A Vila que ficou em mim
Entendi que a televisão podia ser mais do que espetáculo e aprendi a força de trabalhar com propósito com a turma da Vila Sésamo
Era 29 de outubro de 2007 quando a Vila Sésamo voltou à TV Cultura. Eu estava lá — de novo. Mas, desta vez, não como aquele jovem do começo dos anos 1970, recém-chegado à televisão, deslumbrado com câmeras, bonecos e ideias que pareciam maiores que o estúdio. Agora, eu voltava com outra bagagem: tinha proposto e negociado, em Nova York, o retorno da Vila ao Brasil.
Mas, acima de tudo, voltava como quem reencontra seu lugar de origem. Porque foi ali, na primeira fase, que tudo começou para mim — meu primeiro emprego, meu primeiro mergulho no encantamento que a televisão pode provocar quando decide servir a um propósito.
Não era exatamente a mesma Vila que voltava. Em 2007, na TV Cultura, passamos a exibir blocos de quadros e episódios adaptados do Sesame Street, com dublagens, conteúdos educativos e produções nacionais. Mas a essência era a mesma: abrir, outra vez, uma janela colorida para o aprendizado, para a fantasia e a convivência.
Enquanto acompanhava as câmeras se posicionarem, fui tomado por uma lembrança antiga: a visita que fiz, muitos anos antes, à Children’s Television Workshop, em Nova York — o berço do Sesame Street. O diretor que me recebeu falava com calma e convicção sobre o propósito do programa. Disse que a ideia básica era oferecer apoio às crianças de famílias pobres, em sua maioria negras, que tinham dificuldade de acompanhar o ritmo das aulas.
O objetivo era simples e, ao mesmo tempo, revolucionário: ensinar o básico — letras, números, expandir o vocabulário, estimular a curiosidade, noções de convivência — para que todas pudessem chegar à sala de aula em condições de igualdade. A televisão seria o meio para reduzir essa distância, um instrumento de aprendizagem e de afeto. Sesame Street foi criado para preparar essas crianças para a escola e, ao mesmo tempo, para a vida. Ensinava com músicas, cores, humor e fantasia — mas, sobretudo, com a magia de fazer cada uma delas se reconhecer capaz.
Foi então que ele me contou algo que nunca esqueci. Havia também um propósito mais silencioso, quase confidencial, que andava lado a lado com o pedagógico. “Temos uma agenda secreta”, disse, com um sorriso suave: “Fazer com que as crianças negras se sintam vistas, valorizadas, parte da história.” Esse propósito era o coração do projeto. Para muitas crianças negras, filhos e filhas de trabalhadores ou de famílias urbanas com pouca renda, ir à escola ainda significava enfrentar não apenas o dever de aprender, mas a lógica de um sistema que dizia: “Esse não é o teu lugar”. Era esse o cenário que Sesame Street queria transformar.
Naquele tempo, fazia menos de dez anos que a Civil Rights Act, de 1964, havia sido assinada, proibindo a segregação racial em escolas e eliminando a separação nos ônibus escolares e em outros espaços públicos. O país ainda se ajustava à convivência — e a televisão, espelho da sociedade, refletia essa tensão. As telas também permaneciam segregadas: os protagonistas, os heróis, os vizinhos — quase todos brancos. Sesame Street nasceu para inverter esse reflexo. Criou-se um bairro onde brancos, negros e latinos dividiam o mesmo banco de praça, a mesma escada, o mesmo pão. Um bairro sem muros nem hierarquias, onde o aprendizado era coletivo e o pertencimento, natural.
A força do programa estava em tratar essa convivência como algo que deveria ser normal — não uma bandeira. O casal negro morava lado a lado com personagens brancos e hispânicos, e ninguém sublinhava isso — simplesmente acontecia. E os bonecos, simbolizavam o que a televisão ainda não ousava mostrar: a beleza da diferença. Cada um era único e, ainda assim, todos pertenciam à mesma vizinhança. Era como se ali fosse o ponto de partida da igualdade.
Mas essa harmonia incomodou. Em 1970, o estado do Mississippi chegou a proibir a exibição do programa. O motivo? O elenco era “demasiado integrado”. Bastava mostrar vizinhos de diferentes tons de pele dividindo o mesmo espaço para despertar censura. A utopia parecia perigosa demais para ser exibida em horário infantil. A CTW não recuou. Manteve o elenco, reforçou a mensagem — e, assim, fez da televisão uma aula de coragem.
Foi nessa visita que aprendi algo que me acompanharia por toda a vida: a força de trabalhar com propósito. Entendi que a televisão podia ser mais do que espetáculo — podia ser um instrumento de transformação social. Ali, nos corredores da CTW, percebi que, quando a educação se une à imaginação, nasce algo raro: a possibilidade de mudar o mundo sem precisar anunciá-lo.
Quando, em 2007, vi novamente os bonecos brilharem na tela da TV Cultura, senti que o tempo se dobrava sobre mim. De um lado, o jovem aprendiz do início dos anos 70; do outro, o homem que ajudava a reacender uma ideia que nunca deixou de ser necessária. E percebi que o espírito do programa seguia vivo: o de unir, ensinar e acolher.
A Vila Sésamo me ensinou duas vezes.
Na primeira, a sonhar. Na segunda, a lembrar por que vale a pena sonhar — e com quem.
E, ainda hoje, quando ouço aquela melodia alegre da abertura, sinto que ela não diz apenas “venha brincar”.
Diz, como naquela primeira vez: “venha pertencer.”