Das ausências presentes
Algumas pessoas se vão, mas estarão sempre conosco, enquanto outras é preciso deixar ir e não voltar
Parte 1: das ausências presentes
Naquela esquina, ainda é possível ver um homem de camisa estampada, com os braços cruzados, a olhar o movimento das mesas da calçada, a perceber o correr nem sempre harmônico dos carros na rotatória ao seu lado, a mirar os detalhes quase imperceptíveis no balé de garçons e garçonetes, a antever qualquer entrave na coreografia das bandejas e pedidos, a perceber com precisão as diferentes pessoas que estão ali no seu bar.
Sim, o seu bar. O nome está na parede e no cardápio recém-produzido. A foto dele, ainda menino, servindo uma cerveja para o pai é a imagem que parece estar no altar do seu estabelecimento. E digo altar porque ali preces são feitas, juras são trocadas, amores são firmados, promessas diversas são ditas e depois quebradas, amizades são sacramentadas para todo o sempre.
O homem não está mais lá na esquina, porém, todos que o conheceram ainda o veem, sentem sua presença, escutam sua voz com uma rouquidão característica e ouvem a gargalhada que se encerra com a expressão “é brincadeira”. Gilberto Abrão Turibus, o Giba, é o nome dele. Bar do Giba é o seu lugar no mundo. Eu sou testemunha da sua ausência, agora, sempre presente.
Eu conheci o Giba pessoalmente no Cervantes (o antigo) do Rio de Janeiro. Ele estava com um clássico sanduíche de pernil com abacaxi na mão, um chopp na mesa e um sorriso na cara. Eu cruzei o apertado salão e falei: tu não é o Giba? Eu adoro o seu bar. O sorriso abriu-se um pouco mais. Pedi um chopp e ficamos conversando sobre a culinária dos botecos cariocas, sobre rodas de samba, sobre as aventuras dele em busca de um bom caldo de mocotó. Giba conhecia demais a cultura do bar e, talvez por isso, sabia muito da montanha-russa que é o parque da vida.
Nas mesas do seu bar, santos e pecadores sentavam lado a lado, trocavam de papel muitas vezes, molhavam a palavra com uma cerveja gelada, celebravam ou amaldiçoavam os acontecimentos cotidianos. Eu escolhi fazer do Bar do Giba um recanto de afetos. Nunca saí de casa infeliz para afogar as mágoas por lá. Muito pelo contrário. Foram mais de dez anos de aniversários comemorados naquelas mesas. Sempre com um pastel de camarão para abrir os serviços.
Enquanto escrevo, posso ver na estante de casa uma garrafa de Steinhaeger que foi um presente do Giba numa dessas voltas em torno do Sol. Ah, o Sol também era tema das nossas conversas.
Giba faleceu no dia 22 de janeiro de 2025. Eu só consegui pisar lá na véspera do meu aniversário, com minha esposa. Os olhos encheram de lágrimas só de parar na esquina e ver a Cátia caminhando em nossa direção. Eu sorri ao ver que agora o bar tem um cardápio de letras rebuscadas. Falei para a Cátia: não sabia que tinham tantas opções. Ela respondeu rindo: nem eu. Pedi um pastel de camarão, olhei ao redor e pensei na beleza que é uma pessoa estar presente mesmo tendo partido. O Giba continua.
Parte 2: das ausências necessárias
“A gente precisa, em todos os departamentos das nossas vidas, parar de chamar de doido quem é mau.” – Zélia Duncan.
Eu nunca conheci um doido em propaganda que fosse doido do cargo dele para cima. Todos que eu conheci eram doidos seletivos. Aquele jeito perverso somente aparecia quando a hierarquia lhe era favorável. “Ai, mas ele é assim mesmo”. “Ai, mas ele é legal para tomar chopp”. “Não liga, não. Ele não faz por mal”. “É o jeito dele. No fundo, ele é uma boa pessoa.”
É preciso curadoria para ser lembrado como doido quando, na verdade, se é mau. Desagradável, difícil, hostil; o doido que não é doido desvia de uma enxurrada de adjetivos que não tangenciam o meticuloso privilégio de ser doido. Não se cobra juízo dele. A sensatez fica reservada aos outros, que se submetem a uma corda bamba cujo fim só pode ser o chão. E quando há tremor, caem sobre os equilibristas dessas interações cotidianas a causa e a consequência. E o doido de conveniência, bem instalado no seu título, balança a corda, imune.
A presença do doido que não é realmente doido marca, na verdade, uma sequência de ausências internas. Preservar o direito de ser doido foi sempre mais importante do que assumir um erro, pedir desculpas, olhar nos olhos. O doido que não é doido (mas é mau) tece, com esse fio antigo, uma imagem desonesta: a presença do doido é a ausência do outro lado dessa tecelagem.
No outro lado, que o doido já não sabe acessar, os equilibristas estão buscando subir de volta às suas cordas bambas, segurando as pontas de uma figura que não existe sem eles. Porque, quando tentamos justificar demais o doido de conveniência, terminamos todos no chão. Por isso, é preciso parar de chamar quem é mau de doido. É preciso chamar pelo que, de fato, ele é: perverso. E deixá-lo ausente, sem usar as nossas desculpas permissivas.
Parte 3: das escolhas
“Escolher as nossas pessoas é o mais próximo que chegamos de controlar o nosso destino.” – Trecho de um episódio de This is Us.
Entre Gibas e doidos que não são doidos, parece simples escolher quem tem que ficar nos departamentos das nossas vidas.
P.S.: Há partes inteiras de um texto que ficam como uma argila à espera de uma mão habilidosa para lhes darem forma. A parte 2 contou com a mão da Júlia Kassu para que a metáfora extrapolasse o campo da comunicação. Sem ela, este seria mais um texto a dormir na gaveta.