Michelle Borborema
29 de abril de 2022 - 1h37
Semayat é jornalista, cofundadora do Nós, Mulheres da Periferia e consultora do podcast Mano a Mano (Crédito: Rodrigo Portela)
Semayat Oliveira acredita que as mulheres periféricas não têm uma única voz. “Até hoje, as pessoas pensam em como a periferia vai votar, como se fôssemos homogêneos. Mas temos opiniões e perspectivas diferentes. Cada mulher tem uma realidade muito distinta. Há periferias mais precárias, e também há recortes diversos para cada comunidade e pessoa.”
É essa consciência da diversidade feminina na periferia que acompanha a jornalista em todos os seus projetos, das reportagens no blog Mural, hospedado na Folha de S.Paulo, ao trabalho ao lado do rapper Mano Brown no podcast Mano a Mano. Acima de tudo, é o que norteia o Nós, Mulheres da Periferia, veículo que ela cofundou e onde atua como gestora e estrategista.
De Presidente Prudente (SP), Semayat foi criada no Jardim Miram, divisa com o ABC Paulista, na zona sul de São Paulo. O envolvimento político começou já na infância. Seus pais tiveram uma juventude muito ativa e consciente: a mãe acompanhou o movimento negro e, o pai, o movimento sindicalista. “Minha vida, desde cedo, foi assim. Circulávamos pelos eventos dos movimentos negros. Vivi nesses espaços e era neles que me sentia mais livre, ao lado de crianças como eu, negras de pais que também deram nomes africanos para seus filhos”.
Mas nem tudo era tranquilo. Semayat diz que as escolas públicas não estavam preparadas para discussões de raça, e as crianças e jovens também não tinham muita noção do que era isso. “Como criança negra, tive uma vivência de muita violência em escolas públicas. Mas, por sermos filhas de quem éramos, minha irmã mais velha e eu éramos muito combativas. Reagíamos no argumento ou na mão, mesmo. Minha mãe e meu pai nos ensinaram o que era racismo, o que significa ser mulher negra e a força de se impor. Essa era uma grande diferença nossa em relação às pessoas negras da época”, diz.
Semayat lembra que sempre foi muito criativa e adorava contar histórias, mas, como muitos jovens, não sabia o que queria fazer na faculdade. A opção pelo jornalismo veio por não saber o que fazer. “Entrar na faculdade era condição para a gente. Meus pais diziam que o ideal era entrarmos em uma universidade pública. Caso contrário, teríamos que pagar”. Em 2006, em meio à lei que determinava a reserva de vagas para negros e indígenas no âmbito do ProUni, programa que passava a oferecer bolsas de estudos em instituições particulares de Ensino Superior, Semayat começou a buscar faculdades que possibilitassem a ela estudar sem pagar. Só depois verificou quais cursos aquelas instituições ofereciam. Como a Universidade Metodista de São Paulo não tinha Serviço Social, sua primeira opção, escolheu o Jornalismo.
“Quanto entrei na faculdade, foi um choque. Era boa em redação, em construir narrativas, mas tinha muitos problemas ortográficos e foi difícil me adequar aos padrões jornalísticos”, diz. No período, Semayat começou a ler muito para tentar aprimorar seu português e sofrer menos preconceito entre os colegas do curso. “Sentia julgamentos até de quem estava começando a construir amizade. Comecei a ler muito, para tentar melhorar meu português, e consegui sanar o problema no primeiro ano. Ao mesmo tempo, me senti engessada logo no início, e não sabia muito se aquilo me interessava. Mas, com o tempo, entendi que o jornalismo era muito sobre contar histórias, e nisso o curso passou a me encantar: era um tipo de serviço social”, completa.
JORNALISMO DAS PERIFERIAS
Quando se formou, em 2010, Semayat não queria trabalhar em uma redação, pois achava o ambiente hostil. Naquele ano, ela migrou para a área de comunicação de uma companhia aérea (Gol Linhas Aéreas Inteligentes), onde antes atuava como operadora de telemarketing. Embora não quisesse trabalhar nas redações tradicionais, a jornalista não tinha desistido de contar histórias. Pesquisou diversos lugares para escrever, até achar o processo seletivo para o blog Mural, criado em 2010 e hospedado na Folha de S.Paulo. Lá, ela se viu diante da possibilidade de fazer um novo tipo de cobertura jornalística, a partir do seu bairro. “Sempre me vi como mulher negra e gostava de cobrir os coletivos negros, mas foi quando entrei, em 2011, que pude olhar para meu bairro de um jeito diferente.”
O blog Mural é alimentado diariamente por dezenas de correspondentes comunitários, formado por estudantes e profissionais de jornalismo, para trazer notícias da periferia, se desassociando do jornalismo tradicional dos centros, produzido pela grande imprensa, e trazendo uma prática elaborada pelos próprios moradores das comunidades, especialistas nos lugares onde vivem.
“A questão racial sempre chegou antes para mim, então escrevia muito sobre violência racista. Mas há toda uma conjuntura de classe e raça que as amizades ali me fizeram enxergar melhor. Fiz amigos para a vida.”
NÓS, MULHERES DA PERIFERIA
A criação de um movimento para representar as mulheres da periferia foi provocado pela jornalista Isabela Moi, do blog Mural. “Em 2012, o Mural sugeriu que as mulheres do coletivo, na época eu, Jéssica Moreira, Bianca Pedrina, Mayara Penina, Citia Gomes e a Lívia Lima, pensassem e escrevessem sobre essa questão. Lembro que nos juntamos em um McDonald’s para entender o que significava ser mulher na periferia para nós. Para mim, a questão racial vinha primeiro. Para outras, as jornadas de transporte, a presença de mulheres periféricas nas universidades, carregada de preconceitos e comentários. Tínhamos medo de voltar para nossos bairros, que eram menos cuidados do ponto de vista da segurança pública e da própria lógica da cidade. A Isabela entendeu que tinha mais coisa ali, e incentivou que a gente se reunisse para pensar o que fazer”.
A partir desses encontros, as jornalistas decidiram juntas criar um novo site. “O Nós, Mulheres da Periferia nasceu de forma coletiva, e assim ainda é. Aprendemos a desenvolvê-lo no caminho”. Hoje, o veículo tem cobertura para além de São Paulo, onde foi criado. “Até 2020, nosso foco era na capital paulista. Em 2021, a cobertura se tornou nacional. Temos de tudo, de matérias afro-amazônicas a internacionais”.
IMPRENSA, PRECONCEITO E HISTÓRIA
Apesar de muitos não perceberem, diz Semayat, o Nós, Mulheres da Periferia sofreu muito preconceito no início. “Lembro que uma jornalista nos elogiou dizendo que ‘fazíamos direitinho’. Éramos vistas como bonitinhas, raras, um movimento inesperado. Tivemos que romper com isso ao longo dos anos”. Para a jornalista, a visão plural e mais humana das comunidades foi uma das contribuições que o Nós, Mulheres da Periferia trouxe para a mídia na cobertura da periferia. “Uma das práticas mais importantes que a grande imprensa adotou foi nomear as mulheres periféricas. Passamos a citar os nomes das babás e empregadas domésticas, das vítimas de genocídio e de violência policial. Não mencioná-las é uma violência dupla”.
Mas a mudança não teria sido apenas pela causa. “Passamos a disputar público com a grande mídia, e isso contribuiu para o desenvolvimento de uma imprensa mais diversa e um mercado mais disputado. Hoje, há muitos novos talentos que querem começar a carreira conosco, para aprender o jeito como fazemos jornalismo. Isso é incrível, mas também um desafio muito grande.”.
Apesar do reconhecimento do Nós, Mulheres da Periferia, Semayat não deixa de lado as lutas do passado que permitiram que o veículo esteja ativo até hoje. “Somos fruto de um trabalho de séculos atrás, desde quando surgiu ‘O homem de cor’, primeiro jornal brasileiro a tratar dos problemas da população negra, antes mesmo da escravidão ser abolida formalmente. Mas, assim como inúmeros outros veículos do mesmo perfil antes de nós, ele não conseguiu sobreviver financeiramente, pois não tinha incentivos.”
EMPREENDEDORISMO E ESTRATÉGIA
Semayat conta que seu papel como jornalista no Nós, Mulheres da Periferia tem dado lugar, cada vez mais, ao de empreendedora e estrategista. Ela passou a produzir menos para o veículo e ficar mais à frente dos negócios e da estratégia do projeto com as jornalistas. “Em geral, as dificuldades são maiores quando são mulheres à frente da liderança desse tipo de negócio”, diz. “O mercado de comunicação e de imprensa no Brasil é extremamente branco. São empresas familiares muito fortes, lideradas por homens, que viveram por muito tempo desconectadas do que é o Brasil real.” Para migrar definitivamente de seu trabalho na comunicação interna da companhia aérea para o site que criou com suas parceiras, ela teve que investir e superar algumas inseguranças.
“Nós, mulheres, temos uma condição crônica de insegurança. Mas jornalistas são, mesmo, massacradas. Por isso, qualquer erro de apuração pode nos causar um problema de reputação violenta, a ponto de não conseguirmos nos reerguer. Então acabamos seguindo outro ritmo. É muito difícil ser mulher empreendedora, e o mercado de comunicação não ajuda. Mas seguimos com nosso objetivo de trazer diferentes olhares sobre a periferia e a desigualdade no Brasil. Deixar a redação fluir e crescer, com olhar especial para linha editorial. Queremos que o Nós, Mulheres da periferia complete 100 anos, assim como a Folha de S.Paulo.”
FUTURO CRIATIVO
Quando tinha 7 anos, Semayat dizia que iria trabalhar na editora Ática, e o sonho tem voltado. “Eu dizia que queria ser como a Ruth Rocha, porque ouvia muito sobre ela. Como ela era da editora, falava isso. Mas o que gosto de fazer é mesmo escrever, e estou me conectando novamente com aquela menina que eu era. Quero fazer literatura”.
Em 2017, a jornalista passou alguns meses nos Estados Unidos para aprender a falar inglês, e fez também um curso de escrita criativa. Hoje, Semayat está com um livro de ficção em desenvolvimento. “A obra vai contar a história de uma comunidade negra com quem tive contato. Somos uma diversidade muito grande, de histórias e realidades. Recentemente participei do programa Roda Viva, com muita alegria, e Lázaro Ramos falou sobre como as pessoas negras de classe média são pouco retratadas. Quero falar sobre isso. Sobre quem vive na periferia e de repente vai para outra realidade e o choque emocional que isso causa, a dificuldade com os dois mundos. Esse conflito me interessa muito.”
A narrativa do livro de Semayat diz um pouco sobre o que ela tem vivido. “Não moro mais na periferia, então esse novo lugar é um pouco confuso para mim. Não sabemos nomeá-lo, apenas senti-lo. É sobre a primeira vez que entrei em um restaurante que não imaginava entrar. Quando andei de taxi sem ter que convencer a pessoa a fazer isso, porque pude pagar. A primeira vez que andei de avião. Enfim, sobre conseguir acessar lugares que antes eram inimagináveis, mas que continuam desconfortáveis. E não deixa de ser [desconfortável] nunca, mas é sobre cruzar essa linha. Da ponte pra cá, da ponte pra lá, como diriam os Racionais MCs”.
Mano Brown, inspiração de Semayat no jornalismo e na vida, aliás, é hoje colega de trabalho da jornalista. Há um ano, ela trabalha como consultora do podcast Mano a Mano, desde quando o primeiro episódio foi ao ar. “Meu papel é contribuir na pesquisa de cada entrevistado e colaborar na construção do roteiro, no entendimento do contexto da história. A preocupação do Mano é fazer com que as histórias tenham sempre utilidade pública, e minha função é colaborar para que isso aconteça. O roteiro é dele, claro, e as coisas fluem bastante. É uma honra muito grande estar no projeto”.
Para ela, Mano Brown foi fundamental para sua compreensão e leitura sobre o que é a periferia de São Paulo. “Devorei todos os CDs dos Racionais. O rap fez gerações inteiras se conectarem e foi o que me trouxe identidade de grupo”, garante. “O rap que traçou qual era a realidade do Brasil no início. Mostrou a importância de conhecermos e falarmos sobre o que acontece no nosso bairro da periferia. O que veio depois, como o Nós, Mulheres da Periferia e tantos outros veículos, foram agraciados por isso. Assentaram esse chão para gente.”