O novo Estatuto Digital da Criança e do Adolescente e seus efeitos
Nos últimos anos, a infância digital brasileira vem sendo moldada por algoritmos, publicidade direcionada e conteúdos que, muitas vezes, exploravam vulnerabilidades emocionais e cognitivas dos menores na Internet
Com a recente sanção da Lei nº 15.211/2025, o Brasil inaugura uma nova era na regulação do ambiente digital: o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital). Em um cenário marcado pela hiperconectividade e pela presença constante de crianças e adolescentes em plataformas digitais, a nova legislação representa um divisor de águas — não apenas para o setor jurídico e educacional, mas especialmente para o mercado publicitário, influenciadores e desenvolvedores de jogos online.
Nos últimos anos, a infância digital brasileira vem sendo moldada por algoritmos, publicidade direcionada e conteúdos que, muitas vezes, exploravam vulnerabilidades emocionais e cognitivas dos menores na Internet. A ausência de limites claros permitia práticas como o perfilamento comportamental para fins comerciais, a monetização de conteúdos sexualizados e o uso de tecnologias imersivas sem qualquer filtro etário.
Com as novas regras trazidas pelo ECA Digital, que tem um prazo curto para todo o mercado e a família se adaptarem, de apenas seis meses para entrada em vigor, se espera proteger o melhor interesse do menor, colocando a segurança e o desenvolvimento saudável acima da conveniência tecnológica e dos modelos de recompensa imediata que causam profundos efeitos na saúde mental da criança e do adolescente.
A nova legislação será fiscalizada pela ANPD, que passou a ser Agência reguladora por meio da também recente MP nº 1.317/2025, e possui como objetivo garantir que o design e a operação dos serviços digitais respeitem a proteção integral e a prioridade absoluta dos direitos dos menores. O princípio orientador é que a conveniência tecnológica nunca poderá se sobrepor à segurança e ao desenvolvimento sadio da criança, ponto que irá se manifestar claramente na regulação tanto do conteúdo quanto da publicidade.
Para agências de publicidade e criadores de conteúdo, o impacto é profundo. A nova lei proíbe o uso de dados sensíveis — como localização, histórico de navegação ou análise emocional — para direcionar publicidade a crianças e adolescentes. Isso significa o fim do perfilamento comercial para esse público.
Além disso, tecnologias como realidade aumentada e realidade virtual não poderão ser utilizadas para fins publicitários voltados a menores. Campanhas que exploram a imersão emocional ou a impulsividade infantil terão de ser reformuladas ou abandonadas.
Influenciadores digitais que promovem produtos ou serviços com risco potencial — como apostas, jogos de azar ou conteúdos erotizados — deverão adotar medidas rigorosas de restrição de acesso. A simples autodeclaração de idade não será mais suficiente. Sem avisos claros e mecanismos de bloqueio, tanto o criador quanto a plataforma poderão ser responsabilizados e obrigados a remover o conteúdo.
Em complemento a tal disposição, a lei ainda eleva a responsabilidade das plataformas ao criar uma barreira contra o incentivo financeiro a conteúdos perigosos, sendo vedada a monetização e o impulsionamento de conteúdos que retratem menores de forma erotizada ou sexualmente sugestiva.
Essa medida visa especificamente cortar o fluxo de receita que sustenta o fenômeno da “adultização”, termo em voga desde a viralização do tema em agosto, protegendo o menor da exposição e do risco de abuso.
O setor de games também será profundamente afetado. O ECA Digital proíbe as chamadas “loot boxes” — caixas de recompensa que funcionam como mecanismos de sorte, explorando a impulsividade e a vulnerabilidade financeira de crianças. Essa prática, comum em jogos mobile e consoles, deverá ser eliminada dos títulos acessíveis a menores.
Tais medidas ainda são acompanhadas de um desafio tecnológico chave: a aferição de idade. A lei exige que fornecedores de conteúdos impróprios utilizem mecanismos confiáveis de verificação a cada acesso, proibindo a simples autodeclaração, ademais, contas de menores de 16 anos devem estar vinculadas a um responsável legal.
Assim, Lojas de Aplicativos e Sistemas Operacionais (SOs) devem aferir a idade dos usuários e fornecer um “sinal de idade” seguro para os aplicativos, sendo essa a base tecnológica essencial para que todas as outras restrições se tornem passíveis de êxito. Contas de menores de 16 anos deverão estar vinculadas a um responsável legal, e os sistemas operacionais e lojas de aplicativos terão de fornecer um “sinal de idade” seguro para os desenvolvedores.
Nesse cenário, a plataforma deve desempenhar papel de parceira da segurança e fornecer ferramentas de supervisão parental que permitam aos pais gerenciar a privacidade, restringir transações e identificar com quais adultos o menor se comunica. Além disso, devem remover e comunicar, imediatamente, às autoridades conteúdos de exploração e abuso sexual, sequestro e aliciamento.
Por fim, é fundamental destacar que a lei se aplica a todo produto ou serviço de tecnologia da informação direcionado ou de acesso provável por crianças e adolescentes, disposição que é analisada em três eixos: a probabilidade de uso, a facilidade de acesso e o nível de risco à privacidade e ao desenvolvimento psicossocial.
Assim, um influencer que promova apostas de quota fixa (bets) ou jogos de azar, pode ter seu conteúdo enquadrado no “acesso provável com risco”, visto que a promoção de jogos de azar para menores é explicitamente vedada. Se o influenciador não fizer avisos adequados de que o conteúdo é estritamente para adultos e não restringir o acesso, ele e a plataforma que o hospeda estarão sujeitos às sanções e ao dever de remoção de conteúdo, ou seja, a implementação de um modelo de segurança por design, não será mais apenas uma recomendação, mas uma condição legal para a continuidade das operações no Brasil.
A abrangência da lei é ampla: aplica-se a qualquer produto ou serviço de tecnologia da informação com acesso provável por menores. Isso inclui redes sociais, aplicativos de vídeo, plataformas de streaming, jogos online e até sites de e-commerce com conteúdo visual atrativo para crianças.
A chegada do ECA Digital é um avanço claro de compliance e implica na redefinição da ética e da legalidade no ambiente digital brasileiro. Mas o sucesso da nova lei dependerá de um esforço coletivo. Big techs, escolas, famílias, influenciadores, agências e o próprio governo precisam atuar em sinergia para garantir que o ambiente digital seja um espaço seguro, educativo e saudável para as novas gerações.
O Estatuto Digital da Criança e do Adolescente é mais do que uma lei: é um manifesto pela infância. Ao redefinir os limites da publicidade, do design de plataformas e da monetização de conteúdo, o Brasil dá um passo firme rumo a um ambiente digital mais ético, inclusivo e protetivo. Para quem atua no mercado publicitário, é hora de inovar com responsabilidade. A infância precisa ser um território de cuidado, especialmente no ambiente digital.