Apatia algorítmica
Doença está matando nossa capacidade de inovação e criatividade, seja no plano pessoal ou profissional
Na minha opinião, Jorge Drexler é um dos artistas mais talentosos da sua geração. Em uma de suas músicas — feita em parceria com a rapper israelense Noga Erez — ele nos presenteia com “¡Oh, Algoritmo!”, uma letra com um fino tom de ironia, bem diferente de suas composições mais conhecidas. Em um trecho, os dois provocam: “Me diga o que devo cantar, oh algoritmo…”. Em outro, aprofundam o confronto: “Somos peixe ou isca?”.
O algoritmo talvez seja um dos grandes antagonistas do nosso tempo. Muita gente critica seu uso por parte das plataformas, que lucram com nosso comportamento. Também se questiona o quanto ele é enviesado por interesses, comunidades ou tendências — e como isso direciona narrativas, debates e polêmicas. Indo além: o quanto ele sequestrou a comunicação e a forma de falar com os consumidores.
Tudo isso é verdade, sem dúvida. Mas aqui, quero trazer um aspecto mais profundo, que impacta todo o nosso mercado — não só do ponto de vista individual. Acredito que estamos sofrendo de uma nova “doença”, silenciosa e extremamente prejudicial: a apatia algorítmica – AA. E essa nova condição está matando nossa inventividade, capacidade de inovação e criatividade — tanto no plano pessoal quanto no profissional. Explico.
A AA já influencia todos os tipos de decisão que tomamos. Profissionalmente, determina como nos relacionamos com o mercado. O teste é simples: peça ao ChatGPT para melhorar um texto seu para o LinkedIn. Ele provavelmente vai sugerir bullet points, ilustrados com emojis e frases de efeito. Vai recomendar a melhor estratégia para alcançar mais pessoas: talvez uma foto sorrindo, ou um tom dramático, recheado de analogias clichês. Tudo finalizado com uma pergunta provocativa. Esse é o algoritmo informando à IA como devemos nos comportar.
Do ponto de vista das marcas, a discussão algorítmica passou a se sobrepor a qualquer visão estratégica de longo prazo — anulando reflexões profundas sobre qual problema uma marca realmente resolve. As marcas já tiveram coragem de enfrentar “inimigos” culturais, propor ideias que faziam bem ao mundo e oferecer pensamentos sociológicos com valor real para a sociedade.
A Johnnie Walker nos fazia refletir sobre o progresso no novo milênio. A Nike redefiniu a competitividade com base na superação individual. A Apple mostrou que a tecnologia deveria servir à criatividade — e não o contrário. Todos esses pensamentos nos ofereciam valor cultural. Essas marcas continuam por aí, claro, mas esse tipo de contribuição se tornou raro. A AA nos empurra para pensamentos curtos, pequenos e superficiais — pautados por um jogo em busca de micro-KPIs.
Com o marketing não é diferente. Vejo clientes cada vez mais sequestrados pelo mindset que a AA impõe: pensamento de curtíssimo prazo, insegurança extrema sobre o que pode ou não engajar, falta de coragem para propostas autorais e uma busca incessante por repetir fórmulas de sucesso.
Claro que esse comportamento também é influenciado por fatores macroeconômicos. Mas dá a impressão de que o algoritmo implantou um chip de apatia na cabeça de todos — e isso impacta a forma como esses profissionais operam, os parceiros que escolhem e onde colocam sua energia. Talvez isso explique por que muitos se dedicam com tanto afinco à autopromoção no LinkedIn. O sucesso passou a ser individualista.
As agências também não escapam. Grande parte da crise que enfrentam está relacionada à AA. Sentem-se perdidas, buscando qual ideia rápida, superficial e sem estratégia pode gerar o “grande engajamento do dia”. Esqueceram que construir uma marca de verdade leva tempo, exige consistência. Colocar uma marca na cultura popular requer profundidade, método, estratégia e ideias inovadoras. E também um modelo de negócio que acompanhe as transformações.
Em vez disso, muitas preferem jogar o jogo da influência, apoiando-se em política e negociação. Ruim para o mercado. Pior ainda para as independentes que não têm esse ‘poder’.
Depois disso tudo, você pode estar se perguntando: não há saída? Como bom realista, não acredito em bala de prata. Mas acredito que precisamos ter consciência de que algo maior está moldando nosso comportamento — até o ponto de perdermos o controle. E isso pode acontecer não pela IA, mas pela AA.
Combater qualquer tipo de apatia exige um choque de comportamento. E, assim como na música de Drexler, talvez o primeiro passo seja uma boa dose de ironia e autocrítica. Isso já é suficiente para nos manter atentos, desconfiar das decisões fáceis e questionar essa obsessão por atalhos que nos levam sempre ao mesmo lugar.
Na minha opinião, o segundo passo vem de outra referência do próprio Drexler: seu TED Talk “Poetry, music and identity”.
Uma das muitas lições que ele nos oferece é que nossa identidade se constrói a partir de conexões profundas e diversas com a cultura e a história. Essas conexões também deveriam moldar a forma como pensamos as marcas. Nenhuma apatia sobrevive à inventividade que nasce da mistura de referências improváveis — que, juntas, trazem uma nova perspectiva para algo já conhecido.
Outro aprendizado: as coisas só parecem puras (ou simples) quando vistas de longe. Quanto mais nos aproximamos, mais complexas (ou ricas) se tornam. Com as marcas, é a mesma coisa. Quando misturamos a história de uma marca com a nossa e com hipóteses provocativas sobre tensões culturais, criamos algo realmente grande. Nenhuma marca se tornará relevante com base apenas em métricas superficiais.
Na prática, isso exige que nos desenvolvamos para criar essas conexões inesperadas. Conexões que só podem ser feitas a partir de um olhar humano, enraizado em nossa história e ancestralidade. Exige também reconhecer que um framework pode ser essencial para criar algo verdadeiramente novo.
Assim como Jorge Drexler foi desafiado por Joaquín Sabina a usar a Décima para compor sua música, as marcas também precisam de estrutura para atingir o extraordinário. Aqui na agência, temos nosso próprio método. Mas o mais importante é confrontar ideias dentro de uma lógica construtiva — e não destrutiva, como o algoritmo frequentemente impõe.
No fim, conteúdo e forma só engajam de verdade quando carregam uma narrativa ‘rítmica’, capaz de nos desafiar à liberdade intelectual que nenhuma tecnologia pode oferecer.