Dirigir mensagens comerciais a um público menor de 12 anos é prática regulada e até proibida em muitos países, que entendem ser antiético explorar a ingenuidade infantil em vez de dirigir-se aos pais e mães
Em artigo publicado no último dia 24 de julho, intitulado “Um caminho para a comunicação destinada às crianças” foi afirmado que seria um erro – ou até mesmo fake news –, a afirmação de que a publicidade infantil é proibida no país, concluindo que “apesar das sutilezas, é possível fazer publicidade infantil com cuidado e de forma responsável”.
Apesar do longo debate, do grande acúmulo científico e dos avanços em políticas públicas e regulatórias sobre o tema no Brasil e no mundo, é verdadeiramente triste perceber que grupos orientados exclusivamente por interesses comerciais acima de quaisquer outros precisem explorar a vulnerabilidade de uma criança, desrespeitando-a na sua condição sensível de desenvolvimento, para vender seus produtos ou serviços. Acostumados a velhas práticas e agarrando-se ferozmente a premissas de marketing e comunicação comercial ultrapassadas, teimam em defender o indefensável: a publicidade infantil.
Dirigir mensagens comerciais a um público menor de 12 anos de idade é uma prática questionada, regulada, e por vezes proibida, em diversos países – como Suécia, Noruega, Inglaterra, Canadá e Alemanha –, movimento este que o Brasil e suas instituições têm enfrentado com coragem e assertividade na aplicação da lei em múltiplos casos, tanto no Judiciário pela importante atuação do Ministério Público e Defensorias, como no Executivo pela fiscalização pelo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.
É injusto se aproveitar da hipervulnerabilidade de uma criança para comercializar alimentos não saudáveis, enlatados ou lanches com brindes. É antiético explorar a ingenuidade infantil e seus universos de fantasia, magia e sonhos para implantar desejos de consumo, transformando crianças em verdadeiras promotoras de vendas em suas famílias. E é ilegal se aproveitar da deficiência de julgamento e experiência dessa população para perpetuar uma prática perversa de exploração da condição humana na infância por ser mais fácil seduzir crianças do que seus pais e mães, os verdadeiros responsáveis e, por isso, os devidos destinatários de mensagens comerciais.
A prática comercial preguiçosa, mas não menos perigosa, da publicidade infantil burla a autoridade familiar e parental, buscando estar em todos os espaços de socialização da criança, da televisão às novas mídias digitais e, até mesmo, dentro das escolas e salas de aula, camufladas de conteúdo “educativo”, mas cujo real intuito nunca pode ser disfarçado: vender um produto ou serviço e influenciar presentes e futuros consumidores de uma marca.
Como se não bastasse todo esse abuso, é notório e endossado por pesquisas renomadas que a publicidade infantil ainda contribui para problemas sociais como a epidemia de obesidade, sobrepeso e doenças crônicas não transmissíveis graças à publicidade de alimentos e bebidas sem valor nutricional, a adultificação e erotização precoce, a violência pela busca de produtos caros, o impacto ambiental pelo consumo inconsciente e aumento da dispersão de plásticos. Sem falar no estresse familiar gerado pelo superendividamento e pelo fomento, desde o berço, de consumidores vorazes e famílias aprisionadas pela sociedade de hiperconsumo e seus valores materialistas.
Importante ressaltar que a publicidade infantil é uma prática defendida por muito poucos e cada vez mais isolados, ainda não sintonizados com o espírito do tempo atual que exige posturas corretas e responsáveis também do setor empresarial. Nesse sentido, grandes empresas atuantes no Brasil, como Coca-Cola, Mars e Mercur foram a público, há muito tempo, para afirmar que não fariam mais publicidade infantil, tanto para cumprir a lei, como também declarando que essa é uma prática que viola padrões mínimos de responsabilidade social no marketing na comunicação comercial.
Assim, em um momento de país que se fala tanto em ética e moralidade públicas, cabe a todos – inclusive a empresas e associações de defesa de interesse econômico ou de classe –, contribuírem para essa tarefa e cumprirem as normas vigentes, pondo um fim derradeiro à publicidade infantil e suas consequências nefastas para a infância brasileira.
É, portanto, irresponsável afirmar por meio de supostos guias – que inclusive confundem conceitos básicos como a diferença de publicidade infantil e a “publicidade responsável de produtos destinados às crianças” –, que exista caminho ético possível “com cuidado e de forma responsável” para persuadir crianças ao consumo de um produto ou serviço.
Por fim, cabe sempre lembrar: a publicidade de qualquer produto continua a existir. O consenso dentre aqueles que se preocupam com a infância é de que toda essa comunicação mercadológica, inclusive de “produtos infantis”, seja redirecionada aos adultos, mais capazes de analisar criticamente mensagens de apelo a consumo e decidir com liberdade por sua aquisição e uso.
Proteger as crianças brasileiras do assédio publicitário, mais do que uma demanda de um novo país, é um dever de todos nós: famílias, Estado, sociedade e das próprias empresas, como bem evidencia o Artigo 227 da Constituição que garante às crianças prioridade absoluta sempre e em qualquer instância, mesmo no marketing e na comunicação comercial. O caminho está traçado, é hora de trilhá-lo.