Michelle Borborema
13 de setembro de 2022 - 9h17
Lindalia Junqueira é fundadora e CEO do Hacking.Rio e da Ions Innovation, embaixadora oficial no Brasil do Global Women in Tech e foi a primeira brasileira selecionada pela Nasa como líder mundial de inovação na Singularity University (Crédito: Divulgação/Zzn Peres)
É difícil imaginar que alguém de infância pobre, sem acesso a laboratórios de tecnologia nas escolas públicas por onde passou, torne-se mais tarde uma grande influência da tecnologia. Basta acrescentar a camada “mulher” a esse perfil e o feito parece ainda mais distante. Mas a carioca Lindalia Junqueira desafiou essa lógica: embora tenha todas essas características, ela é uma referência de peso quando o assunto é liderança em tecnologia da informação, no Brasil e no mundo, e diz que a educação a fez estar onde está hoje.
Por meio de bolsas de estudos e pela sua dedicação a oportunidades desse mercado, ela trabalhou em grandes empresas, como a Globo, onde criou a primeira área de inovação aberta do Brasil. Sua determinação também a levou ao status de primeira brasileira selecionada pela Nasa como líder mundial de inovação na Singularity University, em 2010.
“Ao chegar na Nasa, foi incrível descobrir que podia aprender robótica com um dos maiores especialistas do mundo, o astronauta Dan Barry, em apenas quatro horas. E, depois, já ter a capacidade de desenvolver um projeto em equipe. Lá, não fazia diferença se eu era mulher ou não”, conta.
Mas a executiva de 57 anos nunca se contentou com seus títulos e prêmios acadêmicos, que são muitos. Mesmo na Nasa, ela sempre teve interesse pela colaboração e pelo propósito por trás de seu currículo. “Descobrir como funcionam as tecnologias exponenciais e como criar soluções que impactam de verdade a humanidade abre a mente para infinitas possibilidades.”
Sua causa é clara: contribuir para a formação e o incentivo de pessoas interessadas em tecnologia da informação, com atenção especial para o aumento de espaços para mulheres na área, ainda muito masculina. A executiva tem um ponto. Nos últimos cinco anos, embora a participação feminina no mercado de tecnologia no Brasil tenha crescido 60%, elas ocupam apenas 20% das vagas em tech, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo outro estudo, desta vez conduzido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), apenas 13% dos estudantes de ciência da computação são mulheres, das quais 47% acabam desistindo no meio do caminho.
Pensando nisso, em 2017 Lindalia fundou o movimento social Juntos pelo Rio, ao lado de outros empreendedores, com o objetivo de atrelar o empreendedorismo à inovação e tecnologia. Lá, criou um coletivo de hackathons, maratonas de programação onde hackers desenvolvedores se reúnem por 42 horas para desenvolver soluções baseadas em desafios reais do mercado e da sociedade.
Um ano depois, a executiva fundou o Hacking.Rio, maior maratona de programação da América Latina, cuja quinta edição aconteceu entre os dias 1 e 4 de setembro no metaverso e no Rio de Janeiro. Ela é ainda CEO e fundadora da Ions Innovation, que oferece consultoria e capacitação de inovação, tecnologia e empreendedorismo, além de ser a embaixadora oficial no Brasil do Global Women in Tech, organização internacional sem fins lucrativos com a missão incentivar e formar mais mulheres na área de tecnologia, que no início de setembro reconheceu programadoras brasileiras em sua versão latino-americana do prêmio.
Confira nossa conversa com Lidalia, que tem inúmeros prêmios no currículo, como IBC Innovation Awards 2012, além de ter sido eleita a mulher de maior impacto social da América Latina pela Bloomberg, em 2022.
O mercado de tecnologia é majoritariamente masculino. Como é ser não apenas uma mulher na área, mas uma liderança feminina nesse setor? Enfrentou resistências ou dificuldades? Quais?
Somente 20% dos cargos de TI no Brasil são ocupados por mulheres, segundo última pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao me formar em engenharia em 1988, poucas eram as mulheres que cursavam e seguiam carreira em STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics – Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). Apesar de ter sido desbancada pela ciência, ainda persiste a ideia de que razões biológicas determinam os caminhos distintos de meninos e meninas. De acordo com essa percepção, a mulher teria uma habilidade “natural” para atividades que exigem atenção e afeto, mas não racionalidade, atributo considerado masculino.
Aos poucos, as mulheres que vem se destacando no setor têm quebrado esse estereótipo. Exemplos como das Ninas — Nina Silva, CEO do Black Money, Nina da Hora, cientista de dados, e Nina Talks (Karina Tronkos), pentacampeã do Global Apple Challenge — inspiram outras mulheres a mergulhar nesse mercado tech no Brasil.
Ser uma liderança feminina no setor de tecnologia sempre exigiu que eu mostrasse resultados acima do esperado. Muitas vezes, tinha que estudar mais, trabalhar mais que os outros e superar todas as metas. Mesmo assim, a remuneração era menor do que homens na mesma posição. Não precisava ser feminista, “queimar sutiã”, mas muitas vezes tive que adotar atitudes tipicamente masculinas para ter espaço, ter voz. Às vezes as resistências vêm até de outras mulheres. Sim, já passei por assédio moral, sexual e exclusão.
Passei a ter coragem de me expor mais, de falar abertamente sobre essas dificuldades, de conquistar aliados à causa e me associar a outros movimentos em prol de mulheres na tecnologia.
Dados indicam que, até 2025, o mercado precisará de cerca de 800 mil novos talentos nas áreas de tecnologias digitais. Vemos que esse gap já existe no mercado: faltam profissionais no setor. Ao mesmo tempo, ainda há poucas mulheres na área. Seria uma oportunidade? Quais são as barreiras de entrada das mulheres nesse segmento?
Sim, uma superoportunidade. Empresas e investidores já entenderam que diversidade traz produtividade. Agora exigem mais mulheres nos boards, nos conselhos. E tenho sido procurada por várias empresas para contratar mais mulheres para as vagas techs. Inclusive no Hacking.Rio, maior maratona de desenvolvedores que já está na 5ª edição, tivemos clusters somente de mulheres para contratação.
A Pesquisa do Boston Consulting Group aponta que, mesmo recebendo menos investimentos, as startups lideradas por mulheres são muito eficientes e trazem retorno maior do que do aquelas fundadas por homens: elas geraram receita 12% maior em renda acumulada em um período de cinco anos.
Barreiras ainda existem, desde a falta de incentivo, que começa na escolha da graduação (por mais que 60% dos formandos do ensino superior no Brasil sejam mulheres, somente 23,9% delas se formam em cursos de engenharia), a tripla jornada de estudar, trabalhar e cuidar de família, filhos, e a até a autossabotagem, de não se enxergar nesse lugar.
Como reduzir o gap de gênero, raça e etnia no setor de tecnologia?
A desigualdade de gênero, de raça e de etnia no segmento da tecnologia impacta não só a cultura, como também os lucros das empresas. Em 2017, a McKinsey descobriu que as 25 melhores empresas em diversidade de gênero nas equipes executivas tinham 21% mais probabilidade de obter lucros acima da média. Por isso, no início precisamos de intervenções. Se não vamos levar pelo menos 80 anos para ter o mínimo de equidade. Por isso, também, a lei das cotas de participação de mulheres em conselhos se tornou tão importante.
Temos muitas mulheres qualificadas, e chegou a hora de abrir esse espaço para tomada de decisões em colegiado. Por exemplo: o Parlamento Europeu acaba de estabelecer um acordo para a criação de uma lei que define metas de equidade de gênero para as empresas de capital aberto da União Europeia. O texto prevê que, em conselhos sem função executiva, o percentual mínimo de assentos ocupados por mulheres deve ser de 40% e, em colegiados com essas funções, de 33%. Nos dois casos, o alcance das metas deve ocorrer até o final do primeiro semestre de 2026. Sim, precisamos de atitudes e decisões que demonstrem essa transformação. Exemplos como da ex-presidente da Microsoft Paula Bellizia, que ao assumir exigiu que 50% de sua base de colaboradores fosse composto por mulheres.
Temos que criar esses ambientes de aprendizados techs para meninas desde as escolas de ensino fundamental aos centros técnicos. Incentivar essas práticas, bootcamps de imersão, ampliar acesso aos cursos de tecnologias nas comunidades e aos investimentos para as startups lideradas por mulheres.
Como é ser a primeira mulher brasileira escolhida pela Singularity University no Centro de Pesquisa Ames, da Nasa?
Para quem veio de infância super pobre, estudos em colégios públicos, sem acesso a laboratórios de tecnologias, foi a educação quem me transformou e abriu essa visão. E sempre a cada degrau conquistado tinha que dar o primeiro passo. Confesso que quando me inscrevi no programa, não imaginava ser selecionada. Em 2010, ao lançarem a Singularity, eles selecionavam um líder de cada país, de experiências e conhecimentos diferentes. Entendi que me escolheram não somente pelo currículo, mas também pela capacidade de execução e de multiplicação.
Ao chegar na Nasa, foi uma descoberta incrível, de que podia aprender robótica com um dos maiores especialistas do mundo, o astronauta Dan Barry, em apenas quatro horas. E, depois, já ter a capacidade de desenvolver um projeto em equipe. Lá, não fazia diferença se eu era mulher ou não.
Descobrir como funcionam as tecnologias exponenciais e como criar soluções que impactam de verdade a humanidade abre a mente para infinitas possibilidades. As tecnologias são cada vez mais acessíveis, mais baratas, mais simples de usar. Faz a diferença hoje quem consegue engajar para colaborar. Não existe inovação sem colaboração.
Como foi a premiação do Women In Tech América Latina? Para você, quais foram os destaques do evento?
Ano passado fizemos o primeiro Women in Tech Brazil, e abrimos essa visibilidade de mulheres brasileiras e iniciativas de impacto para o restante do mundo. São mais de 100 países que participam do Global Women in Tech, e pela primeira vez uma brasileira conquista a final do global. Nina Silva ganhou a categoria “Disruptive Innovation” (Inovação Disruptiva).
Esse ano fomos selecionados para sediar o primeiro prêmio Latam no dia 1 de setembro. Recebemos mais de 500 inscrições e indicações, e das 5 finalistas de cada uma das 8 categorias, tivemos várias vencedoras brasileiras que vão agora disputar a premiação global, que vai acontecer no dia 13 de outubro, em Dubai.
Você já teve algum tipo de sentimento de autossabotagem? Como você lida com essa situação e quais dicas dá para as mulheres que se sentem assim nos projetos, áreas e lugares em que atuam?
Não tive autossabotagem, mas já tive burnout, estresse físico, mental e emocional… já até cheguei à depressão. Passei dos limites. E a gente se dedica tanto, tanto, que quando percebe, já está sem energia para continuar na luta, sem saber como sair dessa. Hoje vejo que acontece com muitas outras mulheres, ainda mais nesse período de isolamento pela pandemia. Poucas compartilham essa dificuldade, por isso decidi falar abertamente e sinalizar caminhos de ajuda.
Qual conselho você daria para as jovens mulheres que querem construir uma carreira no setor de tecnologia?
Experimentem sem medo. Busquem outras mulheres e comunidades que já atuam em tecnologia, que vão poder orientar. Não tem um só caminho para iniciar. Muitas vezes você descobre que programação, códigos e algoritmos podem não ser muito seu perfil, mas pode atuar no setor como gestão, análise de dados, designer de interface, marketing digital, customer service… enfim, são várias as carreiras aliadas ao setor que dependem dessa diversidade.
Quais mulheres inspiradoras você segue, lê e observa? Como elas te inspiram?
Sheryl Sandberg, Nina Silva, Luiza Helena Trajano e Ana Fontes. Mulheres incansáveis em construir redes de apoio a outras mulheres. Exemplo de gestão em ação, de multiplicação de voluntárias em prol de suas causas, de impacto real. Ana Fontes, por exemplo, mostra indicadores, pesquisas, e construiu uma rede de mais de 9 milhões de mulheres no Brasil.
Por fim, tem alguma dica de séries, filmes, games, livros e/ou músicas que consumiu recentemente e te fizeram refletir sobre a condição e o papel das mulheres?
De filme, sugiro Self-made: A Vida e a História De Madam C.J. Walker, Joy: O nome do sucesso, Coco Antes de Chanel, Coded Bias e O Dilema das Redes.
Para ler, recomendo os livros “Se você não tem bunda, use laço no cabelo”, da Barbara Corcoran, investidora e empresária norte-americana, e “Faça Acontecer”, da Sheryl Sandberg, empresária norte-americana.