Ficar adulto é se adulterar
O processo de envelhecimento não é apenas físico, ele envolve mudanças éticas e morais
Ouvi a frase título deste artigo um dia desses e ela não saiu mais da minha cabeça. Talvez tenha sido num podcast, talvez numa série. Brinco com a minha memória dizendo que “o HD está cheio”” Então para entrar uma informação nova alguma tem que ser descartada. Mas a frase ficou.
E me fez pensar no poder que colocar as letrinhas na ordem certa podem ter. Frases fazem momentos se tornarem memoráveis. Textos inesquecíveis. Propagandas serem elevadas à cultura popular. Embora raramente julgue um livro pela capa, muitas vezes são as primeiras linhas que definem se a compra vai ser feita ou não. Com Alta Fidelidade do Nick Hornby foi assim. Como não amar uma abertura que fala sobre as cinco separações mais memoráveis, aquelas que o personagem levaria para uma ilha deserta?
Lembro que tive a certeza de que iria gostar do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain já pelo nível de detalhe e surrealismo da primeira frase: “No dia 3 de setembro de 1973, às 18 horas e 28 minutos, uma mosca azul do Mediterrâneo pousa na Rua Saint-Vincent, em Montmartre.”
Fazer uma frase sobreviver e ganhar lugar no HD cada vez mais superlotado de pessoas que mal lembram o que comeram no dia anterior não é tarefa fácil.
“Ficar adulto é se adulterar” conseguiu. Porque me fez pensar. O processo de envelhecimento não é apenas físico, ele envolve mudanças éticas e morais. Envolve amadurecimento. Pragmatismo. Perder a inocência, mas ganhar filtros. Trocar o olhar cru por um olhar mais treinado. Mudar percepções.
Num mundo onde a percepção muitas vezes importa mais do que a realidade, não é fácil adulterar a lógica de que todo mundo é feliz no Instagram e realizado no LinkedIn, de que somente existem ganhadores.
Lembro de uma entrevista do jogador de basquete Giannis Antetokounmpo. Seu time, o Milwaukee Bucks, teve a melhor campanha na fase regular, mas foi eliminado na primeira rodada dos playoffs. Na coletiva, um repórter perguntou se ele considerava a temporada um fracasso.
A resposta, que na verdade foi mais uma aula, era mais ou menos assim: Você recebe uma promoção todo ano? Então todo ano o seu trabalho é um fracasso? Não. Todo ano você trabalha para algum objetivo. Que pode ser ganhar uma promoção, cuidar da sua família. Não é um fracasso. São passos para o sucesso. Michael Jordan jogou 15 anos na NBA e ganhou seis títulos. Os outros nove anos foram fracassos? É uma pergunta errada. Existem dias bons e dias ruins. Alguns dias você alcança o sucesso e outros não. Às vezes, é sua vez e, outras vezes, não. O esporte é assim. Você não ganha sempre. Outras pessoas também vão ganhar.
Trabalhei num lugar que atendia um grande cliente junto com outras agências. Todo trabalho era concorrência. E cada vez que a gente não ganhava, um caos. Fracassamos, diziam alguns como crianças mimadas ensinadas a ganhar sempre. Ser adulto é saber que não é assim. E não é fácil. É mais bonito acreditar no conto de fadas do que ter que mudar a visão do “viveram felizes para sempre’’.
Crescer é complicado. Mas é o que faz a diferença. Ou você ainda acredita que a inteligência artificial vai resolver tudo sozinha? Que basta colocar diversidade no discurso para as coisas mudarem? Que pessoas acima de uma certa idade magicamente perdem a capacidade de resolver problemas? Que toda princesa precisa de um príncipe para ser salva? Ser adulto é lidar com isso. E, no fim, é o que vai separar homens e mulheres dos meninos e meninas. No nosso mercado e na vida.