Mídia

Jornais brasileiros se dividem diante do avanço da IA

Veículos alternam acordos comerciais com plataformas de IA e ações judiciais para resguardar direitos autorais

i 18 de dezembro de 2025 - 10h06

Nos últimos meses, a relação dos jornais brasileiros com as plataformas de inteligência artificial generativa começou a se desenhar de duas formas: pela via do acordo e pela judicial. O Estadão anunciou parceria com o Google cedendo o uso de suas matérias noticiosas para alimentar a base de conhecimento do Gemini. Enquanto isso, a Folha de São Paulo optou por processar a OpenAI por uso indevido de seu contéudo no treinamento e inteligência do ChatGPT. A falta de uma ação coletiva e a queda de tráfego põe em cheque o futuro da relevância das marcas jornalísticas.

Estadão faz parceria com Google e Folha processa OpenAI

Relação entre jornais e IA se desenha por dois caminhos: licenciamento de conteúdo ou disputa judicial (Crédito: Arte M&M)

A mobilização dessas discussões entre veículos jornalísticos teve início nos Estados Unidos e na Europa. Nos Estados Unidos, o The New York Times iniciou um processo contra a OpenAI, mas fechou contrato com a Amazon. Já o Time, News Corp., El País, Le Monde, Associated Press, Axel Springer, Condé Nast, Dotdash Meredith, Financial Times, Future, Guardian Media Group, The Atlantic, The Washington Post e Vox Media firmaram acordos com a empresa. Perplexity, ProData.ai, Amazon e Microsoft também estabeleceram parcerias com publishers.

Por enquanto, a OpenAI não iniciou parcerias com nenhum jornal brasileiro. A empresa afirmou que inaugurará escritório no Brasil ainda este ano. O primeiro acordo de licenciamento de conteúdo no País foi o firmado entre Estadão e Google.

A partir dele, o Google passa a ter acesso ao conteúdo factual do Estadão para auxiliar o Gemini em respostas. A parceria não envolve editoriais, colunas de opinião, artigos de convidados, ou conteúdos de agências e serviços contratados pelo jornal. O contrato prevê compensação, embora os valores não tenham sido revelados.

A iniciativa com o Estadão é parte de um esforço global do Google em fechar parcerias com publishers para explorar como a IA pode aprimorar seus produtos e impulsionar audiências mais engajadas para os veículos. Conforme o sócio-diretor da consultoria Mídia Mundo, Eduardo Tessler, o Google iniciou conversas com demais veículos brasileiros, o que gera expectativa para novos acordos, que devem ocorrer principalmente com jornais regionais, estima Tessler.

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) celebra a parceria entre Google e Estadão. O presidente, Marcelo Rech, reconhece que a via mais eficaz, justa e correta de fazer valer o direito autoral é por via de acordos do tipo a valores justos. “É muito mais lógico e racional fazer o pagamento por um produto do que uma pessoa entrar numa loja e sair furtando aquele produto correndo e o dono da loja ter que acionar a polícia ou a lei para readquirir aquele conteúdo ou ser indenizado por aquele”, argumenta.

Atualmente, as plataformas buscam parcerias com veículos jornalísticos para transmitir confiança aos usuários ao ter informações críveis. A adoção da plataforma é consequência da confiança do usuário na mesma, diz Rech.

Tessler vê a tratativa como um possível tiro no pé do diário centenário, uma vez que o usuário deixa de acessar as páginas do jornal e de assiná-lo para ter acesso ao conteúdo exclusivo. Para ele, o Estadão precisará fazer uma seleção exclusiva de colunistas para justificar a cobrança de conteúdo para assinantes. “Vão matar o negócio das assinaturas e de cliques ao mesmo tempo. Demoraram para se adaptar à lógica digital, agora já precisam pensar em outra saída. Tudo isso em não mais que 20 anos”, complementa.

Para o Rech, é natural que as primeiras tratativas do tipo ocorram com jornais que tenham ou funcionam como agências de notícia, uma vez que as plataformas buscam fornecedores que atendam às demandas do usuário. A expectativa da associação é de que as big techs busquem veículos locais, que agregam alto valor na sua comunidade. “Não sei se isso vai acontecer na velocidade que demanda. Caso não aconteçam, os veículos devem estar preparados ou devem se preparar para eventualmente acionar e reclamar seus direitos na justiça”, diz.

Processo judicial

Esse foi o caminho adotado pela Folha de S. Paulo. A empresa entrou com uma ação judicial contra a OpenAI alegando concorrência desleal e violação de direitos autorais. O veículo acusa a OpenAI de utilizar dados da Folha para treinar o ChatGPT e burlar sistemas de paywall e bloqueio sem autorização e sem o pagamento de qualquer remuneração.

Em julho de 2025, o jornal afirma ter registrado mais de 45 mil acessos ao seu site feitos por GPT bots. A Folha pede indenização pelo uso indevido das publicações e que a OpenAI delete os modelos treinados a partir do acervo do jornal.

A ANJ recomendou aos associados que utilizassem bloqueadores de bots de IA em seus conteúdos e alterassem seus termos de uso para barrar o uso por plataformas de IA, mas viu esse sistema ser burlado. “Mesmo que, em alguns casos, eles não reproduzam a íntegra, eles reproduzem um resumo, uma síntese que, em grande parte, pode ser o suficiente para aquele usuário”, afirma Rech.

A Folha afirma que tentou negociar um acordo com a OpenAI em 2024, mas as conversas não avançaram por falta de retorno da OpenAI.

Na avaliação de Tessler, os publishers teriam resultados mais favoráveis se entrassem com uma ação conjunta contra as plataformas. “Saídas individuais não resolvem. No máximo, reduz a força dos outros – que preferem negociar em grupo”, diz. A via judicial segue incerta, uma vez que o Brasil ainda não aprovou uma regulamentação em relação às big techs ou sobre a inteligência artificial.

O futuro da marca jornalística

Para o executivo, os veículos inocentemente apostaram na perspectiva de que a IA generativa direcionasse mais audiência aos publishers e, por isso, parte liberou o acesso ao seu conteúdo. Agora, correm atrás do dano que já é notado na queda do tráfego em buscadores, de assinaturas e, consequentemente, de receita publicitária.

Ceder o conteúdo às big techs por trás dessa tecnologia pode criar um novo desafio de sustentabilidade para o setor: manter o valor e relevância de suas marcas e conteúdo. “Não existe saída se você vende ou presenteia o que há de mais valioso na empresa: o conteúdo diferenciado. Talvez uma gama maior e mais qualificada de opinionistas e colunistas pode ajudar, mas acho que ainda é pouco. Vai ser o maior quebra-quebra da história do jornalismo. Sobram as pequenas operações de quem explica e analisa uma situação, desde que o custo seja baixo. Uma espécie de influenciador qualificado”, prevê Tessler. Para ele, a ameaça da IA é a maior enfrentada no mercado jornalístico.

A solução é investir na relação direta com o usuário e encontrar caminhos de atingir a audiência que não sejam intermediados pelas big techs donas de buscadores, redes sociais e inteligência artificial.

“Cada vez que o mercado enfraquece, o ecossistema fica menos plural, menos vitalidade econômica, mais cresce a desinformação, mais cresce toda a loucura informativa ou desinformativa que nós assistimos pelo mundo”, pontua Rech.

A exemplo do que ocorre nos Estados Unidos e Europa, para o presidente da ANJ, os veículos jornalísticos devem firmar mais acordos com plataformas de IA diferentes para garantir que seu conteúdo não seja utilizado de forma ilegal. Também haverá novos processos movidos não só por empresas donas de meios de comunicação, como jornalistas autores de reportagens utilizadas para treinamento e respostas de modelos de IA. Além disso, uma política pública deve avançar nas instâncias públicas com diretrizes atualizadas sobre direito autoral.

Procurados, o Estadão e a Folha de S. Paulo não responderam aos questionamentos da reportagem antes da publicação desta matéria.