Michelle Borborema
7 de abril de 2022 - 8h23
Quando fala do que mudou do início de sua carreira para cá, Marlene tem a resposta na ponta da língua: a diversidade (Crédito: Mauro Moura/Leo Burnett Tailor Made)
“O que você vai viver nos próximos 20 anos vai ser exponencialmente maior do que tudo que eu vivi. Explodiu, meu amor. Quem vai viver a revolução é você”.
Com quase 60 anos de carreira, Marlene Bregman garante que a nova geração de mulheres viverá o que ela nunca viveu. Referência como liderança de Planejamento Estratégico, a profissional testemunhou as grandes transformações da publicidade nas últimas décadas: das pesquisas de mercado feitas com a maleta La Belle Courier, que projetava vídeos publicitários aos consumidores para colher percepções, a um mundo digital em que dados, algoritmos e influenciadores abastecem o trabalho de comunicação. Mas as mudanças não foram apenas tecnológicas. Na sua trajetória, ela teve que desbravar caminhos quase nunca acessíveis às mulheres antes de contemplar, hoje, a crescente presença feminina no mercado de trabalho e em cargos de liderança.
Marlene nasceu durante a Segunda Guerra Mundial, em 1943, filha de pais imigrantes que se encontraram no Rio de Janeiro após fugirem da perseguição aos judeus no Leste Europeu. A mãe era argentina, de ascendência russa. Já a família do pai veio da atual região da Ucrânia.
“Meu pai se considerava russo quando veio para o Brasil, pois a Ucrânia era parte da Rússia. Agora, que descobrimos que Kiev é na Ucrânia, me deparei com uma segunda identidade e pensei: ‘que orgulho, sou ucraniana’. Essa força identitária dos ucranianos começou agora, com a guerra. Se Putin soubesse que a resistência e o amor por aquelas terras seriam tão fortes e poderosos, talvez tivesse entrado no conflito com um pouco mais de cuidado”, diz.
Uma das chamadas “normalistas” do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, mulheres que estudavam para serem professoras, Marlene fez também Jornalismo na PUC da capital fluminense. Aos 23 anos, ganhou uma bolsa do governo americano para ser mestranda em Jornalismo na Syracuse University, em Nova York. Lá, escolheu, por acaso, uma matéria de pesquisa em comunicação fora da grade para cursar e se apaixonou. Foi quando decidiu sair do jornalismo e fazer seu mestrado em Pesquisa de Propaganda na mesma universidade.
Quando concluiu o curso, a efervescência da capital a impeliu a continuar nos Estados Unidos, onde trabalhou no departamento de mídia de uma agência local. “O trabalho de cão ficava comigo e com os outros estagiários. Eu passava o dia calculando os valores dos jornais em máquinas que faziam um ‘barulho de estação de trem’. Mas não queria ir embora dos Estados Unidos, então me esforçava para dar meu melhor.”
Marlene passou 18 meses na empresa e precisou voltar a contragosto para o Brasil. Teve dificuldades para se recolocar, pois era considerada muito qualificada para qualquer posição no país. Não podia ser chefe, pois não tinha experiência suficiente. Nem estagiária, considerando seu mestrado e experiência profissional nos Estados Unidos. “Apelei, então, para o meu pai”, diz.
Em 1969, foi contratada pela Bloch Editores, do imigrante ucraniano naturalizado brasileiro Adolpho Bloch, fugido da Revolução Russa. Na editora da revista Manchete, um dos maiores títulos da época, criou um departamento de serviços de marketing que liderou por 10 anos. “Montei meu espaço para que os anunciantes pudessem saber o perfil demográfico e psicográfico do leitor. Algo básico hoje, mas na época era muito inovador.”
Nos primeiros cinco anos, Marlene aprendeu muito sobre o Brasil e suas revistas. “Como estávamos na ditadura, lembro que o coronel nos visitava com uma tesoura para censurar artigos, enquanto acolhíamos intelectuais perseguidos. O ex-presidente Juscelino Kubitschek almoçava todo dia na Manchete conosco. Era um ambiente de poder e glamour, mas ao mesmo tempo tudo o que eu fazia estava sempre maravilhoso. Evoluí muito como ser humano, mas pouco profissionalmente”.
Desiludida com o jornalismo, Marlene viu sua carreira como publicitária dar uma guinada quando a empresa Philip Morris veio para o Brasil, em 1975. A gigante do tabaco precisava de uma agência de publicidade. Com isso, a Leo Burnett (que, décadas mais tarde, iria incorporar o atual sobrenome Tailor Made), que já atendia o cliente globalmente, também iniciou suas operações no país. Como Marlene era uma das pessoas de confiança da Manchete para relacionamento e negócios, por seu conhecimento em línguas e cultura em geral, foi escolhida para almoçar com o presidente responsável pela vinda da agência, que era de origem palestina.
“Conversamos um pouco e ele logo me chamou para trabalhar na Leo. Nunca vou me esquecer do que ele disse: ‘Young lady, você está subestimando suas possibilidades. Não vai dar um encaminhamento? Posso te ajudar, você pode ir para a Leo Burnett de Chicago para se aculturar de novo no mundo da publicidade'”, lembra Marlene.
Ali, ela iniciava uma longa trajetória como liderança na agência, onde está até hoje. “Não sei falar de mim sem falar da Leo. Meu propósito de vida casa com o da agência. É uma cultura fortíssima, que conservou os valores do seu fundador. Assinamos em verde até hoje. Pessoalmente, posso dizer que tudo o que sei, é porque alguém ali me deu alguma oportunidade e aproveitei. Recebi vários convites para sair de lá, mas não consegui. Sou a publicitária mais feliz do mundo”.
DA BELLE COURIER AO METAVERSO
Quando voltou de Chicago, Marlene passou a liderar o departamento de Planejamento e Pesquisa de Mercado da Leo Burnett no Brasil e trouxe o que nos anos 60 havia de mais moderno para fazer pesquisas: uma maleta Belle Courier. Em formato de lancheira, ela servia para transportar e projetar os vídeos publicitários e coletar a percepção das pessoas sobre os comerciais. No período, toda pesquisa de comunicação era feita nas agências de publicidade.
“Hoje estamos falando de metaverso, NFT, influenciadores, inteligência artificial e algoritmos. No começo da minha carreira, a inovação era a ‘belle courier’, uma espécie de merendeira mágica da pesquisa de mercado na publicidade”, brinca.
No cargo, Marlene esteve à frente do desenvolvimento do departamento e da agência, que ainda começava sua história no país com a marca Marlboro.
“Que eu saiba, fomos a primeira agência no Brasil a fazer estudos com as técnicas do Leo Burnett. Não focávamos no substantivo, mas no desejo, no gatilho, no que estava escondido, e não na frente de todo mundo. Querendo ou não, o cigarro me obrigou a sair do produto e olhar para a pessoa numa época em que ninguém fazia aquilo ainda.”
Em 1986, Marlene foi promovida a vice-presidente e passou a integrar o comitê executivo da Leo Burnett. Nos anos 1990, conduziu nos escritórios da América Latina um movimento que as agências estavam fazendo na época: a transição do planejamento como departamento de pesquisa para um setor que trabalha ao lado de criação e é a base de toda organização. “Foi um movimento doloroso de adaptação para todos. O planejamento passou a ter a custódia do pensamento e do desejo do ser humano, e a saber como levar uma marca do ponto A ao ponto B baseado nesse conhecimento. Houve toda uma transição de pesquisa de mercado para planejamento que impactou atendimento, criação e a nossa própria área. Muitos profissionais de pesquisa não queriam ser planners. Perdemos grandes talentos, mas a propaganda deu um salto.”
Em 2005, ganhou o Prêmio Caboré de Planejamento, e em 2006 foi nomeada VP de Negócios Corporativos da agência. Três anos mais tarde, assumiu o cargo de Consultora Estratégica, que ocupa até hoje. Fez parte, ainda, do time de profissionais de todo o mundo que desenvolveu o projeto de reposicionamento global da Leo Burnett.
MULHERES NA PUBLICIDADE
Nos quase 60 anos de carreira de Marlene, ela não se lembra de ter sido assediada, mas se recorda muito bem do primeiro episódio de machismo que sentiu na pele. “Quando entrei na Leo, participei de um daqueles encontros que as multinacionais têm com os CEOs globais para apresentação de planos e alinhamentos. Depois, enquanto almoçávamos, o presidente da agência no Brasil disse para o CEO global, na época o John Kinsella: ‘você precisa conhecer bem a Marlene porque quero fazer dela a primeira presidente de uma agência de publicidade no Brasil’. Lembro que Kinsella olhou para ele com um sorriso amarelo muito constrangedor. O presidente nunca mais tocou no assunto. Por sorte, nunca tive essa ambição”.
A publicitária também guarda na memória episódios entre criação e planejamento que acabavam retratando um pouco do machismo das agências de publicidade. “Ainda é difícil ter mulheres na criação. Antes, elas eram uma raridade na área, trabalhavam mais na pesquisa. Por isso, os criativos não queriam falar com a gente. Escutei muitas vezes coisas como ‘fala logo, o que você quer? Tenho que trabalhar’. Me sentia um “atrapalhômetro”. Mas seguia em frente, pois sempre acreditei que é no papo que as ideias se desenvolvem e afinam”.
Além do diálogo, Marlene defende que reconhecer o resultado de um trabalho como o objetivo principal de todas as áreas de uma agência é fundamental. “É preciso ter respeito pela entrega, que é comum a todos. Se vamos falar com o criativo sobre o nosso planejamento, temos que dar algo para construirmos em cima. Devemos gerar o desejo de interlocutores que se respeitam e se reconhecem na contribuição do outro. Na Leo, com a meninada, isso acontece.”
Marlene afirma, ainda, que a criatividade não pode ser exclusividade de apenas um departamento. “Um criativo executa, mas a grande ideia criativa pode surgir da mídia, da pesquisa, do atendimento. Todos nós, que trabalhamos em propaganda, temos o dever de sermos criativos dentro das nossas competências. E quem não entende isso está se isolando, emburrecendo.”
Para ela, sua solidez e sucesso na carreira se devem principalmente ao seu time. “Sempre procurei contratar pessoas que sabem mais do que eu. Sempre soube reconhecer isso nelas e sou grata por todos os talentos maravilhosos que aceitaram vir trabalhar comigo. Acho que isso me fez perseverar e ser perene. Nunca tive medo de me apequenar diante dos gigantes, esse inferno de Dante nunca foi meu.”
Hoje, um de seus “orgulhos” é seu chefe, Tiago Lara, que conheceu quando era ainda um trainee. “Ele é brilhante, como profissional e ser humano. Eu sei quem sou e a força que tenho, mas sei reconhecer a sorte de estar rodeada de gente da melhor qualidade”.
DIVERSIDADE E ETARISMO
Quando fala do que mudou do início de sua carreira para cá, Marlene tem a resposta na ponta da língua: a diversidade. “Agora contratamos pessoas com um patrimônio maior do que simplesmente saber fazer planejamento. Temos interesse em quem foi bailarina, gosta de escrever, toca flauta, resgata bichos na rua. Queremos formar pessoas com sensibilidade. Gente com traços de caráter que façam com que tenhamos contribuições e opiniões diversas, choques de percepção.”
Para ela, construir uma marca é proporcionar um diálogo universal. “Para isso, o grande diferencial é a diversidade. Planejamento que não reflete os diferentes anseios e desejos das pessoas não existe”.
Com quase 79 anos, Marlene fala com lucidez, conhecimento e consciência de seu tempo e do lugar em que está. “Estou muito interessada pelo etarismo. As mulheres com mais de 60 anos ficam invisíveis e sofrem um preconceito enorme, ao mesmo tempo em que serão o segundo maior segmento da população a partir de 2030. Poderemos estar diante de um problema social muito grande se não houver políticas sociais e práticas para diminuir esse preconceito.”
Ela ressalta, ainda, a desigualdade social que recai sobre muitas mulheres mais velhas. “Somos poucas de classe A, estudadas, cultas, que tivemos oportunidade de construir vidas produtivas. 80% dessas mulheres cuidaram de nós e estão vulneráveis. É para elas que precisamos voltar nossos olhares”, completa.
Na publicidade e na vida, Marlene veio, viu e venceu. Agora, quer que mais mulheres possam trilhar seus próprios caminhos. Dá pra reformular a frase dela: Quem vai viver a revolução, na verdade, somos todas nós.