A jornada de Lorice Scalise para ampliar o acesso à saúde
A presidente da Roche Farma no Brasil fala sobre seus desafios no comando da farmacêutica e a relação entre saúde, gênero e liderança feminina
A jornada de Lorice Scalise para ampliar o acesso à saúde
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Michelle Borborema
18 de abril de 2024 - 13h09
A visão comunitária é marca registrada da liderança de Lorice Scalise, que desde o início de 2023 preside a farmacêutica Roche no Brasil, sexto maior mercado para a empresa de origem suíça. “Na minha cidade, havia duas escolas. Todas as crianças estudavam no mesmo lugar, frequentavam os mesmos espaços, faziam catecismo na mesma igreja e usavam o mesmo hospital, que era público. Então, na minha cabeça, não existia um lugar para onde você vai e o outro, não. Íamos todos, e os problemas de cada espaço eram de todos.”
A executiva nasceu em Borborema, pequena cidade no interior de São Paulo. Filha de uma professora e de um agricultor, ela lembra com carinho da relação que desenvolveu com a natureza durante sua infância. “Na roça, você cuida dos animais, planta e colhe todos os dias. Então sou muito influenciada por essa interdependência entre o meio, o outro e a natureza. Uma roça não vai sobreviver se você não estiver presente, e ao mesmo tempo ela te serve, te fornece em troca.”
Na adolescência, o interesse de Lorice pelos aspectos sociais da vida cresceu. Após passar por um colégio de freira e uma pensão para frequentar escolas em cidades maiores de São Paulo, a executiva fez a graduação em Farmácia, em Araraquara, onde se fascinou pela política do ambiente universitário. “Fui de movimento estudantil, do centro acadêmico e representante dos estudantes na congregação da faculdade”, lembra. Foi lá que teve, ainda, contato com noções de diversidade, equidade e inclusão.
A entrada na Roche não foi tão calculada, mas representou sobrevivência para a maternidade solitária de Lorice. Aos 25 anos, a executiva se mudou com o namorado da época para São Paulo, onde fez um estágio da Danone e teve gêmeos. Decidiu, no entanto, ser mãe solo. Quando os filhos tinham um ano de idade, ela, desempregada, conseguiu uma entrevista na farmacêutica.
“Estava desesperada por esse emprego, porque tinha duas crianças e não morava com o pai deles. A recrutadora me perguntou várias vezes se eu tinha certeza de que queria o emprego, porque não tinha família na cidade. O trabalho, para mim, é um lugar de exercício da minha individualidade, onde travo muitas das minhas lutas pessoais.”
Lorice entrou na empresa e, de lá para cá, são 24 anos na farmacêutica. Para ela, algumas coisas são as mesmas desde o início. “Sou super entusiasmada, e acho que uma das coisas de que mais gosto daqui é poder ser eu mesma. Aliás, meu desafio constante na Roche, de todos os dias, é não me perder de mim.”
Apesar da constância, sua jornada na farmacêutica foi longa e cheia de mudanças. Em 2014, passou alguns anos na Suíça, sede da empresa. Em seguida, foi para a Argentina, onde comandou a operação da Roche por mais de seis anos. Agora, no Brasil, o desafio da executiva, primeira mulher e pessoa latino-americana a assumir a presidência no país, requer pulso firme e boas relações públicas e privadas, o que ela parece ter desenvolvido bem ao longo de sua trajetória como liderança e mãe.
“Uma coisa é alguém de outro país explicar o sistema de saúde no Brasil. Outra, é eu ter vivido esse sistema. Sei do que estou falando, então acho que minha vantagem é a oportunidade de estar sentada nesta cadeira falando disso, mas também de maternidade, por exemplo. Acredito profundamente que minhas lutas estão inseridas no meu ambiente profissional, porque saúde envolve tudo. O feminismo está aqui, e as questões sociais e de igualdade, também. Nunca existiu, para mim, a possibilidade de trabalhar sem exercer esse papel social.”
Antes de falar sobre tratamento, portifólio e produtos, Lorice é enfática sobre seu papel de lutar pelo amplo acesso à saúde no Brasil. Isto envolve, claro, uma estratégia de relacionamento para que haja mais penetração dos tratamentos da indústria farmacêutica pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
“Hoje, 70% da população brasileira é atendida pelo SUS. Contudo, o volume de dinheiro movimentado no sistema privado, que atende os outros 30%, é mais ou menos igual ao dos 70% restantes. Então, como uma empresa de inovação, a Roche tem acesso mais rápido e fácil ao sistema privado. Contudo, um dos desafios que abraço é como movimentar, discutir, dialogar e abrir espaço para que todos os pacientes possam ter acesso àquilo que é fundamental e essencial para todos. E não é apenas uma questão de saúde, mas de gênero, equidade social e cidadania.”
Fazer com que todas as pessoas tenham acesso à saúde não é uma tarefa fácil, diz. Além de toda a discussão sobre recursos públicos, há ainda os chamados cegos sociais, que já têm soluções para seus problemas, mas não têm acesso a elas mesmo assim. “Essa, para mim, é uma das bandeiras mais fortes. Precisamos buscar diálogo e colaboração para tornar viável um acesso sustentável. A constituição brasileira diz que todos têm direito à saúde e à vida, então não podemos ter níveis de acesso. É inadmissível.”
Apesar dos percalços, Lorice acredita que alguns passos importantes já foram dados. “Temos conquistas muito relevantes. Duas delas, que estou muito feliz de ver, são as campanhas de câncer e de HPV. A última apenas no ano passado começou a aparecer mais. E isto não é acidental, mas, sim, um esforço de todas as pessoas que começaram a falar sobre a relação da violência doméstica com câncer de colo de útero, por exemplo. É importante percebermos isso, porque é um câncer com total possibilidade de prevenção e tratamento. Só morre de câncer do colo do útero hoje no Brasil quem não tem dinheiro.”
Lorice tem uma clareza em sua liderança: as pautas de gênero cruzam a saúde, e esta também é uma de suas grandes bandeiras, seja em projetos de inovação ou de acesso. “Por muito tempo, vivemos numa sociedade tão patriarcal que os protocolos médicos e estudos clínicos eram voltados para a população masculina. E aí as mulheres passaram a ser inseridas na vida, no mercado de trabalho, e a saúde também precisa ser contemplada nessa nova dinâmica.”
A executiva, que também é membro do comitê global de diversidade, equidade e inclusão da Roche, acredita que essa mudança deve começar pelas lideranças, e que ser uma mulher contribui para esta missão. “É muito importante ter cada vez mais líderes diversos na saúde, porque ajudam a trazer diferentes perspectivas. Eu, por exemplo, sou muito sensível ao tema da mulher, e acho que é diferente quando a pauta te afeta diretamente. Lideranças femininas na saúde são importantes, porque trazem à tona as questões delas.”
Hoje, as mulheres representam 70% da força de trabalho na saúde, mas elas estão em apenas 25% dos cargos de liderança dessa indústria, segundo o Women in Global Health. Para Lorice, há ainda outras camadas, o que traz dois desafios para ela como presidente da Roche: advogar em prol de políticas inclusivas para a mulher e servir como modelo para que outras meninas percebam que é possível ter — e ser — uma líder feminina na saúde.
“Sou uma líder feminina, mas sou branca. Não sei como é a experiência de uma mulher negra quando ela entra num posto de saúde. Como é a relação dela? Como se sente tratada? Por isso, é fundamental ter todas as diversidades em cargos de liderança na saúde, já que o setor deve tratar de todos e, para isso, abordar diferentes temas.”
Para que tudo isso aconteça, Lorice acredita muito na transformação digital, que ainda precisa de muito avanço no sistema brasileiro de saúde. “Sou uma pessoa positiva. Temos que ser capazes de mudar algumas coisas. Acredito que o futuro vai acontecer por meio da transformação digital. Não podemos mais responder a problemas atuais com soluções do passado. A inteligência artificial já está aqui, as transformações digitais já existem. Temos que colocar isso cada vez mais a serviço das pessoas.”
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