Mayra Cotta: “As mulheres vivem anos de assédio até denunciar”

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Mayra Cotta: “As mulheres vivem anos de assédio até denunciar”

A advogada fala sobre violência de gênero e o desafio de ser uma jovem que defende mulheres em situação de assédio


11 de julho de 2022 - 9h46

Mayra Cotta é advogada especializada em gênero (Crédito: Divulgação)

As denúncias mais recentes de assédio sexual envolvendo o agora ex-presidente da Caixa Econômica Federal Pedro Guimarães trouxe mais uma vez à tona um problema que não é novo, mas está ganhando cada vez mais evidência: a violência de gênero no ambiente de trabalho. 

Para Mayra Cotta, advogada especializada em gênero que representa a humorista Dani Calabresa e outras mulheres no caso de assédio contra Marcius Melhem, quando as mulheres conseguem denunciar, elas estão no limite: “O processo de denúncia requer coragem, e tenho muita honra e orgulho dessas mulheres. Mas é muito errado a coragem estar associada a esse ato. Quando as mulheres denunciam, fazem isso na força de um momento em que não têm mais o que fazer”, diz. 

Confira abaixo nossa entrevista com Mayra, que é doutoranda em Política na New School for Social Research, em Nova York, mestre em Direito Criminal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e cofundadora da consultoria Veredas. Ela também é co-autora do livro “Mulher, Roupa, Trabalho: Como se Veste a Desigualdade de Gênero”, ao lado da consultora de moda Thais Farage. 

 

Que características ou habilidades considera essenciais em uma mulher advogada de vítimas de assédio sexual como você? Como você as desenvolve e as alimenta regularmente? 

Acho que a primeira coisa é ter sensibilidade. Temos valores muito masculinos, que vêm do mundo do trabalho. Da racionalidade, do desapego e da frieza. Mas eles não funcionam para lidar com violência de gênero. Precisamos de sensibilidade e empatia para compreender nossa cliente e entendê-la mesmo, e se conectar com ela em uma dimensão epistemológica. Adquirir isso é muito difícil, pois somos socializadas para nos afastarmos dessas características. Mas o convívio entre mulheres ajuda muito no desenvolvimento dessas habilidades. Devemos conviver mais entre nós, sair mais com amigas, trabalhar mais entre mulheres. Algo que faz toda a diferença no desenvolvimento desse trabalho. Ao contrário de atrapalhar, nos diferencia e nos ajuda muito para o sucesso do que fazemos. 

E algo que aprendi desde cedo com a minha mãe é estudar. Não tem outro jeito. Todo dia ler, pesquisar e se preparar. Acho que é algo muito básico, mas vamos perdendo no dia a dia. Reservo sempre algumas horas no dia para leituras e pesquisas. Também acho que o treino da escrita é muito importante para elaborar as coisas que pensamos. No direito, ficamos muito treinadas a pensar na solução para um caso específico, mas a dimensão do estudo é importante, pois precisamos saber quais são os instrumentos processuais adequados para atender a demanda da sua cliente e entender o que precisa fazer. E tem ainda a dimensão crítica, de pensar na estratégia e refletir estruturalmente, que também é fundamental, e isso requer uma elaboração. Às vezes, com a rotina, acabamos virando muito tarefeiras. Tomo muito cuidado para que nos meus trabalhos, seja na consultoria ou na advocacia, eu nunca fique nesse ritmo tarefista, de apenas cumprir demandas e fazer somente o que é exclusivamente mais burocrático e formal. E é fácil de perder isso no dia a dia. Então precisamos sair do automático todo dia, nem que seja um pouco. 

Você já teve algum tipo de sentimento de autossabotagem? Como lida com essa situação e que dicas dá para mulheres que se sentem assim nos projetos, áreas e lugares em que atuam? 

Acho que essa insegurança e esses sentimentos são comuns. A dúvida sobre estarmos fazendo bem nosso trabalho é saudável, mas passa a ser ruim quando nos bloqueia de fazer as coisas por medo. O difícil é saber se você está sendo cautelosa ou está com medo.  

É engraçado isso. Militei muito no movimento feminista, e fazíamos reuniões com mulheres mais jovens para participarem da organização. O que sempre perguntávamos para essas meninas na primeira reunião era: em uma sala de aula, por exemplo, você já teve uma coisa interessante a dizer, mas não falou porque achava que não era algo bom o suficiente, e aí um colega homem levantou a mão, disse uma coisa qualquer, todos acharam incrível, e você pensou: ‘eu podia ter falado’?” Todas as mulheres se reconheciam nessa cena. Para falar numa reunião, para dar uma contribuição, nos sentimos inseguras e precisamos ter certeza de que nossa colocação precisa ser extraordinária. E queremos ter muita certeza, estarmos muito preparadas, e analisamos isso com muita intensidade.  

Costumo brincar que mulher no trabalho é como restaurante vegano. Quem não é vegano, come sempre ‘mais ou menos’, mas um restaurante vegano que é apenas ‘mais ou menos’ é inaceitável. Todo mundo reclama. Com a mulher é parecido: está cheio de homem branco fazendo trabalhos medíocres e está tudo bem, mas se é mulher, não existe perdão e tolerância. Não há espaço para mediocridade, temos que ser incríveis. Mulher é muito boa no que ela faz, pois não sobrevivemos no caminho do meio. E isso traz inseguranças para a gente. Participo de muitos espaços profissionais só para mulheres e todas são incríveis e sempre têm uma ideia genial para compartilhar. Na minha sala de aula, prezo por criar um ambiente de segurança para falar e estimulo mulheres para se expressarem mais. Sinto que a participação em espaços públicos, por exemplo, é algo que não estamos acostumadas, e é necessário um esforço para mudarmos essa realidade. É um ato político mesmo. Dar opinião, contribuir com ideias, se expressar politicamente.  

No ensino médio, eu tinha um professor de redação que admirava muito e achava inteligente. E eu sempre gostei de escrever. Ele me estimulava, falava que eu escrevia muito bem, e eu me sentia validada. No final do terceiro ano, ele me assediou. E aquilo me marcou muito, e demorou muito para falar sobre aquilo com alguém. Quando fui fazer o doutorado, foi com a Nancy Fraser, filósofa que super admiro. Na hora, fiquei feliz, mas pensei: ainda bem que é uma senhora que está me aceitando, porque não tenho nenhuma dúvida de que consegui pelos meus méritos. O assédio é muito cruel porque coloca uma dúvida na nossa competência. Achamos que só estamos naquele lugar porque alguém nos colocou ali para nos assediar. Algo me marcou nesse episódio, de talvez colocar uma sombra de dúvida de que estava recebendo a validação de um professor que na verdade estava interessado em outra coisa. E isso nos faz passar a não acreditar na validação dos homens e a não conseguir nos valorizar. Por isso, ter amigas e colegas de trabalho para trocar e ter validações necessárias nesse espaço também é muito importante. 

Qual é o principal desafio de uma mulher advogada de vítimas de assédio sexual? 

Tem, primeiro, o problema do assédio sexual em si. Brigar por justiça de mulheres em situação de assédio é muito desafiador. Estamos falando do ambiente de trabalho, de tentar transformar as empresas para que os assédios não aconteçam e sejam locais seguros para trabalhar. No fundo, o que queremos é que todas as mulheres trabalhem sem serem assediadas. 

Mas o que é muito difícil ainda é o nosso meio jurídico, que vê mulheres advogadas jovens com ceticismo e até uma certa soberba. Acham que seremos facilmente intimidadas. Ainda existe uma certa forma masculina e muito arrogante de se trabalhar na advocacia, em que não enxergam mulheres advogadas como colegas que devem respeitadas. Ainda existe uma truculência do mundo da advocacia com as mulheres advogadas, e isso é um desafio muito grande, tanto que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) hoje está com uma campanha de fortalecimento dessas profissionais, pois entende o quanto essa questão é central. 

As vítimas do Marcius Melhem, suas clientes, escreveram uma carta para as do recente caso da Caixa Econômica, encorajando-as sobre a denúncia e principalmente sobre o que está por vir. Em que estado as vítimas estão quando te procuram para defendê-las e o que costumam enfrentar após as denúncias? 

É muito curioso isso. Tem sempre a pergunta sobre denúncias falsas e minha resposta é a mesma: olha, minha experiência mostra que quando as mulheres conseguem denunciar, elas estão em uma situação de não aguentar mais. É o último recurso mesmo. Muitas saem do trabalho, buscam outros empregos para conseguir enfrentar isso. O processo de denúncia requer coragem, e tenho muita honra e orgulho dessas mulheres. Mas é muito errado a coragem estar associada a esse ato. Quando as mulheres denunciam, fazem isso na força de um momento em que não têm mais o que fazer. Estão muito no limite. 

Existe um dado dos Estados Unidos de violência doméstica que é muito representativo de como somos socializadas: uma mulher passa por 35 episódios de violência antes de conseguir denunciar. Com o assédio é muito parecido. Elas passam por situações difíceis por anos. Elas não vivem apenas um episódio para denunciar, são realmente anos. Já vi casos de homens que denunciam após o primeiro caso, mas nunca de mulheres. Somos muito socializadas para o não-conflito, para o apaziguamento, para sermos simpáticas e sorridentes. E o assédio é muito cíclico, como acontece com toda violência de gênero. São fases. Algumas mais intensas, outras menos intensas, que inclusive ajudam a expandir os limites do aceitável. E aí, quando chegam no limite, elas denunciam. 

É um processo muito difícil para quem passa por isso, e as advogadas também cumprem um papel importante e necessário de proteção. Em geral, as mulheres são acompanhadas de apoio psicológico, e são processos difíceis e importantes. Nós, como sociedade, temos o dever de trabalhar para que um processo de denúncia seja o menos custoso possível para uma mulher. ‘Tudo bem’ mulher querer trabalhar sem ser assediada, e no fundo é sobre isso. Não conheço mulheres que tenham tomado essas decisões de denunciar por vingança ou para querer punir alguém. Mesmo: o que elas querem é trabalhar sem ser assediadas. 

Você é muito intimidada pelos homens acusados? Já recebeu alguma ameaça? Como você lida com isso? 

Sempre há uma tentativa de intimidação. O assédio se perpetua muito na ideia de que as mulheres não são fortes o suficiente para vocalizarem seus desconfortos e enfrentarem seus assediadores. É uma visão geral sobre as mulheres, misógina, e quando há uma mulher advogada em um caso desses, isso também vai ser projetado nela. Então essas estratégias de ameaça, intimidação e quase uma violência moral e psicológica são muitas vezes adotadas pelos assediadores e suas defesas. Vem dessa herança truculenta com as mulheres no mundo do trabalho de maneira geral, que vemos também na advocacia.  

Muitas vezes atacar e intimidar advogadas faz parte, sim, da forma como assediadores se defendem. Infelizmente é mais uma dimensão desse mundo misógino, que principalmente no trabalho formal é muito truculento com mulheres. Lidamos com isso nos fortalecendo, não tem outro jeito. Temos grandes parceiros e aliados que estão com a gente, além das próprias mulheres. É um processo de fortalecimento mútuo. A advogada tem muito o papel de ser um esteio para a mulher que está passando por um processo judicial de violência de gênero, e isso nos fortalece mutuamente. Então em nenhum momento mesmo pensei que por isso seria melhor não enfrentar tudo isso, por medo. Na verdade, isso só nos deixa mais fortes. E acho que sentir um pouco de raiva dessa forma como somos menosprezadas é bom, pois a raiva vira força.  

Para você, o que é necessário para que o assédio deixe de existir no ambiente de trabalho? 

Acho que precisamos, primeiro, institucionalizar a responsabilidade pela criação de ambientes de trabalho saudáveis. As mulheres têm que denunciar, sim, mas as empresas precisam se responsabilizar proativamente pela avaliação do ambiente de trabalho e pela criação dos mecanismos necessários para que o assédio não aconteça. Então as empresas precisam disponibilizar os espaços para que denúncias sejam feitas e precisam intervir naquele local com formação e com as conversas difíceis. Muitas vezes um caso de assédio acontece porque ninguém na empresa se sentou com a pessoa que têm condutas inadequadas e disse “você não pode fazer isso. Se você continuar com essa ação, vamos te desligar”. Enfim, as conversas difíceis mesmo, que são complicadas, mas precisam acontecer. Então essa institucionalização da responsabilidade para a construção dos ambientes saudáveis é fundamental. Não vamos avançar apenas contando com a força da denúncia das mulheres. 

Outro lado disso é nosso empoderamento e fortalecimento para conseguirmos lidar com essas situações cada vez mais. É fazer o endereçamento da nossa socialização para que não seja tão voltada para não criar conflito e ser agradável. Que a gente esteja em uma sociedade que nos dê o espaço necessário para vocalizarmos nossos desconfortos. Não é uma questão do empoderamento individual. Não é sobre “eu tenho que ser forte o suficiente para poder vocalizar meu desconforto”, é “tenho que viver numa sociedade em que a vocalização desses desconfortos seja naturalizada”. Temos que tirar essa responsabilização individualista, como se fosse resolver isso empoderando individualmente as mulheres. Não adianta nada a gente empoderar as mulheres se a gente continua vivendo em uma sociedade que vai nos sufocar e nos calar. Então a dimensão estrutural disso, da nossa responsabilidade nas transformações sociais é indispensável. Não tem resposta muito simples, mas acho que vamos avançando desse jeito. 

Na sua opinião, como se comportam a imprensa e a justiça brasileira nos casos de assédio sexual envolvendo pessoas públicas e celebridades? É diferente do tratamento de pessoas comuns? Como? 

Esses casos são muito recentes para termos um diagnóstico, e faz pouco tempo que discutimos isso no sistema da justiça. Mas o grande desafio é a compreensão da violência de gênero. Não é um crime comum como furto e homicídio: ele é muito complexo, estendido no tempo. É mais um processo do que um fato em si. 

Nos casos midiáticos, acho que existe o desafio da responsabilidade da imprensa de como tratar o caso. Nem sempre querem debater o assédio, mas expor a mulher e julgá-la pelo seu comportamento. Há muitas jornalistas sérias, comprometidas, que são fundamentais, mas ainda temos um tratamento de tabloide, da fofoca, que atrapalha muito. Temos que dar um passo para entender que precisamos falar da violência contra as mulheres e do assédio com uma dimensão estrutural, e não no caso a caso, no âmbito do indivíduo. As coisas se perdem na fofoca, enquanto deveríamos focar em soluções. O assédio acomete metade das pessoas que trabalham no mercado formal no Brasil. Precisamos falar dessa dimensão estrutural.  

Claro, os casos midiáticos são bons para trazer o tema à tona, mas não são os únicos. Precisamos pensar em como aproveitar o momento para fazer os debates importantes e estruturais.  

Quais mulheres inspiradoras você segue, lê e observa? Como elas te inspiram? 

Nancy Fraser é uma grande e imensa inspiração. Uma das pensadoras mais incríveis do mundo do direito é a Lélia Gonzalez, ela tem uma forma incrível de ver a construção do mundo jurídico ibérico e as influências disso no Brasil. É uma pensadora muito complexa e genial.  

Uma das mulheres que eu mais gostei de conhecer na minha vida intelectual e que admiro muito é a Alexandra Kollontai, que foi diretora do Soviete de Moscou, na revolução russa, e foi a liderança feminina que mais fez políticas públicas para as mulheres. Criou creches, lavanderias e cantinas estatais para apoiar as trabalhadoras. Foi a primeira e talvez até hoje a mais fundamental e que trouxe mais mudanças práticas, concretas e estruturais para a vida das mulheres a partir da responsabilização estatal pelo trabalho reprodutivo [cuidado das crianças, da casa e da alimentação]. 

Por fim, tem alguma dica de séries, filmes, livros e/ou músicas que consumiu recentemente e te fizeram refletir sobre a condição e o papel das mulheres, sobretudo das vítimas de assédio? 

Pode ser contraintuitivo, mas gosto muito da série Ted Lassos. Os personagens são muito masculinos, mas é uma masculinidade diferente, não-hegemônica. Há diálogos entre homens que nunca vimos, e desconstrói a masculinidade dominante. E os papeis femininos são muito bons. 

Um dos melhores filmes sobre assédio no trabalho é “A Assistente”, que é um dia na vida de uma assessora de um homem. Não tem drama, não tem muita violência. É apenas a rotina da invisibilização e da naturalização do assédio e como isso chega a essa situação. 

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