Opinião

Pele e tecido: reflexões construindo marcas de moda e beleza

Um olhar sobre o papel simbólico da moda e da beleza como extensões da identidade e caminhos de conexão

Renato Winnig

Executivo de marketing 6 de novembro de 2025 - 14h00

Desde as primeiras pinturas corporais registradas há 40 mil anos, o ser humano veste o mundo e, ao mesmo tempo, é vestido por ele. Como lembra Yuval Noah Harari, o que nos distingue como espécie não é apenas a inteligência, mas a capacidade de criar realidades simbólicas: mitos, crenças, linguagens e, com o tempo, marcas. Antes mesmo de existir moda ou beleza como indústrias, já existia a necessidade ancestral de se expressar. Pintar o corpo, trançar o cabelo, escolher o tecido ou o perfume foram e ainda são formas de dizer quem somos, a que grupo pertencemos e o que desejamos revelar ou esconder de nós mesmos.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss dizia que o adorno é uma linguagem. Cada gesto de cuidado é também um código social, um símbolo que comunica. Grant McCracken, em seus estudos sobre consumo, chamou isso de “ritual de transição”, aquilo que nos prepara para o mundo exterior, que traduz o invisível em forma, cor e textura. O perfume que usamos para uma ocasião especial, a roupa escolhida para um reencontro, o creme aplicado ao fim do dia: cada um desses gestos tem uma potência simbólica que ultrapassa o ato em si. O corpo é o primeiro território da cultura.

Foi vivendo entre o universo da beleza e o da moda que compreendi que, em ambos, o que está em jogo é o mesmo: a expressão da identidade. Um espelho e uma pele. A beleza fala de como queremos nos sentir; a moda, de como queremos aparecer. Juntas, constroem presença. Não vendem produtos, mas permissões de ser. E foi ali, nessa zona de intersecção entre pele e tecido, que percebi que as marcas que realmente tocam as pessoas são aquelas que entendem que expressão é um gesto de liberdade e não de adequação.

Na beleza, aprendi que o cuidado é um ato político e espiritual. Quando uma pessoa cuida de si, está, na verdade, cuidando de uma parte do mundo.

Esse raciocínio, que no Brasil foi sintetizado pelo pensamento do “bem estar bem” via Natura, traduz uma sabedoria ancestral: o “eu comigo” (autoconhecimento e presença), o “eu com o outro” (relações de afeto e empatia) e o “eu com o todo” (reconexão com a natureza e o coletivo). A beleza, nesse sentido, não é vaidade, mas vínculo.

Na moda, aprendi que vestir é escrever uma narrativa. O tecido é texto. Cada cor, forma ou textura traduz o que sentimos e o que desejamos comunicar. No vestir, performamos papéis, pertencemos, desafiamos, ressignificamos, principalmente para uma marca de moda que dialoga com o público masculino como a Aramis. Zygmunt Bauman chamou nossa era de “modernidade líquida”, identidades em constante movimento, em busca de coerência num mundo fragmentado. Nesse contexto, as marcas tornam-se espelhos: ajudam as pessoas a se verem e a se reconhecerem em meio ao ruído.

Mas há algo novo nesse tempo. O que antes era sobre aparência hoje é sobre coerência. Não basta parecer autêntico, é preciso ser. A geração que cresce entre múltiplas identidades digitais, culturais e de gênero exige das marcas algo mais profundo: verdade emocional e responsabilidade simbólica. Como mostram estudos recentes da WGSN e da McKinsey, consumidores jovens associam expressão não mais à exibição, mas à integridade. O “bem-estar” se expande para o campo do “bem-ser”, um estado em que o estilo, o comportamento e os valores caminham juntos.

Esse deslocamento traz uma lição fundamental: a expressão só é plena quando é relacional. O eu não existe isolado. A roupa que visto fala com o olhar do outro. O perfume que escolho dialoga com o ambiente. O cuidado que dedico a mim reverbera na maneira como me relaciono com o mundo. Em tempos de hiperindividualismo e autoimagem, talvez o verdadeiro luxo seja reconectar o eu ao todo e recuperar o sentido de pertencimento que o consumo fragmentado dissolveu.

É aqui que as marcas de expressão, sejam de moda, beleza ou estilo de vida, encontram sua função mais profunda. Não é mais apenas sobre oferecer produtos que deixem a aparência das pessoas melhores, mas também sobre criar sistemas simbólicos que as ajudem a existir com mais consciência, liberdade e vínculo. Sempre acreditei que as marcas não apenas refletem a cultura, mas têm o poder de ajudá-la a evoluir. E talvez essa seja a nova fronteira das marcas contemporâneas: sair da estética e chegar à ética, atravessar o produto e alcançar a presença.

Ao longo dos anos, pude ver isso se concretizar participando de projetos e campanhas que colocaram a humanidade + natureza no centro. Não pela via do discurso, mas da escuta. Entendi que a força de uma marca não está no quanto ela fala sobre si, mas no quanto ela permite que as pessoas se expressem por meio dela. Marcas assim se tornam traduções culturais do tempo em que vivemos e também portais para o que queremos ser.

Hoje, quando penso sobre o futuro de expressão das marcas, vejo que o desafio não é criar o novo, mas criar o significativo. Num mundo acelerado por IA, a vantagem competitiva está no que não pode ser automatizado: empatia, intuição, beleza e vínculo. As marcas que sobreviverão serão aquelas que souberem costurar tecnologia e alma, performance e propósito, estética e sentido.

E talvez esse seja também o meu próprio movimento de agora. Depois de anos mergulhado na profundidade do indivíduo, da identidade e da expressividade, começo um novo olhar sobre as conexões e relações. Entender a essência do “eu” foi essencial para agora poder explorar o “nós”. Porque no fim, entre pele e tecido, o que realmente nos veste é o invisível: o gesto de se expressar e, sobretudo, o de se conectar.