Reinvenção dos laços humanos e a tecnologia
O que une a GenAI para terapia é a tentativa de reconstruir conexões em um mundo de pessoas distantes
O crescimento acelerado da inteligência artificial generativa (GenAI, na sigla inglesa) tem levado essa tecnologia cada vez mais a deixar de ser apenas uma ferramenta de automação para passar a ocupar espaços sensíveis da experiência humana, como o apoio emocional e terapêutico. O principal uso de IA no mundo em 2025 já é para terapia e companhia, à frente de organização pessoal e ajuda para encontrar propósito de vida, segundo levantamento publicado pela Harvard Business Review.
De acordo com estimativa divulgada em maio pelo UOL, já são mais de 12 milhões de pessoas no Brasil usando a tecnologia com esse propósito. A IA, mostram as pesquisas, preencheu um vazio emocional que não sabíamos que existia até então. Assim como as bonecas reborn conquistam pessoas enlutadas, inférteis ou simplesmente solitárias, a IA vem se tornando a confidente digital de muitos mais milhões.
Os números não mentem: 48,7% dos usuários de IA que reportam problemas de saúde mental estão usando ChatGPT para suporte terapêutico, segundo pesquisa da Sentio University. Não como “complemento à terapia” — como terapeuta mesmo. Gente que compartilha traumas, desafios e angústias. Gente que não consegue mais pagar terapia presencial.
Esse mesmo estudo da Sentio University sugere que o ChatGPT pode ser potencialmente o maior provedor de saúde mental dos Estados Unidos, superando até mesmo o Sistema de Veteranos. “Estamos falando de dezenas de milhões de pessoas que estão usando aplicativos de chatbot para saúde mental coletivamente”, escreveu o The Washington Post no ano passado.
A promessa é sedutora, convenhamos: a IA está disponível 24/7, sem julgamentos, sem filas de espera, sem constrangimento. E mais: para muitos, é mais fácil se abrir com robôs do que com humanos.
Plataformas conversacionais, capazes de compreender e responder de forma cada vez mais natural, vêm sendo usadas para escuta ativa, aconselhamento e acompanhamento psicológico. Essa tendência encontra terreno fértil em um cenário global marcado pela chamada “epidemia da solidão”, identificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um problema de saúde pública, com impactos equivalentes ao tabagismo e à obesidade.
O Advanced Voice Mode e, agora o Chat GPT Voice, com o lançamento do GPT-5, elevou essa intimidade a outro patamar. Não é mais texto frio na tela. É uma voz que respira, tosse, ri. Que sussurra palavras de conforto quando você está sozinha às 3h da madrugada.
A solidão contemporânea não está restrita a grupos marginalizados ou a pessoas idosas; atravessa gerações, agravada por transformações no mercado de trabalho, pela mobilidade geográfica e pela hiperconectividade digital, que nem sempre se traduz em vínculos profundos. É nesse vácuo que a IA generativa surge como companhia constante — disponível a qualquer hora, sem julgamento, e com memória personalizada das interações. Ainda que não substitua relações humanas autênticas, para muitos usuários ela já desempenha um papel terapêutico ou paliativo.
Para mim, que fiz terapia presencialmente por mais de 20 anos e, após a pandemia, de forma remota, essa realidade é assustadora. Enquanto fazia pesquisa para este artigo me deparei com uma outra notícia que vem se somar a esse cenário. No Japão, onde o envelhecimento populacional é acelerado e os núcleos familiares tradicionais se fragmentaram, surgiu uma resposta criativa e peculiar a esse fenômeno: o “aluguel de avós”.
Empresas oferecem idosas (sim, há um viés de gênero no envelhecimento, uma vez que as mulheres vivem, em média, oito anos a mais que os homens) treinadas para atuar como figuras afetuosas na vida de pessoas solitárias, especialmente crianças e jovens adultos. Essa prática, ao mesmo tempo curiosa e comovente, evidencia a busca por calor humano em meio à escassez de laços intergeracionais.
A ideia é que essas “avós” possam se beneficiar das habilidades domésticas e sabedoria de idosas — e, ao mesmo tempo, evitar que essas mulheres vivam isoladas. O serviço é aconselhado para quem tem demandas variadas dentro de casa. Um dos principais focos são os pais que precisam de ajuda para cuidar dos filhos em horários específicos. Ou, então, de conselhos sobre como melhor educá-los.
“Os jovens têm respeito e gratidão pelos idosos, que se conectam à sociedade e sentem um propósito em suas vidas. Como primeiro passo para uma sociedade assim, queremos oferecer serviços que aproveitem ao máximo a sabedoria e a experiência dos idosos, que apoiaram o Japão”, diz o site da empresa Client Partners.
Em 2020, o Japão tinha a sociedade mais velha do mundo, com 28,7% da população tendo 65 anos ou mais, sendo a maioria de mulheres. O índice para a Alemanha, em comparação, era de 21,5% e, para a União Europeia, de 20,4%. Já a média mundial era de 9,1%. A expectativa, à época, era de que um terço dos japoneses pertenceriam a essa faixa etária em 2036.
Já um relatório publicado pelo Instituto Nacional de Pesquisa sobre População e Segurança Social do Japão, no final de 2024, concluiu que os lares unipessoais representarão 44,3% do total do país até 2050. Esse número deve chegar a 54,1% na capital, Tóquio.
Segundo o estudo, 10,8 milhões de pessoas com 65 anos estarão vivendo sozinhas em 2050, um aumento de 50% em relação ao número de 2020. Já um censo em 2020 apontou que 38% dos lares tinham apenas uma pessoa, em comparação a 20% em 1985.
A tendência de envelhecimento e redução da população reforça um problema antigo e bem conhecido entre os japoneses, por vezes chamado de solidão epidêmica. Em 2024, a polícia esperava que 68 mil pessoas morressem sozinhas em casa, sem serem notadas, de acordo com uma reportagem do jornal britânico The Guardian.
O fenômeno das mortes solitárias já ganhou até nome em japonês, kodokushi. Segundo pesquisadores, isso acontece por vários motivos, incluindo uma inclinação da sociedade japonesa ao isolamento.
O que une a GenAI para terapias e o aluguel de avós no Japão é a tentativa de reconstruir conexões em um mundo onde a aceleração do tempo, a intermediação das telas e a geografia afastam pessoas. Um recurso é digital, outro é profundamente humano. Ambos, no entanto, refletem o mesmo dilema: como atender a necessidades emocionais básicas em uma sociedade cada vez mais individualizada.
Uma visão otimista desses fenômenos sociais talvez seja que o presente (e o futuro) não esteja em escolher entre tecnologia ou afeto humano, mas em integrá-los para que um complemente o outro, garantindo que a inovação não substitua, e, sim, fortaleça a experiência de estar genuinamente acompanhado. Mas, é inevitável pensar que qualquer que seja o cenário, há transformações profundas em curso nas construções dos nossos laços sociais e eles, não necessariamente, passam por interações humanas.