Opinião

A verdade que sustenta a criatividade em Cannes

Trata-se de uma lógica que privilegia a performance da narrativa em detrimento da solidez dos fatos

Ian Black

CoCEO & Partner da New Vegas 5 de agosto de 2025 - 6h00

Eu li a decisão do Cannes Lions de endurecer as regras sobre o uso de inteligência artificial (IA) na produção dos videocases. Já é um grande avanço, mas me parece estar bem longe de ser suficiente. Porque o real desafio que se impõe à nossa indústria – e aos festivais que celebram sua excelência – não está na tecnologia em si, mas na relação e compromisso que temos com a verdade, com os fatos. Ou melhor, com o que escolhemos chamar de verdade.

Sim, a IA pode facilitar distorções. Mas o que ela faz, no fundo, é amplificar e expor uma fragilidade que já estava ali — a permissividade histórica com a ficção travestida de realidade nos materiais de premiação. Adulterar dados, manipular contextos, inventar impactos: tudo isso é anterior aos algoritmos generativos e não depende deles para acontecer. O caso recente, que usou IA para simular reportagens e depoimentos inexistentes, é alarmante. Mas não é inédito. O que mudou foi o recurso. O impulso, não.

Vimos outros casos com agências, campanhas e anunciantes distintos, escancarando o mesmo dilema, mas sem IA envolvida. As dúvidas pairam sobre números de vendas, projeções de mídia espontânea, alcance e repercussão. São os mesmos contornos nebulosos, repetindo o padrão. O problema, portanto, é menos técnico e mais cultural. Trata-se de uma lógica que privilegia a performance da narrativa em detrimento da solidez dos fatos, da veracidade e da transparência.

Ao mirar apenas na IA como vilã, o Cannes Lions corre o risco de tratar a superfície e ignorar a raiz. O que está em jogo não é o uso da ferramenta, mas a ausência de critérios que garantam a integridade daquilo que se pretende celebrar. Ainda hoje, a estética bem montada e a emoção bem dirigida costumam pesar mais do que qualquer evidência concreta. E isso fragiliza o próprio valor simbólico dos prêmios que o festival distribui — talvez mais do que nunca em sua história.

Falta um compromisso claro com práticas de verificação factual. Falta estrutura mínima. Não há comitês técnicos independentes, nem treinamentos adequados para jurados sobre análise de dados e fontes. Não há mecanismos consistentes de auditoria durante a inscrição. Enquanto essas ausências persistirem, a verdade seguirá ocupando um papel secundário — quando não meramente decorativo — no julgamento dos cases.

A comparação com festivais como o Effie é inevitável. Ali, pede-se o que deveria ser óbvio: fontes confiáveis, comprovação rigorosa de resultados, contextualização precisa. Criatividade, nesse cenário, não se opõe à verdade — ela a utiliza como alicerce, como matéria-prima da construção simbólica. Já Cannes ainda parece seduzido pelo brilho da boa história, mesmo quando ela carece de sustentação concreta.

Não se trata de desacreditar o poder das narrativas, mas de lembrar que a integridade também pode — e deve — ser celebrada. Quando a força de uma ideia encontra respaldo no que de fato aconteceu, temos o melhor da publicidade: impacto criativo com legitimidade, relevância e consequência.

O Cannes Lions tem, agora, uma oportunidade rara: liderar uma mudança de cultura. Pode ser o festival que, sem abrir mão da emoção, reconhece que não há verdadeira beleza na criação se ela estiver desconectada da realidade que pretende transformar. Se souber fazer essa travessia com coragem, Cannes deixará de premiar versões idealizadas do mundo — e passará a reconhecer as ideias que realmente moveram alguma coisa nele, para melhor.