Estômago criativo — do craft à IA
Quais passos estamos tomando para nos mantermos vivos no processo criativo?
Criar não é um fluxo contínuo entre necessidade e solução, mas sim um afunilamento de ideias e execuções que apontam para uma ou mais possibilidades criativas. Durante esse processo, experimentamos diversos sentimentos que calejam nossas faculdades mentais, mas um deles é o mais interessante: a dúvida.
Seja pela insegurança da novidade ou pelo receio de não perceber outras oportunidades, a dúvida é uma espécie de checkpoint, um momento para validar aquele passo antes de avançar para outro importante. Se o ser humano puder se diferenciar por uma característica, certamente a dúvida é candidata, mesmo que algumas pessoas se comportem como se não a conhecessem.
Independentemente de qual parte do processo criativo você faça parte, é provável que já tenha sentido aquele leve frio na barriga antes de um momento decisivo. Aprovar uma ideia, receber o arquivo da produtora, fechar a última peça ou até mesmo naqueles minutos antes de apresentar o conjunto da obra para o cliente. Lembra da sensação? Uma mistura de medo e ansiedade com um crescendo de coragem e vontade de vencer.
Resgatei uma frase de Vilém Flusser dos meus estudos sobre imagem e semiótica, onde ele afirma que “imagem desligada da tradição seria indecifrável, seria ‘ruídoʼ. Mas, ao inserir-se na correnteza da tradição, toda imagem instiga, por sua vez, a tradição a desencadear novas imagens. Isto é: toda imagem contribui para que a mundivisão da sociedade se altereˮ.
Se compreendermos que a imagem não pode — ou não deveria — se desligar da tradição, ganhando sentido dentro de um contexto cultural e histórico, então existe uma responsabilidade criativa em todos nós para que nada seja vazio.
Do contrário, adiantará todo o esforço e investimento?
É importante lembrar da criação como agente de transformação cultural. Afinal, quantas campanhas não influenciaram nossa sociedade? De meu primeiro sutiã a pôneis malditos, do famoso jingle do Big Mac ao recente premiado Caramelo no Cannes Lions, temos uma infinidade de exemplos da criatividade humana.
E então chegou a Inteligência Artificial. Ela já estava aí, mas nos últimos anos parece que ela deu aquela espichada – quem tem filhos, sabe do que estou falando. Um dia a gente está contando as janelas no sorriso e, de repente, ela já está dando opinião e contrariando os pais.
Com ela vieram também os debates: o impacto sobre empregos, as promessas de eficiência, a idealização do “futuroˮ, e o receio (nem sempre infundado) de que ela ocupe um lugar que ainda é nosso. O fato é, e perdoe-me o clichê, o futuro já chegou. E precisamos aprender a lidar com ele.
O problema talvez não seja a AI em si, mas o modo como nós, enquanto indústria criativa, reagimos a ela. A falta de contexto nas discussões, a polarização de opiniões e a ansiedade coletiva transformam a ferramenta em personagem. Quando, na prática, ela é só isso: uma ferramenta. Poderosa, sim. Mas ainda assim dependente de um input — ou, no bom e velho jargão, de um briefing.
Se você já se frustrou com um briefing mal passado, essa é a hora de mostrar como se entrega um direcionamento claro e sensível. Do contrário, receberá uma berinjela com sapatos e seis dedos em uma das mãos. Sim, isso já aconteceu comigo.
A preocupação maior não é com o uso da tecnologia em si, mas com o risco de abrir mão do processo em nome da pressa. Se as promessas de escala e a urgência imposta por prazos substituírem o pensamento, a pesquisa e a experimentação manuais, talvez estejamos abandonando o próprio sentido de criar. E, nesse caso, o erro não será da AI, mas da nossa desistência.
Longe de mim soar romântico. Algumas posições no mercado exigem sim um pensamento pragmático, uma leitura estratégica de tendências. Mas, quando falamos do ato de criar, inevitavelmente tocamos no âmago.
Acredito que trocar o frio na barriga pelo conforto da automatização é aceitar a criatividade como linha de produção, e não como expressão humana. Falando em barriga e estômago, sabe aquele nó que sentimos às vezes? Talvez ele seja o maior sinal de que ainda estamos vivos no processo criativo.
Que bom.