Opinião

A primeira mulher negra da ABL é publicitária e isso importa

Pela primeira vez, em 128 anos da Academia, uma mulher negra é eleita para assumir uma das 40 cadeiras dos “imortais”

Danúbia Paraizo

Head de comunicação da W+K São Paulo 10 de novembro de 2025 - 10h39

(Crédito: Dani Paiva/Divulgação)

Ana Maria Gonçalves na Academia Brasileira de Letras: pela primeira vez, em 128 anos, uma mulher negra é eleita para assumir uma das 40 cadeiras dos “imortais” (Crédito: Dani Paiva/Divulgação)

A posse de Ana Maria Gonçalves na Academia Brasileira de Letras na última sexta-feira, 7, não poderia ser mais simbólica. O momento em que o país celebra o Mês da Consciência Negra é também um marco: pela primeira vez, em 128 anos da Academia, uma mulher negra é eleita para assumir uma das 40 cadeiras dos “imortais”. A instituição, que tem entre seus fundadores Machado de Assis — homem negro, inclusive —, agora recebe, com atraso, a autora do best-seller Um defeito de cor (Editora Record, 2006).

Apesar de a obra estar alcançando seus 18 anos, é com certa vergonha que admito ter conhecido Ana Maria Gonçalves apenas em 2024, quando fui impactada pelo samba-enredo da Portela no Carnaval. A escola levou para a Sapucaí a saga de Kehinde, mulher negra sequestrada de África que, ao ser trazida ao Brasil, sofre as mais diversas violências físicas e emocionais. À sua maneira, ela se tornou símbolo de força e resiliência inabaláveis não apenas por seus ideais de liberdade e revolução para o povo negro, mas também pela simplicidade de uma mãe que move tudo ao redor em busca de seu filho.

Com uma claquete dessas, só me restou mergulhar fundo nas 951 páginas da mais crua e dolorosa história do período de escravização. Natural da cidade de Ibiá (MG), Ana Maria Gonçalves é escritora, roteirista, dramaturga e publicitária. A autora trabalhou por 12 anos no mercado publicitário antes de se dedicar integralmente às letras. Em entrevista ao programa Roda Viva, ela revelou as razões pela mudança de rota: ela queria deixar algo a mais. E deixou.

Para além da inegável habilidade narrativa, algo tão fundamental na publicidade, sua escrita deixa também um referencial de desconstrução do preconceito racial e de construção do protagonismo de um povo. Embora o século 19 narrado pela autora, por vezes, pareça tão longe dos dias atuais, determinadas situações deixam claro o encurtamento dessas distâncias.

A dúvida sobre a real existência de Luisa Mahin, que inspirou a criação de Kehinde como personagem central da obra, é um lembrete desse encurtamento. Luisa foi mãe de Luiz Gama, advogado abolicionista negro que nasceu liberto, mas foi escravizado e vendido pelo próprio pai branco.

Ao questionar essa existência, nega-se também a história de Luisa, seu protagonismo na Revolução dos Malês e todo o seu legado. Ainda que já houvesse uma série de poemas e relatos do próprio Luiz Gama sobre a mãe, o que ficou foi o benefício da dúvida. Em entrevista recente ao podcast O Assunto, do G1, Ana Maria Gonçalves mostrou-se orgulhosa porque, finalmente, estudiosos encontraram documentos inéditos que comprovam a existência de Luiza e sua conexão com o filho.

Um defeito de cor é um livro para compreender o Brasil do passado, mas também as heranças que impactam o hoje. É um guia intensivo sobre questões étnicas, culturais, religiosas e sociais. É uma obra que convida a compreender, inspirar-se e criar para transformar. No fim das contas, Ana Maria Gonçalves mal sabia que, ao desistir da publicidade, estaria contribuindo com a compreensão de tantos Brasis.