Mídia

Lobby de big techs atrasam regulamentação, diz CGI.br

Coordenadora do Comitê Gestor da Internet apoia PL 2628/22 e cita desafios para normatizar ambiente digital

i 21 de agosto de 2025 - 8h01

Esta semana, o Roblox recebeu uma ação judicial por uma procuradora-geral nos Estados Unidos por falta de protocolos de segurança para crianças, o que cria um terreno propício para a exploração de crianças por pedófilos. No Brasil, a Advocacia-Geral da União (AGU) notificou a Meta pedindo a exclusão de chats de inteligência artificial (IA) que simulam perfis infantis e que mantém diálogos de cunho sexual com usuários.

Na semana passada, o vídeo “Adultização”, do influenciador Felca, expôs como os algoritmos de redes sociais favorecem a criação de redes de pedofilia e a monetização da imagem de crianças e adolescentes. Diante da repercurssão do vídeo, na noite dessa quarta-feira, 20, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 2628/2022, que ficou conhecido como ECA Digital.

De autoria do deputado Alessandro Vieira (MDB-SE), o texto trata da proteção de menores de idade em redes sociais e impõe às plataformas digitais medidas de maior proteção à crianças e adolescentes.

Como passou por alterações, o texto precisa passar novamente pelo Senado para ser validado. Caso isso ocorra, ele seguirá para sanção presidencial.

 

Renata Mielli

Para coordenadora do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), marcas e agências devem exigir maior zelo das plataformas para evitar a monetização de contéudo abusivo (Crédito: Divulgação)

O projeto prevê regras para a presença de crianças e adolescentes nas redes sociais, como a ampliação da moderação de conteúdo, restrições etárias e verificação parental. As big techs já sofreram pressões regulatórias quando a Netflix lançou a série Adolescência e o Fantástico expôs como a plataforma Discord virou palcopara práticas criminosas.

A discussão, sucitada pelo vídeo “Adultização”, do influenciador Felca, e pelo PL 2628/2022 tem paralelos com a regulamentação das big techs. A Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, apelidada de PL das Fake News (PL 2630/2020), também é de autoria de Alessandro Vieira e visa a regulação das redes sociais e responsabilizar as plataformas pela exclusão de conteúdo inadequado, como criminosos.

Em 2024, o então presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, decidiu criar um grupo de trabalho com o objetivo de formular um texto mais “maduro” para ir ao plenário, pois o texto havia sido polemizado. O projeto não voltou a ser pauta nos órgãos públicos.

Na avaliação da coordenadora do Comitê Gestor da Internet, Renata Mielli, o tema da proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital caminha com a regulamentação das big techs. Porém, os entraves para a aprovação de uma legislação adequada são vários, entre eles um lobby organizado pelas empresas de tecnologia e grupos políticos que se beneficiam das plataformas para divulgar notícias falsas.

“Temos visto, desde a semana passada, uma atuação coordenada das empresas de tecnologia, mais uma vez procurando impedir o avanço de uma legislação pra regular seus serviços, ainda que seja uma regulação com o escopo mais restrito, com foco na infância e adolescência”, diz.

Confira a entrevista completa:

Meio & Mensagem – O impacto gerado pela discussão sobre a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital será mantido, ou a discussão pode perder força?

Renata Mielli – É difícil cravar uma resposta. Mesmo fatos que impulsionam o debate sobre regulação de plataformas, criam uma mobilização imediata e, por uma série de elementos, ela perde tração. O problema é que nós temos visto, desde a semana passada, uma atuação coordenada das empresas de tecnologia, mais uma vez procurando impedir o avanço de uma legislação pra regular seus serviços, ainda que seja uma regulação com o escopo mais restrito, com foco na infância e adolescência. Temos visto denúncias, emendas protocoladas por parlamentares que foram escritas pelas empresas. Não sejamos ingênuos. Essas empresas não se mobilizam nem pela proteção da infância e adolescência, porque elas ganham dinheiro com esse tipo de conteúdo também. Nós vamos conseguir avançar e aprovar esse projeto no âmbito do Congresso Nacional? Eu diria que, em condições normais de temperatura e pressão, sim, mas num contexto onde temos esse lobby pesadíssimo das empresa e uma bancada de parlamentares muito vinculado ao uso das redes, em que o ambiente não regulado lhes privilegia com a distribuição de deep fakes e impulsionamento sem parâmetro para distribuir discurso de ódio.

M&M – Por que o projeto do Alessandro Vieira é o que mais avançou no Senado e na Câmara até então se já existiam cerca de 30 projetos submetidos sobre o assunto antes do vídeo do Felca?

Renata – O Alessandro Vieira também é o autor do 2630/20. Na época, ele foi muito aberto ao diálogo com o setor privado, com a sociedade civil, sobre os o mérito e o conteúdo do 2630. Ele teve uma curva de aprendizagem sobre os temas digitais. É um projeto maduro. Muitos dos aspectos do projeto foram consensuados. Isso ajudou com que esse novo projeto se tornasse um projeto sério, com rigor conceitual nas suas definições, que que busca tratar o problema da regulação com o recorte da infância e adolescência, dialogando com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Quando você tem um projeto de lei que tem consistência, ele acaba ganhando mais tração. E ele tem uma vantagem, que é o escopo de proteção da infância e adolescência. É difícil, dentro do parlamento, ter muita oposição. Por mais que você tivesse outros projetos, os outros não tinham tanta consistência. Só que a Câmara tem uma conjuntura política muito diferente da do Senado. As  grandes empresas prestam atenção quando o projeto chega na Câmara. Aconteceu do mesmo jeito no PL nº 2630/2020 (apelidado de PL das Fake News). Ele foi aprovado no Senado. Mas as empresas privadas atuaram na véspera de pautar a urgência e mérito. É nesse intervalo curto que elas usam todo o seu poder de intervenção. O PL  teve muitas audiências públicas. O deputado Jadiel, que foi relator, ouviu muita gente, absorveu muitas contribuições. Essa é a razão pela qual este projeto se destacou em detrimento de outros.

M&M – Alguns deputados afirmaram que não vão votariam no projeto se houver algum tipo de censura. Como avalia essa postura?

Renata – É uma postura absurda e que já começa a despertar um certo desconforto na sociedade. O fantasma da censura é sempre ressuscitado quando você quer discutir temas relacionados à regulação de ambientes que estão diretamente ligados ao debate público. A questão é que a sociedade quer regulação, porque a sociedade já percebeu que uma parte importante dos conteúdos que viralizam, que ganham alcance, são conteúdos é tóxicos. A liberdade de expressão tem uma dimensão individual, que é aquela de eu ter a possibilidade de expor as minhas opiniões sem constrangimento. Mas ela tem uma dimensão coletiva, na qual eu coloco limites da dimensão individual, porque não é tudo que eu acho e que eu penso que eu posso dizer publicamente. Os direitos fundamentais não são hierarquizáveis, eles são interdependentes. A sociedade começa a perceber que esse discurso de censura é um discurso hipócrita. É muito difícil você sustentar, perante o conjunto da sociedade brasileira, que regular um ambiente digital para proteger crianças e adolescentes é censura. Como pode ser censura? Vamos liberar geral conteúdos de exploração da imagem da criança, conteúdos que colocam a criança em contextos de exploração sexual, pedofilia? É sobre proibir esse tipo de conteúdo de circular e responsabilizar as plataformas. Eles vão continuar usando essa retórica hipócrita que tem como objetivo, no fim, impedir a regulação.

M&M – Como traçar o limite da exposição saudável e do risco?

Renata – Tem uma discussão que é regulatória e que nós estamos fazendo no âmbito do Congresso Nacional, do governo. O CGI apresentou os seus 10 princípios pra regulação da rede social. Agora, nós também precisamos compreender que isso não é suficiente. Para proteger vulneráveis no ambiente digital, ao lado da regulação, precisamos de outras iniciativas. Primeiro, uma reflexão mais profunda da sociedade sobre o próprio modelo de negócios que essas empresas estabelecem e que acaba impondo um comportamento digital. A sociedade naturalizou a exposição sem freios da sua intimidade, do seu cotidiano. É um debate sobre literacia digital. Também estamos numa sociedade que tem uma profunda miséria e pobreza. O pai, a mãe, o familiar, não acha que está colocando o filho numa condição de erotização. As pessoas não têm essas informações. Há muitos mecanismos. Então, por exemplo, se você quer colocar o seu filho ou sua filha pequena na sua rede social, coloque no modo privado. Escolha muito cirurgicamente o contexto que você vai usar. Não monetize conteúdo com crianças e adolescentes. Isso não é uma discussão simples em um contexto de vulnerabilidade social, onde as pessoas usam esse dinheiro porque estão em condições de empregos precários. Como fazer com que essas informações, esse debate, chegue para um público muito mais amplo? Esse é um fardo muito pesado para você colocar sobre famílias. 80% das famílias brasileiras são trabalhadores que saem cedo de casa, que não tem com quem deixar seus filhos, que não tem equipamentos públicos de esporte e lazer, e o celular acaba sendo uma opção aparentemente fácil e sem risco. Como enfrentar essa discussão? A regulação vai até uma parte deste problema.

M&M – Essa discussão acelera, de alguma forma, a discussão sobre regulamentação das big techs no Brasil os temas deveriam ser tratados como assuntos separados?

Renata – Eu espero que sim, que avancemos na aprovação de uma legislação que seja eficaz para a proteção das crianças e adolescentes, mas que, uma vez aprovada essa legislação, abra caminhos para que possamos dar mais força para o debate de regras mais abrangentes para essas empresas. Há determinados mecanismos regulatórios que estão previstos para a infância adolescente, mas que servem para tudo, como transparência. Esperamos conseguir abrir um precedente em relação a isso. O PL 2630 está na Câmara. O deputado Arhur Lira, quando estava na presidência da Câmara, designou uma nova subcomissão para o PL. Essa subcomissão nunca foi exatamente instalada. E ele está num limbo legislativo. Por outro lado, o governo deve apresentar nos próximos dias o projeto que foi elaborado internamente a partir do trabalho de um grupo interministerial, que foi formado pra apresentar uma proposta de regulação. Não sei como vai ser a tramitação legislativa disso: se esse projeto vai e os outros se apensam a ele. É muito cedo para dizer o que vai acontecer.

M&M – Qual o papel das marcas e agências nesse assunto?

Renata – O debate sobre publicidade no ambiente digital, principalmente em plataformas, é um debate que nós ainda não conseguimos aprofundar com a devida atenção. O mercado publicitário não necessariamente escolhe o conteúdo junto ao qual ele vai veicular seu anúncio. É diferente do ambiente analógico. No ambiente digital, ocorrem os leilões. Há uma série de critérios, de palavras chave que o algoritmo vincula pra veicular uma determinada publicidade. Esse é um tema que mereceria uma maior dedicação, discussão e que exigiria também um talvez uma legislação específica, inclusive com outras regras de transparência. As marcas deveriam buscar negociações com essas empresas para que criassem freios para que as os seus produtos não fossem veiculados em vídeos que usam e exploram a imagem de crianças e adolescentes. Aliás, a publicidade direcionada, direta ou indiretamente, para crianças e adolescentes é proibida pelo ECA. Essas plataformas não estão cumprindo com essa regra da legislação brasileira. É uma outra caixinha de discussão que precisaria também, sem dúvida nenhuma, ser enfrentada e que as marcas deveriam, de alguma maneira, assumir um protagonismo para que seus produtos não fossem vinculados a esse tipo de exploração de crianças e adolescentes no ambiente digital.