Opinião

Você não é fútil; só é humano

O papel moderno das marcas pode estar menos em apenas ditar tendências e mais em reprogramar os significados

Chiara Martini

Diretora sênior de estratégia criativa na The Coca-Cola Company 4 de agosto de 2025 - 14h00

Estava passeando pelo TikTok em busca de mais inspiração para este artigo e cheguei a um rapaz cujo vídeo trazia o título “Coisas que valem todo o hype que têm”, contando sobre a aquisição de sua Owala. O vídeo-review falava de funcionalidade e hidratação, mas também sobre pertencimento, merecimento e estética.

Nos mais de 1,3 mil comentários, as pessoas variavam entre “Sou time Pacco”, “Eu amo a minha Hydro Flask”, “Pelo preço fico com a minha Tyeso” e “Eu procurando qualidades na minha compra desnecessária kkkkk”. O vídeo parece banal, mais um review de um produto que virou tendência. Mas o comportamento por trás dele revela muito sobre o nosso tempo.

Estamos numa época em que o consumo se tornou também performance. Os produtos que escolhemos não apenas têm funcionalidade, contam algo sobre quem somos (ou queremos ser) e viram motivo para a produção de conteúdos nas construções das nossas personas para o mundo.

A garrafa que usamos, o boneco pendurado na bolsa, o batom que aparece na selfie: todos carregam códigos simbólicos. São narrativas condensadas em objetos. Em um mundo no qual identidade e expressão se entrelaçam com visibilidade e alcance, esses símbolos se tornam uma espécie de vocabulário emocional.

Não estou aqui contando nenhum comportamento novo. Em 1899, Thorstein Veblen, em A Teoria da Classe Ociosa, cunhou o termo “consumo conspícuo”, o ato de adquirir bens e serviços não apenas por utilidade, mas para exibir status, riqueza e distinção social.

Hoje, as redes sociais escalam o impacto desse fenômeno. O feed virou uma vitrine de curadoria pessoal, e o consumo passou a ser moldado também pela potência que os objetos têm de serem compartilhados. Compramos não somente o produto, mas a estética do produto postado com a expectativa do engajamento e da validação. É o que transforma um simples potinho de skincare numa narrativa de bem-estar, ou um boneco de pelúcia colorido num símbolo de “eu mantenho meu lado lúdico vivo”.

Em tempos de cansaço, ansiedade e excesso de expectativa, buscamos conforto em pequenos gestos que parecem nos devolver algum senso de controle, identidade e beleza.

Li em um conteúdo de M.M. Izidoro (@mmizidoro) sobre o “efeito batom”, uma teoria popularizada pelo economista Leonard J. Lauder que, junto a outros pesquisadores, propõe que durante períodos de crise econômica ou recessão, as pessoas tendem a reduzir gastos com produtos de luxo, mas continuam a gastar com itens de pequeno valor e sensação de bem-estar.

Como Izidoro escreveu: “Não se trata só de consumismo ou escapismo. Trata-se de estrutura, de manter a narrativa de que ainda fazemos parte de algo reconhecível.” Há algo mais profundo em jogo: o desejo humano de ser visto, reconhecido, validado, nem que seja por meio de uma pelúcia.

E é aí que observamos uma contradição: a dos objetos que perdem valor simbólico quando se tornam populares demais. Aquilo que antes era sinal de um grupo específico, um “código interno”, de repente vira mainstream.

Vários mercados, a moda entre eles, trabalham com a escassez como estratégia há muito tempo. Porque escassez não é apenas sobre oferta, é sobre linguagem. A crítica comum é que o valor se perde quando deixa de ser nicho. Mas… quem tem direito de desejar e de realizar seus desejos? E por que o desejo coletivo, quando acessado por muitos, passa a incomodar? O desejo é social e hierárquico.

Talvez estejamos presos entre dois impulsos legítimos: o de pertencer e o de se diferenciar. Queremos encontrar os nossos e, ao mesmo tempo, sermos únicos. Desejamos a segurança do coletivo e a singularidade do indivíduo. Você não é fútil por se apegar a uma garrafinha bonita ou a um batom — você está tentando encontrar sentido e pertencimento em um mundo cada vez mais volátil. Você não é fútil. Você só é humano.

Para as marcas, esse comportamento oferece pistas valiosas. Mais do que seguir microtendências, é preciso entender o que elas revelam e, então, como — e quando — isso se reflete em oportunidade. Por que um boneco de pelúcia que custa R$ 70 se esgota em minutos? Por que uma garrafa térmica se transforma em identidade portátil? Por que consumimos mais itens “de expressão” do que “de função”? Julgar esse movimento como fútil é negar sua complexidade humana — e desconsiderar sua potência cultural.

Observar o comportamento não é mais suficiente. Se são as marcas que amplificam símbolos, também carregam a responsabilidade de decidir quais histórias merecem ser contadas. Escassez sempre foi sinônimo de sofisticação no marketing, mas isso também é um reflexo de estruturas de privilégio. O que acontece se o desejo muda de lugar? Quando o que une — e não o que separa — passa a ser o novo status?

Talvez o desafio não seja inventar novos objetos, mas ressignificar os códigos. Criar símbolos que representem pertencimento e conexão — e tratá-los com a mesma reverência que antes era reservada apenas ao exclusivo.

Porque, se tudo que é acessível perde valor, estamos dizendo que o que muitos podem ter não é digno de admiração. E isso revela mais sobre quem constrói o sistema de valor do que sobre quem consome. O papel moderno das marcas pode estar menos em apenas ditar tendências — e mais em reprogramar os significados.

Não se trata de vender para todos. Trata-se de construir um desejo que não dependa da escassez para ser legítimo. Onde o bonito não seja o que poucos têm, mas o que muitos compartilham. Onde a inclusão também seja um luxo — não pela dificuldade de acesso, mas pelo poder simbólico de fazer parte.

E, em meio a tudo isso, está tudo certo com você e sua garrafa d’água.