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Opinião

Impacto além do lucro

Propósito não é um manto sagrado que serve a todas as marcas e empresas igualmente, mas associá-lo a resultados financeiros aquém do esperado é álibi de quem resiste à agenda ESG


4 de dezembro de 2023 - 6h00

Em 2004, uma campanha global que começou com peças de mídia exterior teve início em diversos países, incluindo o Brasil. Ela retratava imagens de rostos de mulheres. Até aí nada de novo. Mas essas mulheres eram diferentes. Elas não eram modelos. Pareciam nossa vizinha, amiga, pessoas comuns. Não foram retocadas, “photoshopadas” ou envoltas em inúmeras camadas de produtos. Nenhuma de suas rugas ou cabelos grisalhos foi apagado ou encoberto. Elas eram apenas… mulheres.

As peças tinham um elemento interativo: a foto de cada mulher era acompanhada de uma pergunta pedindo às pessoas que escolhessem entre duas palavras para descrevê-la. Entre as opções estavam “em forma” ou “gorda?”; “cinza” ou “lindo?”; “murcho” ou “maravilhoso?” Os respondentes poderiam enviar seu voto por mensagem de texto para um número nos outdoors e verificar os resultados no site de Dove. A narrativa por trás da campanha era a de destacar que mulheres comuns são inerentemente dignas e atraentes exatamente como eram.

A receptividade do público foi gigante, abrindo uma larga avenida e fazendo com que a Campanha pela Real Beleza, de Dove, se transformasse numa plataforma de posicionamento. Mais do que apenas uma marca de cuidados com a pele – emergiu como uma defensora da positividade corporal e da autoestima entre as mulheres. Prestes a completar 20 anos, a ação mantém-se relevante e atualizada e, hoje, tem como um de seus focos o impacto nas mulheres, especialmente adolescentes, do apelo estético provocado pelas mídias sociais.

Os objetivos de impacto social da campanha ficaram claros desde o início. Dove queria mudar a narrativa em torno da beleza e inspirar mulheres em todo o mundo a abraçar e celebrar a sua beleza única. Como desdobramento, a campanha também influenciou outras marcas e a indústria publicitária a retratarem suas representações das mulheres de forma mais inclusiva e realista.

Campanhas como a de Dove ajudaram a gigante global Unilever a se destacar como
uma das pioneiras na criação de marcas com propósito. Ben & Jerry’s e Hellmann’s são outros exemplos deste tipo de posicionamento a ponto de ser um importante componente mercadológico das estratégias de negócios da companhia. Esse é o pano de fundo que levou recentemente o novo CEO, Hein Schumacher, ao falar com investidores, anunciar que para algumas marcas do portfólio não faz sentido investir em propósito.

Obviamente, a declaração chocou muita gente dentro e fora da Unilever. A multinacional de bens de consumo investe por ano mais de US$ 8 bilhões globalmente em marketing e está entre os três maiores anunciantes do mundo. É desse lugar de destaque que uma declaração como a de Schumacher reverbera e influencia o mercado, suscitando debates e reflexões.

O executivo, que esteve no Brasil semana passada para conhecer a operação local, não descartou totalmente esse tipo de estratégia, reconhecendo a relevância da empresa em torno do tema e a utilidade do conceito de “propósito” em alguns casos. “Quando bem-feito e com credibilidade, [o propósito da marca] pode ser altamente eficaz’, disse o CEO, em reportagem do Financial Times, apontando exemplos como exatamente Dove e Lifebuoy. “Mas não forçaremos isso em todo o portfólio; para algumas marcas, simplesmente não será relevante, e isso está bem”, acrescentou.

“Nos últimos anos, o debate em torno da sustentabilidade e do propósito das marcas, sem dúvida, gerou mais controvérsia do que esclarecimento”, disse ainda. Ele também apontou mudanças na abordagem da empresa sobre questões de sustentabilidade, afirmando que os compromissos climáticos “aspiracionais” da Unilever não conseguiram gerar valor para os acionistas.

Schumacher assumiu a presidência da Unilever em julho, após deixar o comando das finanças da Kraft Heinz. Entrou no lugar de Alan Jope, executivo que tornou o ESG uma das bandeiras da Unilever, mas que não agradava aos investidores. Nos últimos anos, o crescimento da empresa ficou abaixo da expectativa, com diversas marcas perdendo participação de mercado.

Inegavelmente, se há um aspecto positivo da fala de Schumacher é a transparência. Propósito de fato não é um manto sagrado que serve a todas as marcas e empresas igualmente. No entanto, associar esse posicionamento aos resultados financeiros aquém das expectativas parece um ótimo álibi para aderir a um fenômeno global de resistência, por parte de algumas lideranças empresariais, especialmente do setor financeiro, a pautas ligadas à agenda ESG.

A edição 2023 do estudo Trust Barometer, feito globalmente pela Edelman, demostra que
o setor empresarial se destaca como a instituição mais confiável, liderando com 64%, na América Latina. A confiança no setor dos negócios é 20 pontos superior à confiança na mídia (45%) e 30 pontos acima da confiança no governo (37%). A confiança nas ONGs está em níveis semelhantes aos do setor empresarial, com 60% de nível de confiança.

De acordo com o estudo, à medida que a sociedade deposita maior confiança no setor empresarial, os líderes têm maiores responsabilidades. Cada vez mais, a sociedade espera que as empresas e suas marcas atuem para ajudar a resolver ou mitigar os problemas de desconfiança e para ajudar a construir uma identidade comum para reduzir a polarização existente. Nada menos do que 63% dos entrevistados globalmente comprariam ou defenderiam marcas com base em suas crenças e valores, enquanto uma média de 69% dos respondentes em todo o mundo considera o impacto de uma empresa na sociedade um fator importante na busca por emprego.

A mudança de postura da Unilever surpreende diante dos números do setor. Segundo estimativa da PwC, os ativos sob gestão nos Estados Unidos incluindo práticas ESG aumentarão de US$ 4,5 trilhões para US$ 10,5 trilhões entre 2021 e 2026. Em um mundo cada vez mais complexo, companhias têm diante de si uma grande oportunidade. Conglomerados empresariais de bens de consumo como a Unilever, e suas respectivas marcas, se darão melhor se souberem navegar e fazerem a diferença na vida das pessoas e não simplesmente venderem sabão, xampu ou desodorante.

Na transição do capitalismo de shareholders (acionistas) – como parece ainda ser a visão de Schumacher – para o capitalismo de stakeholders (indivíduos e organizações impactados pelas ações das empresas), sai na frente quem tem consistência e enxerga proposta de valor nas diversas estratégias que envolvem propósito de marca. Até aqui, a Unilever tem um papel relevante e competitivo nesse processo.

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