Questão de identidade
A relação da população negra com a indústria da beleza e a suas marcas vai além da estética; é sobre expressão, autoidentificação e um estar no mundo
A relação da população negra com a indústria da beleza e a suas marcas vai além da estética; é sobre expressão, autoidentificação e um estar no mundo
No último 15 de setembro foi comemorado o Dia Internacional do Afro, estabelecido em 2017 nos Estados Unidos com o propósito de celebrar o cabelo e a identidade afro. Criada pela ativista estadunidense Michelle De Leon, a data, que tem o apoio do Alto Comissariado das Nações Unidas, pretende ser um movimento global de reação ao preconceito que ainda persiste contra homens e mulheres negros e negras que optam por utilizar os cabelos como forma de expressão. Porque é isso: para as pessoas negras, consciente ou inconscientemente, o cabelo é um traço identitário muito forte. Lendo alguns artigos e matérias sobre a data, me deparei com os belos textos de Jewel Mensah, no Adweek, e de Coretta Almon, na Shots – ambos colaboradores da VMLY&R nos Estados Unidos. Gostei muito dos dois textos, mas o de Coretta realmente reverberou em mim.
Ela, uma mulher negra assim como eu, abre seu artigo apresentando-nos às suas memórias dos cuidados com os cabelos na infância. Imediatamente me vieram minhas próprias lembranças de menina, quando minha mãe me aconchegava em seu colo e, carinhosamente, trançava meus cabelos, separando-os em duas tranças enraizadas, que ela atava com um laço de fita de seda. Um ritual de afeto que se repetia diariamente. Mas, na sequência, chegam a mim outras memórias: os primeiros alisamentos, relaxamentos e tantos outros nomes dados aos tratamentos feitos durante anos para abaixar, domar o cabelo, sempre buscando um visual mais “bonito”, mais adequado, mais profissional. Afinal, era preciso “arrumar” o cabelo, como repetia minha mãe enquanto eu crescia.
Essa história é minha, mas poderia ser a história de tantas outras mulheres negras como eu. E homens negros também. Durante muitos anos, arrumar o cabelo era alisá-lo. Apesar da força e da potência do “Black is Beautiful” e da importância estética e política do Black Power nos anos 1960, nos Estados Unidos e no Brasil, para a maioria da população negra, durante muitos anos, o certo era descaracterizar, buscar o padrão estético eurocêntrico. E, apesar disso, a indústria de beleza não respondia à altura. Os bons produtos para cuidados cotidianos com os cabelos crespos eram escassos ou inexistentes. Ao longo de décadas, as opções eram poucas e havia um apagão nas campanhas de beleza da figura de mulheres e homens negros, como se fôssemos consumidores inexistentes.
Essa situação tem mudado nos últimos anos, mas ainda a passos lentos. Sim, temos hoje bons produtos no mercado, mas em quantidade infinitamente inferior se compararmos aos produtos focados na população não negra. Grandes marcas possuem linhas específicas, com uma quantidade limitada de opções, tratando pretos e pardos, que representam juntos 56% da população, ainda como nicho. Como uma maioria pode ser nicho ainda é uma pergunta que permanece sem resposta. De acordo com dados do Instituto Locomotiva, em 2020, o poder de consumo da população negra no Brasil chegava a R$ 2 trilhões. Apesar disso, de acordo com o Instituto Nielsen, no fim de 2020, no mercado de beleza, a cesta de afroconsumo (formada por maquiagem, protetor solar, shampoo e pós-shampoo) representara apenas 5,9% das vendas totais. Quando olhamos os dados por categoria, os shampoos representam 4% do total e os produtos pós-shampoo, 10%. É obvio que esse percentual poderia ser bem maior.
No Brasil, as marcas de beleza têm aberto os olhos para a necessidade de voltar a atenção para os consumidores e consumidoras negros e negras, apresentando personalidades significativas como suas embaixadoras e ampliando o diálogo com esse público que há anos anseia se ver enxergado como prioridade. Mas o que as empresas precisam entender é que vai além de inserir alguns poucos itens no portfólio.
Nossa relação com nossos cabelos é forte e muito presente. É preciso pensar bons produtos para os cachos, mas também, e principalmente, para os crespos, para as tranças, para os dreads (Em tempo: sim, nós lavamos tranças e dreads. Muito bem, aliás. E de maneira bastante cuidadosa). E para contemplar aquelas que ainda querem permanecer alisando os cabelos, que por receberem química e terem textura diferente, precisam de cuidados especiais.
Cabe a nós, que fazemos parte da indústria da comunicação, pensarmos cada vez de forma mais empática quando formos falar com esse público. Não basta apenas colocar alguns negros e negras em nossas campanhas. Representatividade é mais do que isso. Entender isso, enfim, será o grande passo para, de fato, se estabelecer uma conexão consistente com esse público. Quando se fala de beleza, isso fica ainda mais profundo. Porque, para a população negra, beleza é mais que estética. É sobre autoidentificação, sobre expressão, sobre um estar no mundo. Para além da estética, é sobre identidade.
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