ECA Digital: avanço necessário ou excesso punitivo?
Plataformas precisam estruturar ambientes seguros, mas sem acompanhamento da família, qualquer sistema falha
Na última quarta-feira (27), o Senado aprovou o chamado ECA Digital, uma atualização do Estatuto da Criança e do Adolescente voltada ao ambiente online. O projeto, que agora segue para sanção presidencial, traz uma série de regras específicas para o uso de plataformas digitais por menores de idade.
Entre os pontos, estão a exigência de supervisão parental nas redes sociais, a remoção de conteúdos considerados abusivos e a proibição de práticas como as loot boxes em jogos, aquelas “caixinhas-surpresa” que escondem itens comprados com dinheiro real.
O texto também prevê multas que podem chegar a R$50 milhões e, em casos extremos, até a suspensão das atividades das empresas que não cumprirem as medidas. O objetivo é claro: proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais que, muitas vezes, acabam acelerando sua exposição a conteúdos inapropriados e à chamada adultização.
Mas a grande questão é: como equilibrar proteção e liberdade sem transformar a lei em um fardo inviável para plataformas, criadores e pais?
Quando olhamos para esse tipo de regulação, é importante comparar com o que já acontece fora do Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, a lei COPPA (Children’s Online Privacy Protection Act) já estabelece há décadas regras rígidas para coleta e uso de dados de menores. O YouTube Kids é um exemplo claro disso: uma plataforma com controle parental rígido, sem publicidade e pensada exclusivamente para menores de 13 anos.
Aqui, até hoje, as plataformas vinham se autorregulando. O YouTube foi pioneiro em impor limites e criar ambientes seguros. O Instagram adotou algumas restrições intermediárias, enquanto o TikTok ainda opera em uma espécie de “zona cinzenta”. Com o ECA Digital, essas práticas deixam de ser escolhas estratégicas e passam a ser obrigações legais, o que significa que campanhas de publicidade direcionadas a menores, por exemplo, deixam de ser permitidas também no Brasil.
Outro ponto relevante está nos games. Modelos pay-to-win ou baseados em loot boxes, bastante comuns no universo gamer, passam a enfrentar restrições severas. Isso mexe diretamente com a lógica de monetização do setor e pode alterar a experiência de usuários em títulos voltados ao público infantojuvenil.
Plataforma ou pais: quem deve assumir a responsabilidade?
É evidente que as plataformas precisam estruturar ambientes mais seguros. Mas existe uma linha tênue entre o que cabe a elas e o que deve ser acompanhado pelos pais. Ferramentas de supervisão parental, como vincular a conta do filho a um responsável, já são realidade em alguns serviços, mas ainda inexistentes em outros.
O ponto é que, sem o acompanhamento ativo da família, qualquer sistema acaba falhando. A plataforma pode impedir anúncios direcionados ou bloquear certos conteúdos, mas dificilmente conseguirá substituir o papel de supervisão que cabe aos pais. O risco é que, ao transferirmos totalmente essa responsabilidade para empresas de tecnologia, acabemos criando uma sensação de falsa segurança.
Um aspecto interessante do ECA Digital é a criação de uma Autoridade Administrativa Autônoma, que terá a missão de preencher lacunas e definir padrões mínimos de proteção. Isso significa que temas complexos, como até onde vai o controle em jogos ou qual o nível de classificação adequado para conteúdos sensíveis, terão um órgão responsável por arbitrar.
Na prática, trata-se de uma tentativa de uniformizar regras em um setor que ainda opera com grande disparidade de práticas. Mas o risco é a regulação se tornar engessada, especialmente diante da velocidade com que o universo digital evolui.
A lei resolve o problema da adultização?
Aqui está o ponto mais polêmico. O ECA Digital é um passo, mas não uma solução definitiva. Ao apostar em medidas punitivas severas, o projeto pode acabar gerando efeitos colaterais indesejados. Plataformas tendem a adotar políticas de tolerância zero para evitar riscos legais, o que, na prática, pode impactar até educadores, artistas ou atletas que produzem conteúdos legítimos, mas que fogem de parâmetros rígidos.
Além disso, a discussão precisa ir além das plataformas. Redes sociais não foram feitas para crianças. E, enquanto não reconhecermos esse limite, estaremos apenas tentando criar remendos regulatórios para um problema que é muito mais cultural e educacional.
O ECA Digital inaugura uma nova fase de responsabilidade no ambiente online brasileiro. Ele pressiona as plataformas a assumirem um papel mais ativo, aproxima nossa regulação de práticas internacionais e coloca no centro da discussão a proteção de crianças e adolescentes.
Mas, se não houver equilíbrio, corremos o risco de transformar uma lei necessária em um peso excessivo, que afeta não só big techs, mas também pequenos criadores e até educadores.
A proteção da infância precisa caminhar junto com o bom senso, e isso só será possível se entendermos que a responsabilidade é compartilhada: de plataformas, governo, pais e sociedade.