Do que você vai desistir em 2024?
Saber a hora de parar é um ato de grandeza e até generosidade consigo mesmo, uma vez que romper ciclos incômodos pode se desdobrar em uma vida melhor
Saber a hora de parar é um ato de grandeza e até generosidade consigo mesmo, uma vez que romper ciclos incômodos pode se desdobrar em uma vida melhor
A Folha de S. Paulo lançou há alguns dias a série Eu desisto que aborda sonhos abandonados e mostra contrapontos à ideia de persistência. Na abertura das reportagens, trouxe uma interessante e provocadora entrevista com o psicanalista inglês Adam Philips, editor das traduções inglesas da obra de Sigmund Freud, da Penguin Books, que parte do princípio de que o apego à persistência pode causar mais mal do que bem.
Dessa forma, o ex-diretor de psicoterapia infantil do Wolwerton Gardens Child e do Family Consultation Centre, em Londres, se opõe ao senso comum, pelo menos no mundo Ocidental, de que a desistência costuma vir acompanhada de justificativas e uma forte pecha de fracasso ao passo que a eterna persistência é valorizada na literatura, no cinema e na história.
“Tendemos a pensar em desistir, na forma mais simples, como falta de coragem, como uma orientação vergonhosa ou imprópria em direção ao que é assustador e desonroso. Isso significa dizer que tendemos a valorizar e até idealizar a ideia de terminar coisas em vez de abandoná-las”, escreve o psicanalista.
O trecho é parte do livro On Giving Up (“Sobre desistir”, em tradução livre), lançado neste mês no hemisfério norte e que deve chegar ao Brasil em julho, pela editora Ubu. A obra é um conjunto de sete ensaios sobre temas como não querer, exclusão, descrença, censura e perda, além da desistência.
No livro, ele prega que, ao abraçar a descontinuidade com menos peso, podemos ser mais felizes e quer que a desistência seja “uma pista para nossa complexidade moral e não apenas um de nossos infortúnios favoritos”.
“Muito trabalho cultural entra na valorização da persistência, nessa ideia de não desistir. As pessoas que não desistem são vistas como o melhor tipo de gente”, diz o psicanalista. “É claro que é uma boa ideia persistir na cura para o câncer, ou na luta contra o bullying. Mas nunca desistir pode significar se torturar. Adictos nunca desistem. É algo que depende muito do contexto”, diz em trecho da entrevista à Folha.
Na tentativa de renovar a aparência da desistência, o autor separa a atenção em dois tipos: foco estreito, que seleciona o que serve aos interesses imediatos e ignora o resto, e foco amplo, quando não existe um alvo imediato e é possível mirar o todo. A separação dessas duas atenções, segundo Phillips, visa a expandir o repertório em vez de forçar uma escolha, algo que, consequentemente, força também uma desistência.
Para Phillips, a literatura dos heróis mostra que a persistência pode levar à tragédia. “O herói trágico não desiste, ele não aprende a desistir, apesar dos males causados a ele e aos outros”. Ao ler a entrevista de Adams, fiquei refletindo sobre exemplos recentes de desistências que chamaram a atenção do mundo e os aprendizados advindos deste tipo de atitude.
O primeiro deles é o da ginasta norte-americana Simone Biles, que em 2021, durante as Olimpíadas de Tóquio, deixou de disputar a final da ginástica feminina por equipes alegando que naquele momento seu foco era cuidar de si: “Tenho que me concentrar na minha saúde mental”.
Ao fazer isso, Biles, a melhor ginasta da história e uma referência para todas as mulheres negras – que chegou a Tóquio trazendo na bagagem o salto definitivo, o Yurchenko, com um duplo mortal carpado -, com sua decisão escancarou um lado do esporte que até então não tinha tanta visibilidade pública.
“Temos de proteger nossos corpos e nossas mentes e não fazer sempre o que o mundo quer que façamos […]. Acho que hoje a questão da saúde mental é mais importante do que nunca no esporte”, afirmou na entrevista coletiva que deu no mesmo dia que decidiu não disputar o prêmio que coroaria seu estrelato. Dona de quatro ouros olímpicos até aquele momento, a ginasta americana precisou relembrar o óbvio: “Temos que focar nós mesmos, porque, no final do dia, somos humanos, também”.
“É ok não estar ok” passou a ser uma conclusão aceitável na elite do esporte, e não mais uma fragilidade incompatível com superatletas, como tempos passados preconizavam. E Biles escreveu seu nome na história não só com suas coreografias e saltos magistrais, mas também com sua desistência.
Outro exemplo de alguém que abriu mão de uma posição privilegiada no auge de sua carreira foi o da ex-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, que em janeiro de 2023, renunciou ao cargo surpreendendo o planeta.
Quando assumiu a cadeira de primeira-ministra da Nova Zelândia, em 2017, Jacinda, então com 37 anos, era a líder mais jovem globalmente nessa posição e chamava a atenção por agir como uma poderosa com os pés no chão. Sua visibilidade disparou na pandemia, ao conseguir frear a disseminação do vírus em seu país à base de uma rígida política de lockdowns.
Mais tarde, cobraria seu preço, levando a aprazível ilha do Pacífico que comandava a atravessar uma crise econômica à qual não estava habituada. E a premiê, que havia inspirado a onda global “jacindomania”, viu-se de repente na mira da crítica.
São trovoadas comuns para gente do cacife dela, mas Jacinda surpreendeu ao vir a público com a voz embargada anunciar que chegara ao limite: “Não tenho mais o combustível necessário para fazer esse trabalho da melhor forma”, disse na ocasião. Ao deixar o cargo lançou uma reflexão ao restante dos mortais sobre conseguir abrir mão de prestígio e poder em nome de itens mais abstratos, como paz interior e sintonia consigo mesmo.
As reflexões de Adam Philips e os exemplos de Simone Biles e Jacinda Ardern alertam para os perigos embutidos na associação automática que se faz entre desistir e fracassar, como se fossem sinônimos. Na verdade, eles enfatizam que saber a hora de parar é um ato de grandeza e até generosidade consigo mesmo, uma vez que romper ciclos incômodos pode se desdobrar em uma vida melhor.
Não é sobre fracassar. É sobre fazer escolhas.
Fiquei pensando sobre coisas das quais desisti ao longo da minha vida: pessoas que não faziam mais sentido, projetos que já não tinham mais o mesmo significado que antes, posição privilegiada no mundo corporativo e ideias que ficaram datadas.
Mesmo com toda a carga e dificuldade imposta pela lógica de que é preciso estar no topo para ser reconhecido como alguém de sucesso, poder desistir quando fruto de uma escolha pessoal, pode ser libertador.
Nesse sentido, significa libertar-se de amarras que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, da Universidade de Artes de Berlim, atribui à “sociedade do desempenho” — um termo cunhado por ele —, onde as pessoas se sentem pressionadas a se manter constantemente produtivas. “Elas viram escravas de si mesmas”, resume.
E você, já pensou do que vai desistir em 2024?
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