para manter isenção editorial e não dar visibilidade comercial às empresas. A grande dúvida é como essa conduta ficará no cenário pós-pandemia, uma vez que estamos vivendo um estado de exceção, com todos os riscos e disrupções que essa situação provoca.

No baile de máscaras de 2020, espera-se que o ‘novo normal’ também reveja imperfeições e regras anacrônicas do ‘velho normal’. Que as marcas continuem mostrando sua melhor face à sociedade, sem máscaras e sem disfarces, dando espaço ao acolhimento, à diversidade e à inclusão. Afinal, o inimigo invisível deu visibilidade inédita à enorme massa vulnerável da população, que muitos fingiam não existir do alto de suas bolhas de privilégio.

*Crédito da foto no topo: JBKdviweXI/ Unsplash 

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