Guilhermina de Paula: da inclusão trans na indústria a Cannes
A criadora do OcupaTrans levará pessoas trans ao festival e sonha em ampliar a inclusão trans no mercado publicitário
Guilhermina de Paula: da inclusão trans na indústria a Cannes
BuscarA criadora do OcupaTrans levará pessoas trans ao festival e sonha em ampliar a inclusão trans no mercado publicitário
Lidia Capitani
2 de maio de 2024 - 14h16
O OcupaTrans é uma daquelas iniciativas que nasceu da dor e da revolta, mas com o propósito de provocar mudanças e impactar positivamente. Após a morte de uma amiga de infância, vítima de transfobia, Guilhermina de Paula criou o projeto para levar pessoas trans aos festivais de criatividade no Brasil e fora, a fim de retirá-las das margens e promover inclusão nestes espaços. Recentemente, o projeto foi selecionado pelo programa ERA (Equidade, Representatividade e Acessibilidade) do Festival Internacional de Criatividade Cannes Lions e poderá levar seis participantes ao evento, que será realizado em junho, na França.
Nesta entrevista, Guilhermina fala sobre como surgiu a iniciativa, o momento do projeto e suas expectativas para Cannes. Além disso, a entrevistada comenta sobre como anda a inclusão de pessoas trans no mercado publicitário e o que as agências, produtoras e marcas podem fazer para promover a pauta.
Meu nome é Guilhermina, tenho 27 anos e sou uma travesti. Comecei minha carreira como auxiliar administrativo em uma imobiliária aos 18 anos, quando ainda estudava Rádio e TV. Infelizmente, tive que interromper meus estudos porque o custo era alto demais para o que eu ganhava na época. Então, decidi mudar de área, influenciada pela minha família, que sempre trabalhou com beleza. Assim, entrei para o mundo dos salões de beleza, onde atuei de assistente a gerente, meu último cargo antes de decidir buscar novos horizontes.
O salão onde trabalhava tinha suas limitações e eu sempre quis mais crescimento profissional. A pandemia me fez repensar muitas coisas, principalmente por trabalhar com o público enquanto morava com meus pais idosos, o que aumentava meu medo e insegurança. Além disso, enfrentei reduções salariais que impactaram ainda mais minha situação. Todo esse cenário me motivou a buscar uma transição de carreira de retorno ao audiovisual, uma paixão que nunca deixei de lado.
Foi então que descobri a Pingado Áudio por meio da plataforma TransEmpregos. Comecei como assistente de atendimento e, junto com o crescimento da produtora, evoluí até me tornar gerente de atendimento e diretora de projetos.
O OcupaTrans surgiu de uma experiência muito pessoal e dolorosa. Ele foi desenvolvido há exatamente um ano, um dia após o meu aniversário, quando minha melhor amiga de infância, também travesti, foi assassinada vítima de transfobia. Esse evento trágico me fez refletir profundamente sobre como eu poderia usar minha posição e meus privilégios profissionais para ajudar a população trans a sair da marginalidade.
Fiquei meses pensando em como poderia criar um movimento significativo até finalmente o OcupaTrans nascer desse luto e dessa revolta. A ideia começou a tomar forma especialmente quando percebi, ao participar de eventos de publicidade, que geralmente só havia eu e mais duas pessoas trans nos festivais, o que era muito frustrante.
Decidi então agir e durante o festival do Clube de Criação do ano passado. Consegui abordar os organizadores, que foram incrivelmente receptivos e nos doaram 20 ingressos. Organizei uma lista para as pessoas interessadas preencherem e, assim, conseguimos distribuir esses ingressos. No evento seguinte, o Whext, apesar de não termos recebido apoio da organização, conseguimos estabelecer uma rede de apoio com outras produtoras, agências e marcas parceiras, que resultou na doação de um total de 60 ingressos — o maior número até hoje.
Isso nos motivou a ser mais ambiciosas, levando-nos a tentar e conseguir apoio para participar do próximo Festival de Cannes. Isso mostra como, mesmo em situações de profunda tristeza, podemos encontrar forças para lutar e fazer a diferença.
Atualmente, estamos na segunda fase do processo. No primeiro momento, nos inscrevemos para o programa ERA (Equidade, Representatividade e Acessibilidade) do festival e fomos selecionadas dentre mais de 200 inscrições de 51 países. Nesse meio tempo, recebi o apoio fundamental do André Chaves, do Papel & Caneta, que me guiou e apresentou o caminho, inclusive contatando Simon Cook, CEO do Festival de Cannes.
Posteriormente, Cook me direcionou para Frank e Maxine, responsáveis pela diversidade e inclusão da premiação. Apresentei-lhes o projeto e eles ficaram fascinados, já que é o único com foco e visibilidade para a população trans. Isso foi um grande diferencial, pois eles buscavam maneiras de incluir essas pessoas, mas não sabiam como.
Agora, estou na fase de levantar custos e encontrar patrocinadores. Porém, tem sido desafiador devido à burocracia envolvida. Apesar de algumas empresas demonstrarem interesse, o processo de doação é complicado. Tenho recebido apoio positivo de parceiros, agências e produtoras, mas ainda estamos na fase de buscar doadores, o que tem sido um pouco desgastante. Estamos avançando, mas há um caminho a percorrer.
Minhas expectativas para o Festival de Cannes são realmente altas, já que é a primeira vez que participo. Acredito que será um divisor de águas na minha carreira, trazendo não só fortalecimento na minha rede de contatos, mas também uma rica experiência de vida.
Espero que o festival seja uma plataforma para transformar a indústria, fazendo com que o mercado e as marcas prestem mais atenção à população trans de uma maneira nova e significativa, para além dos estereótipos e tragédias frequentemente destacados na mídia. Quero que isso mude a maneira como as pessoas trans são vistas, abrindo espaço para mais de nós no cenário global.
Neste momento, minha ambição é que o projeto ganhe uma amplitude internacional, alcançando pessoas trans de diversos lugares do mundo, não se limitando apenas ao Brasil. Sinceramente, acredito que podemos ser as únicas pessoas trans no festival, mas espero, do fundo do coração, ser surpreendida e encontrar outras pessoas trans de diferentes partes do mundo.
Realmente acredito que há um movimento pela inclusão, mas ele é muito letárgico diante da urgência e necessidade que enfrentamos. Por exemplo, no site da TransEmpregos, um gráfico revela que quase 39% das pessoas que buscam emprego são graduadas. Contudo, essas pessoas raramente são contratadas e apenas 4% estão no mercado formal de trabalho, de acordo com a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).
Na publicidade, parece haver um paradoxo. As agências e marcas falam muito sobre diversidade, mas, na prática, isso não acontece. Na minha pesquisa, descobri que existe apenas uma produtora trans de RTV em todo o mercado. Considerando que um departamento típico de uma agência tem entre 15 e 20 pessoas, isso é alarmante. As empresas pedem diversidade, mas não oferecem suporte, não criam planos de carreira e não pensam nisso de forma efetiva.
O que os clientes estão fazendo para que seus quadros de funcionários sejam mais inclusivos? E suas campanhas? Eles deveriam incluir grupos sub-representados de maneira consistente, não apenas quando o calendário os favorece. As produtoras precisam ter diretores e produtores trans trabalhando em grandes filmes, não apenas em projetos específicos de diversidade e inclusão. É essencial dedicar esforços para que essas pessoas possam liderar campanhas significativas e romper bolhas, para não ficarem confinadas a um nicho.
Acredito que programas de capacitação, bolsas de estudo, treinamentos e estágios são passos importantes para preencher as lacunas de inclusão aos poucos. Inclusão vai além de simplesmente convidar alguém para uma festa. Trata-se de ensinar essa pessoa a dançar junto com as outras. Precisamos de suporte, especialmente agora que as empresas estão voltando ao presencial.
Para nós, pessoas trans, o retorno ao ambiente presencial pode ser muito difícil. Enfrentamos microviolências constantes, como comentários e críticas no trabalho ou no transporte público. Essas situações podem afetar psicologicamente e até mesmo arruinar o dia de alguém.
É importante entender a flexibilidade necessária ao lidar com questões como o nome correto de uma pessoa ou suas necessidades alimentares. Não se trata apenas de ignorar ou corrigir erros isolados, mas sim de considerar o contexto geral antes de incluir e contratar pessoas diversas. Isso não deve ser visto como um fardo, mas como uma oportunidade de aprendizado e uma política de enriquecimento, tanto para a empresa quanto para cada indivíduo envolvido.
Acredito que o caminho é persistir e acreditar em si mesmo, apesar das constantes dúvidas e subestimação que enfrentamos. Muitas vezes nos sabotamos e duvidamos de nossas próprias capacidades, mas isso pode mudar com o tempo e com a forma como nos enxergamos. É importante ter resiliência e maturidade para lidar com diferentes situações. Precisamos saber nos posicionar da maneira certa, sem perder nossa identidade.
Para aqueles que estão começando, quero dizer: sejam fortes e não percam sua essência, mesmo diante de uma realidade dura. Algumas situações exigem muita resiliência, mas não precisamos engolir tudo. Podemos escolher nossas batalhas e preservar nossa sanidade emocional.
O Ocupa Trans é uma verdadeira potência. Eu me vejo em um momento onde, ao invés de ir atrás dos festivais para apresentar nossa proposta, espero que eles venham até nós. Quero que os festivais, como o Clube de Criação, se envolvam proativamente em nossa iniciativa, oferecendo ingressos e apoio, para que o projeto transcenda os eventos e festivais.
Espero que possamos expandir para outras áreas, como a realização de palestras, cursos e capacitações, por meio de parcerias com plataformas educacionais. Nosso objetivo é ocupar espaços não somente em eventos, mas também no âmbito acadêmico e corporativo, de forma ampla, para que nossa presença seja constante, e não limitada a certas ocasiões.
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