Ser pai, com licença: por que 20 dias é só o primeiro passo
Num país onde milhões de crianças não têm um pai presente, é de se celebrar a extensão da licença-paternidade, mas ainda há um longo caminho à nossa frente

(Crédito: Shutterstock)
Não se nasce pai, torna-se um. A frase original não é essa, mas é igualmente verdadeira. Falo, inclusive, por experiência própria. Há sete anos, vivo a deliciosa aventura de ser pai da Lina, uma garotinha esperta, articulada e absolutamente divertida que revolucionou completamente a minha vida.
Além de ter me ensinado muito e trazido alegrias e memórias incríveis, Lina foi responsável por dezenas de novos amigos (pais e mães de crianças nascidas ali por 2018) e por choques de realidade importantes. Ela foi meu passaporte para a vida de “adulto premium” — para citar um meme recente — e para tantas reflexões sobre desigualdade de gênero e a pouco discutida economia do cuidado.
Entre uma noite mal dormida, um bebê cambaleante aprendendo a andar e comer alimentos sólidos, fui me situando no meio de pais perdidos, mães exaustas e milhares de pontos de interrogação ao redor da parentalidade. O que é, afinal, ser pai, mãe ou cuidador de uma criança numa geração que mergulhou na hiperconectividade, recebeu cartilhas rigorosíssimas (e igualmente inatingíveis) do padrão ouro de como criar filhos “do jeito certo” e tem de lidar com uma diminuição sensível das redes de apoio familiares? Sem nem falar em ter vivido parte disso tudo numa pandemia inédita em que morriam milhares de pessoas por dia.
Conseguir navegar nesse mar revolto só foi possível pela troca com uma rede afetiva que teci com outros pais e mães em rodas de conversa, grupos de WhatsApp, milhões de encontros em pracinhas e toda sorte de eventos com filhos. Mas não foi natural. Demandou tempo, intencionalidade, conversas difíceis e muita parceria com a minha então companheira.
E é sobre esse tempo que dedico o restante deste texto. Só pude escrever os parágrafos acima por algo bem simples, e tão distante de outros pais brasileiros: eu tive 60 dias de licença-paternidade. Tive a sorte de trabalhar em uma agência que, além dos 20 dias de licença-paternidade, oferecia mais dez e incentivava emendar férias (obrigado, Mutato, serei sempre grato por isso).
Dois meses, portanto, 100% mergulhado naquele caldeirão puerperial. Tempo suficiente para acomodar uma nova vida em casa, apoiar minha então companheira nas novas rotinas, entender os desafios que vinham no pacote: pega da amamentação, fazer bebê dormir, rotina de banho, troca de guarda na madrugada, manter a casa minimamente funcional…
Foram 60 dias para começar a entender que existiam papéis possíveis além do “pai provedor”, mas ausente e desconectado; e da “mãe dedicada” que renunciava a si para acomodar as desigualdades de gênero. Feliz, vi ali nascer o Eduardo-pai, que voltou da licença sendo uma pessoa melhor, inclusive no trabalho.
E igualmente feliz vi, esta semana, a aprovação da nova licença-paternidade de 20 dias no Brasil – indo um pouco além dos vexatórios 5 dias corridos atuais. Acho que, ainda que esteja longe do ideal, é um avanço. Um avanço prático, que coloca a possibilidade de pais vivenciarem sua paternidade e apoiarem suas companheiras nesse período crucial; e um avanço simbólico, colocando mais responsabilidade para os homens cumprirem seu papel na economia do cuidado.
Afinal, a crise é grande – e tem crescido. Há 11 milhões de mães solo no Brasil; e 6 milhões de crianças sequer têm o nome do pai na certidão de nascimento, sem falar nas outras tantas que não os têm presentes em suas vidas. A nova licença é, portanto, um ganho coletivo: uma nova geração ganha a chance de sentir que pai combina com cuidado e mais mães podem explorar todo o seu enorme potencial para além da maternidade. A sociedade toda avança.
Ainda é raro ver casos em que pais se implicam na própria parentalidade. Mas já há estudos investigando como o cérebro deles se transforma quando expostos de forma intensa à experiência parental. Quanto mais tempo um pai passa com seus filhos (a licença não garante que fará isso, mas ao menos elimina algumas barreiras), maiores são as alterações funcionais e estruturais em áreas cerebrais ligadas à empatia, regulação emocional e capacidade de cuidado. Ou seja, pais também têm “instinto”, só precisam viver sua paternidade para que ele se fortaleça.
O gol marcado essa semana é mérito da coalizão CoPai, que conseguiu unir e organizar a sociedade civil, trazer a discussão para o debate público, além de beber de exemplos (ainda raros) de empresas que decidiram avançar mesmo sem incentivo governamental. E, mais difícil ainda, a coalizão foi bem-sucedida em costurar um consenso possível entre direita e esquerda.
O aspecto geracional, inclusive, foi importante na aprovação da nova licença: políticos mais jovens, de diferentes partes do espectro político, aderiram à pauta por já terem vivido essa realidade da paternidade presente e participativa. Os bastidores dessa costura foram muito bem registrados ontem no podcast Café da Manhã, da Folha de S.Paulo – vale o play.
Ainda estamos longe de conseguir equiparar os meses entre pais e mães; e um tanto mais distantes de aplicar um modelo de licença parental que visa reduzir mais amplamente a desigualdade de gênero. Em tempos de recuo da agenda de DE&I, essa conquista é ainda mais especial.
Agora que estão nos deixando sonhar, é preciso trabalhar para manter essa discussão ativa. Provocar essa conversa com as lideranças e RHs da sua empresa; se engajar nas ainda tímidas articulações pelo tema; olhar para a economia do cuidado com intencionalidade e espírito de transformação… É preciso, enfim, se implicar na causa. Lutar para que mais pais nasçam com seus filhos é a certeza de um mundo mais fortalecido para enfrentar os tantos desafios que se avizinham da nossa e das próximas gerações.