Uma questão e um rojão
Posso querer um mercado mais justo? Posso querer um trabalho que independa do desrespeito para atingir os seus objetivos? Posso querer crer em ética sem me sentir um trouxa por isso?
Posso querer um mercado mais justo? Posso querer um trabalho que independa do desrespeito para atingir os seus objetivos? Posso querer crer em ética sem me sentir um trouxa por isso?
A cena aconteceu, não é fato inventado nem causo contado. Uma menina aproxima-se da bonbonnière do cinema, os olhos brilham com todas as possibilidades expostas. Ela pergunta com carinho para os pais: eu posso querer? Não foi uma pergunta arquitetada, foi a maneira simples que ela formulou sem pensar. Entre balas, chocolates e pipocas, aquela menina, em poucos segundos, conseguiu definir com inocência que o querer e a gentileza podem habitar um espaço comum. Não me lembro o que ela escolheu, mas sei que conquistou. Ou quero imaginar que sim. Essa pergunta volta à minha memória como uma boa lembrança em tempos brutos.
No dicionário das “ruas” existem duas frases consagradas, ainda que antagônicas: “Querer não é poder”, dizem uns; “Querer é poder”, respondem outros. Eu já me peguei falando as duas em distintas ocasiões. Clichês têm a capacidade de encerrar alguns diálogos, quase sempre os mais enfadonhos. Uma pessoa está discorrendo sobre as suas inúmeras conquistas financeiras ou parece perdida em um emaranhado de autoelogios, você finge prestar atenção e, ao fim, manda: “é, querer é poder”. Ele fica orgulhoso com o reconhecimento, você sai aliviado. Um certo alguém, com tendência para transformar qualquer decepção em lamúrias eternas, gruda no seu ombro. Você ouve pacientemente, mas já sabe o epílogo da conversa. Guarda consigo aquele pensamento que, dito no tom certo, acalma: “querer não é poder”.
O problema do “querer é poder” é o tom, o entorno, o atropelo com que essa frase por diversas vezes é proferida. “Querer é poder” soa como arrogância se dita com voz grave e olhos cerrados. Tem algo de messiânico escondido ou de divino como se, ao querer, o destino passasse a ser escrito por nós. Com punhos em riste, consigo imaginar um coach de vida que faz da frase um brado. Nesse Brasil, cada vez mais extremado, “querer é poder” é o grito dos cantos, com a ausência de diálogo como centro. Todos querem, todos acham que podem, poucos respeitam o outro.
Volto à menina, portanto, com o seu descobrimento da amabilidade perdida e a importância das perguntas que fazemos a nós mesmos. Posso querer um mercado mais justo? Posso querer um trabalho que independa do desrespeito para atingir os seus objetivos? Posso querer crer em ética sem me sentir um trouxa por isso? Para todas as perguntas, um sim é a resposta da não desistência. Para a menina, o impossível estava logo ali atrás de um vidro iluminado, repleto de cores. Mas, ao crescer, essas impossibilidades ficam mais complexas.
Já não é mais sobre escolher o que quiser porque você é o senhor de tudo. Tampouco é sobre pedir permissão a tudo e a todos para alcançar os objetivos. É um passo anterior. É sobre observar e saber conquistar com graça e criatividade aquilo que muitos só conseguem com brutalidade. Quando crianças, os mimados batem os pés para ganhar, os fortes tomam o lanche dos mais fracos no recreio. Quando adultos, isso não muda muito. Aos sonhadores, fica a possibilidade de tatear novas formas de conquistar. Mesmo que seja com uma simples questão: “posso querer?”
02/03/18, Folha de S.Paulo:
“A virada veio em uma oficina literária com o poeta Carlito Azevedo, na Biblioteca Parque da Rocinha, em torno da antiga revista literária “Setor X”, em 2014. O autor pediu para os alunos escreverem um conto a partir da notícia da morte do cinegrafista da Band Santiago Andrade, atingido por um rojão de um manifestante. Alguns alunos escolheram a polícia, outros os manifestantes ou o cinegrafista — Martins imaginou o rojão, que se sentia feliz por, ingênuo, acreditar ser levado para alegrar uma festa.”
Geovani Martins, autor do incrível livro O Sol na Cabeça, nos ensina que criatividade é caminhar por onde a maioria não se atenta. É olhar o quase óbvio e dar novo sentido a ele. É pensar ser o rojão.
*Créditos da imagem no topo: iStock
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