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Em favor da razão, sociedade moderna negligencia os sentimentos


11 de março de 2024 - 6h00

Esta semana completamos quatro anos do início da pandemia de Covid-19. Naquela segunda-feira, 16 de março de 2020, nos trancamos em nossas casas para algo que imaginávamos duraria apenas algumas semanas e permanecemos por muitos meses, na verdade, quase inteiros dois longos anos, dependendo da atividade e nível de privilégio de cada um. As sequelas e impactos desse período na educação, na sociedade, nos relacionamentos e, principalmente, na saúde mental das gerações mais novas ainda estão sendo apresentados. Por outro lado, na economia, em grande parte dos casos, a recuperação parece ter se mostrado e, aparentemente, as coisas voltaram a algum patamar de normalidade.

Ao longo da pandemia adquiri alguns hábitos. Uns, felizmente, não precisamos mais colocá-los em prática, como o uso de máscaras. Mas outros vieram para ficar. E um desses meus novos hábitos foi o de ouvir quase compulsivamente podcasts. Entre eles está o Bom dia, Obvius, da talentosíssima Marcela Ceribelli, que abre minha semana. E o episódio exibido na segunda-feira 4, dia em que escrevo esta coluna é com a psicóloga especialista em trauma Ediane Ribeiro. Em uma conversa muito rica e cheia de informações e reflexões, Ediane explica a importância da regulação emocional, que segundo ela é “uma habilidade que nós desenvolvemos para identificar nossas emoções, legendá-las e dar uma forma de manifestação para elas”.

E completa afirmando que emoções são informações: “Chegam para nos comunicar coisas que estamos vivendo, fora e dentro de nós. E para nos preparar para viver essas situações, para a ação. Importante dizer que regulação emocional está diametralmente oposta ao controle. Emoção não existe para ser controlada.” Ao fazer uma análise da importância das emoções, a psicóloga reforça algo que ficou consagrado ao longo do século 20: o divórcio entre corpo e mente.

“Na vida moderna, acabamos entendendo emoção como se fosse uma qualidade da mente, da psique. Mas a matéria-prima da emoção, do sentir é o corpo: um nó na garganta, um frio na barriga, as mãos geladas, o aperto no peito. Essas sensações que são físicas são desencadeadas por fatores externos ou internos, como uma memória, por exemplo. Cada uma delas vão desencadear uma sinfonia corporal muito específica e a esse processo é que chamamos de emoção. E a essa sinfonia a gente costuma dar legendas para ela. Algumas a gente chama de tristeza, outras de raiva, de alegria, de medo e assim por diante. Emoções são, portanto, o conjunto de reações fisiológicas que é disparado quando eu estou diante de uma novidade”, explica didaticamente.

Uma das bases do argumento de Ediane Ribeiro é o vasto trabalho do neurocientista português, radicado nos Estados Unidos, António Damásio, que aos 80 anos, é um dos intelectuais que mais compreendem o funcionamento do nosso cérebro. Professor da Universidade do Sul da Califórnia, Damásio, lançou há 30 anos, seu primeiro best-seller, O Erro de Descartes (1994), no qual explorou a ideia de como o conjunto de mente e corpo nos define. Em seu mais recente livro A Estranha Ordem das Coisas (2018, Companhia das Letras), acrescenta outro elemento essencial a essa fórmula: os sentimentos.

Para Damásio, a tendência intelectualista do século 20 que deu mais valor à razão, considerando-se que o afeto era algo que não merecia estudo, levou ao pensamento de que é necessário suprimir as emoções, pois não valem a pena manifestá-las. De acordo com ele, essa filosofia levou ao menosprezo da vida, ou ao menos desse aspecto essencial dela. Em contrapartida, seus estudos vão no sentido de mostrar que o sentimento integra o conjunto de corpo e mente, sendo determinante para tudo o que a humanidade construiu. E define os sentimentos como um processo biológico que se mescla ao sistema formado por corpo e mente.

E vai mais longe. Para Damásio, os sentimentos desempenham um papel fundamental no progresso civilizatório. A raiva, a alegria, a tristeza delinearam a cultura, as artes, as guerras, a ciência, a tecnologia, tudo o que nos define. Ou seja, a compreensão das emoções, que se manifestam organicamente, num nível físico, como colocado no podcast por Ediane Ribeiro e dos sentimentos, quando a mente elabora essas sensações, se reflete no que os indivíduos são. Tudo o que um ser humano faz, individual ou coletivamente, é reflexo de demonstrações emotivas e sentimentais.

A distopia desta terceira década do século 21 nos leva a refletir que muito das provocações de António Damásio nunca fizeram tanto sentido. Para o neurocientista, é preciso compreender que, além da razão, podemos usar os sentimentos a favor do processo civilizatório. “Há muitas mazelas que poderiam ser evitadas pelo maior controle dos sentimentos. Extraindo o melhor deles, podemos construir nossa história, as tecnologias, as ciências e as sociedades culturais”, disse em entrevista à Veja, em 2018, quando veio ao Brasil para participar do evento Fronteiras do Pensamento. Um relato mais atual do que nunca, em tempos de guerras, intolerância e emergências climáticas como o que assistimos neste intenso 2024.

Quando você, leitor ou leitora, estiver lendo este texto, certamente estará bombardeado por uma enormidade de posts e artigos sobre o SXSW, que acontece esta semana. Não por acaso, uma boa parte da curadoria do evento passa por assuntos que têm a ver com o cérebro, comportamento e saúde mental. Em tempos de inteligência artificial e das discussões infindáveis sobre seus impactos nas relações entre seres humanos e destes com as máquinas, vale uma reflexão sobre o caráter coletivo que os sentimentos ganham na era da plataformização da comunicação. Afinal, como bem disse António Damásio “uma parcela do mundo cede aos sentimentos coletivos, o que leva a extremismos”.

Que possamos dar mais vazão aos nossos sentimentos e emoções individualmente e usar o coletivo para experiências construtivas e mais significativas.

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