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Adana Kambeba: entre a medicina científica e a ancestralidade

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Adana Kambeba: entre a medicina científica e a ancestralidade

A médica e pesquisadora abre novos espaços e narrativas ao integrar a medicina ocidental aos saberes indígenas


23 de agosto de 2024 - 6h37

Adana Omágua Kambeba é médica ocidental e indígena (Crédito: Divulgação)

No mais recente Rio Innovation Week, evento sobre tecnologia e inovação que aconteceu em agosto deste ano, Danielle Soprano, ou Adana Omágua Kambeba, chamou atenção ao participar de uma palestra ao lado do neurocientista e biólogo Sidarta Ribeiro.

O tema da conversa tem ganhado cada vez mais relevância na medicina, na neurociência e na indústria farmacêutica, mas também entre marcas que têm abraçado a diversidade e inclusão: a conexão entre as sabedorias ancestrais dos povos indígenas e a ciência para a compreensão da mente. Formada em medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais, Adana busca promover um diálogo entre a medicina ocidental, aquela ensinada pela academia, e a indígena.  

De origem manauara, Adana morava numa área rural do Amazonas, em uma casa de palafita e madeira. Pertence ao povo indígena Omágua Kambeba, que significa “povo das águas”, presente na Amazônia peruana, colombiana, equatoriana e brasileira. Além de médica, Adana está se preparando para se tornar pajé, líder espiritual de seu povo, e foi a primeira indígena mulher a compor uma das comissões do CFM (Conselho Federal de Medicina), a Comissão de Integração de Médicos de Fronteira.

Nesta entrevista, Adana Omágua Kambeba fala sobre seu interesse pela formação em medicina e sobre a sua proposta de transitar entre as duas linhas: a medicina ocidental e a indígena. Além disso, ela também fala sobre seu processo de virar pajé e apresenta sua visão sobre as pesquisas acadêmicas em desenvolvimento que estudam a Ayahuasca. 

Como surgiu seu interesse em se formar em medicina? 

Desde a infância, eu já apresentava sinais de que tinha um dom para cuidar. Cuidar das pessoas, dos animais, das plantas. Os mais velhos logo perceberam esses sinais e começaram a notar minha vocação para o cuidado. Essa inclinação foi se fortalecendo com a realidade amazônica em que cresci, uma região marcada por muitas dificuldades e carências, principalmente na educação, na infraestrutura, e, especialmente, na saúde. Foi nessa vivência que meu interesse pela medicina começou a florescer. 

Tive a oportunidade de fazer o vestibular e passei na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Deixei a Amazônia e fui cursar medicina em um lugar onde eu não conhecia ninguém, começando do zero. Consegui me formar, e hoje sou médica. 

Como foi esse processo de mudar de Estado e viver na cidade? 

No começo, a adaptação não foi fácil. Eu tinha vindo de um lugar mais tranquilo, e Belo Horizonte tem seu próprio ritmo, cheio de movimento e agitação. Tive que aprender a me ajustar a isso. O curso de medicina, em si, é muito puxado e exigente. Além disso, a alimentação foi um desafio. Passei um bom tempo trazendo alimentos da Amazônia, como peixe e farinha, em caixas de isopor congeladas, para suprir a falta dos sabores da minha região. 

Dentro da universidade, também tive que lidar, de forma muito velada e discreta, com o preconceito. Mas consegui superar tudo isso, e cheguei até aqui, conquistando o lugar onde estou hoje. 

De que forma é possível mesclar a ciência formal com a medicina indígena? 

Minha proposta, que na verdade é também coletiva, baseada na realidade que vivi, é provocar o diálogo entre as duas medicinas. Cada uma tem sua própria estrutura e modelo, mas, mesmo assim, elas podem dialogar e contribuir juntas para o tratamento e a cura das pessoas. A medicina científica, ou ocidental, na qual sou formada, tem muito a oferecer e já contribuiu bastante para a saúde e o bem-estar das pessoas. Contudo, por mais avançada que seja, a medicina ocidental tem suas limitações, pois é exercida por pessoas, e todos nós temos nossas barreiras. 

A medicina tradicional indígena, por sua vez, também é muito útil e tem auxiliado nos tratamentos. Muitos conhecimentos desse conhecimento foram incorporados à medicina científica, o que mostra seu valor. No entanto, a medicina tradicional indígena também tem suas limitações, apesar de toda a sua riqueza. 

Diante dessas limitações em ambas as medicinas, minha proposta é promover o diálogo. Se as duas trabalharem juntas, podemos ampliar nosso arsenal terapêutico para enfrentar as doenças e os desafios da saúde das pessoas. Não existe uma medicina superior ou inferior; o que importa é a disposição para o diálogo entre os atores envolvidos, sejam médicos, profissionais de saúde, pajés, xamãs, curandeiras e parteiras. Com essa predisposição ao diálogo, podemos ganhar muito e melhorar a qualidade de vida das pessoas. 

O que a medicina e cura indígena podem agregar à medicina formal? O que ela já trouxe para as práticas ocidentais? 

Podemos dar muitos exemplos, mas vou citar um: o curare. Os indígenas utilizam o curare nas pontas de flechas, zarabatanas e lanças para imobilizar a caça. Essa substância, originalmente usada como veneno, foi incorporada pela medicina científica e é utilizada até hoje nos centros cirúrgicos como um importante auxiliar na anestesia. 

Outro exemplo é a borracha, um conhecimento tradicional indígena brasileiro. Em 1743, o francês Charles-Marie de La Condamine aprendeu com os indígenas a técnica de extração da borracha e levou esse conhecimento para a Europa, onde passou por um processo de aprimoramento. A borracha tornou-se essencial na vida moderna, contribuindo para a Revolução Industrial e para o esforço de guerra na Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil se comprometeu a enviar toneladas de borracha para os Estados Unidos. A borracha foi usada na fabricação de pneus, tanques de guerra, máscaras de proteção e em inúmeros itens médicos, como luvas de látex, utilizadas em hospitais e laboratórios. 

Esse conhecimento da borracha, como muitos outros, é uma contribuição indígena. Se analisarmos a fundo, veremos que vários medicamentos fitoterápicos produzidos pela indústria farmacêutica têm origem na fitoterapia indígena. Cientistas, por meio da etnobotânica e etnofarmacologia, têm acesso a esses conhecimentos diretamente nas comunidades tradicionais, incluindo as indígenas. Esses exemplos mostram a grande contribuição do conhecimento indígena para a humanidade e para o bem-estar de todos. 

Você está se preparando para se tornar pajé. Como é esse processo? 

Cada povo tem sua própria forma de preparar seus especialistas tradicionais. Embora os termos “xamã” e “pajé” sejam amplamente conhecidos, eles são genéricos. Cada povo tem sua medicina tradicional e nomes específicos para seus especialistas. Quando falo sobre medicina tradicional indígena nas minhas palestras, uso esses termos de maneira genérica, porque atualmente somos 305 povos, e seria impossível abordar a medicina tradicional de cada um de forma específica. 

Cada povo tem diferentes tipos de especialistas tradicionais, com funções variadas: alguns se dedicam aos rezos, outros à fitoterapia, e há os que se comunicam com os espíritos, entre outros. Cada um tem um nome específico em sua cultura, não se limitando apenas aos termos “pajé” ou “xamã”. 

Atualmente, estou seguindo uma dieta específica para me preparar melhor diante do meu povo. Essa rotina faz parte de um processo para avaliar se sou merecedora de assumir a responsabilidade de ser uma liderança espiritual. Este ano, em novembro, completarei sete anos de dieta. Estou quase de volta ao Amazonas, onde farei uma expedição por mais de 35 aldeias e organizações do povo Omagua Cambeba, desde a região do alto Amazonas até o baixo Rio Negro. Lá, passarei pela prova do grau, para ver se estou realmente preparada e merecedora de ser uma liderança espiritual. 

Como você avalia as pesquisas acadêmicas que estão sendo conduzidas para introduzir a Ayahuasca em alguns tratamentos, como transtornos psiquiátricos? 

Nós as tratamos como medicinas que orientam, curam e revelam, mas é essencial saber usá-las corretamente. O problema é que muitas pessoas, por curiosidade, acabam utilizando essas substâncias sem o devido conhecimento e depois passam mal porque não souberam fazer uso adequado. 

A ayahuasca é um “desalucinógeno”, que reorienta a pessoa para dentro de si. É uma medicina sagrada, uma entidade muito respeitada, e muitas pessoas não indígenas têm encontrado grandes benefícios com seu uso, ajudando a se reconectar e até a superar dependências químicas. Porém, com essa crescente “renascença psicodélica”, é fundamental que esse movimento inclua os povos indígenas na discussão, pois essas são plantas de poder, medicinas da floresta, preservadas e usadas pelos povos indígenas ao longo do tempo. 

Infelizmente, apesar das pesquisas avançarem, os povos indígenas não estão sendo consultados ou incluídos nesses processos. Não há um diálogo, uma repartição de benefícios ou sequer um pedido de permissão. Esse tipo de comportamento pode levar a consequências graves, pois essas medicinas têm um uso específico e respeitoso, que não pode ser feito de qualquer jeito, a qualquer hora. 

Ainda assim, há muitas pessoas não indígenas que respeitam e honram essa medicina sagrada. Quando tenho a oportunidade, nas minhas palestras, procuro educar sobre essas questões, e muitas vezes recebo retornos positivos de pessoas que mudaram suas práticas após entenderem melhor o que estava em jogo. Como líder espiritual, vejo meu papel também como educadora. 

As pessoas estão buscando cada vez mais essa orientação, e eu sou chamada não apenas para organizar cerimônias, mas também para acompanhar pessoas com histórias de vida muito fortes e traumatizantes que buscam cura. Nesse processo, percebo a importância de uma liderança espiritual bem orientada, porque o tratamento ou cura de alguém, especialmente no nível interno, muitas vezes vai além de uma substância. Uma palavra, uma música, um olhar, ou um acolhimento podem ser extremamente poderosos no processo de cura. Por isso, a cura interna é algo que devemos sempre buscar promover, respeitando a profundidade e o sagrado dessas medicinas. 

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