Women to Watch

O agro é delas: mulheres que estão moldando o campo

Apesar da baixa representatividade, resistências e preconceito, elas provam que diversidade gera negócios mais sustentáveis e competitivos

i 13 de agosto de 2025 - 9h18

Vanusia Nogueira faz parte da quinta geração de uma família de produtores de café do sul de Minas Gerais e, hoje, é diretora executiva da Organização Internacional do Café (OIC). Silvia Massruhá, presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), também seguiu a tradição dos parentes, mesmo estudando ciência da computação na universidade.

Assim como as colegas, Bárbara Sollero, head de agricultura regenerativa na Nestlé, vem de uma família de produtores rurais de leite e café da região da Zona da Mata mineira. As férias na fazendo e a vivência no campo a levaram a cursar zootecnia na Universidade Federal de Viçosa.

Como nos casos citados, muitos profissionais que desenvolvem a carreira na agricultura têm fortes laços que vem de tradições familiares. Mesmo quando escolhem uma trajetória em áreas distintas, como Francila Calica, diretora de assuntos agrícolas e sustentabilidade Latam da Bayer, que estudou jornalismo e também vem de uma família de produtores rurais, acabam retornando ao campo de alguma maneira.

Com a evolução tecnológica, social e cultural do setor, mulheres passaram a ver no agro um caminho promissor e têm contribuído para o futuro do segmento em questões como a diversidade, a tecnologia e a sustentabilidade.

Contudo, apesar dos avanços, a participação feminina no setor ainda é tímida quando analisada no contexto brasileiro. Enquanto a média de inserção das mulheres na economia do País é de 43,7%, as profissionais do agro representam apenas 34%, conforme aponta pesquisa da FGV. Desde 2012, a população ocupada no segmento tem encolhido, na média, 1,9% a.a. Entretanto, esta contração tem sido mais intensa entre elas (-2,3% a.a.) do que entre os homens (-1,7% a.a.).

Entre resistências e preconceitos

Uma outra pesquisa da Deloitte, “Mulheres no Agronegócio”, perguntou a mulheres do setor quais motivos levam à baixa representatividade feminina em cargos de diretoria de entidades ou associações no segmento. 62% citaram o número tímido de mulheres em cargos de liderança na indústria, 57% pontuaram a falta de políticas e processos que incentivam a inclusão feminina e 35% destacaram que mulheres não se sentem escutadas nas reuniões das associações.

Vanusia Nogueira, presidente da Organização Internacional do Café (Crédito: Divulgação)

Vanusia Nogueira, presidente da Organização Internacional do Café (Crédito: Divulgação)

Como qualquer outro setor majoritariamente masculino, a vivência dessas mulheres é permeada por desafios. Desde muito cedo, algumas já tiveram que se acostumar a serem as únicas mulheres nos ambientes profissionais. Como conta Vanusia, desde a faculdade de tecnologia da informação, ela navega em ambientes predominantemente masculinos. Apesar dessa experiência ser “naturalizada”, algumas ainda passam por situações desconfortáveis.

Anny Chueh, sócia e diretora para novos negócios e marketing da Raiar Orgânicos, conta um episódio que vivenciou: “Eu havia viajado para o interior do Maranhão, onde visitaria um armazém de grãos na região de Chapadinha. O único hotel disponível era em cima de um posto de gasolina. O recepcionista do hotel me alertou que os caminhoneiros costumavam levar meninas para o hotel. Claramente senti que não devia estar lá, mas era a opção que tínhamos, e dei graças a deus de que tinham outras pessoas do time comigo nos quartos ao lado”, relata.

Além de testemunhar situações incômodas, um dos desafios que muitas lideranças femininas do setor agrícola enfrentam é a resistência quanto às suas propostas. “Muitas vezes somos ouvidas por respeito ou educação, mas na realidade nossas ideias não são aceitas em um primeiro momento. Acredito que tenha um pouco de resistência ao gênero  eao novo”, reflete Vanusia.

Por isso, muitas sentem a necessidade de estarem mais preparadas, ou que precisam se provar para ganhar o respeito dos pares. “Os principais obstáculos que enfrentei como mulher nesse meio foram relacionados à necessidade excessiva de primeiro provar meu conhecimento técnico para, só então, ser incluída nas discussões”, conta Bárbara.

“Já vivi situações de subestimação e subjugamento por ser mulher. O machismo ainda está presente também de forma estrutural, não só no agro, mas em toda a sociedade. No nosso setor, ele se acentua porque as mulheres chegaram mais tarde. Muitas vezes não é apenas hostilidade, mas ignorância, falta de compreensão do quanto um olhar feminino fortalece o negócio”, complementa Liège Correia e Silva, diretora de sustentabilidade da JBS Brasil.

Liège Correia e Silva, diretora de sustentabilidade da JBS Brasil (Crédito: Divulgação)

Liège Correia e Silva, diretora de sustentabilidade da JBS Brasil (Crédito: Divulgação)

Conforme aponta pesquisa “Todas as Mulheres do Agronegócio” encomendada pela Abag, 44% das entrevistadas relataram já ter sofrido preconceito de gênero sutil, e 30% acusam preconceito evidente. “Já precisei lidar com muitas piadas, muitas vezes me fazendo de desentendida ou até achando normais à época. Hoje, com mais maturidade, já me permito e me responsabilizo por me posicionar com assertividade e delicadeza, sempre pensando em evitar que a mesma piada, da mesma pessoa, seja direcionada para uma próxima mulher”, relata Bárbara Sollero.

O preconceito sutil é aquele que causa desconforto e, para algumas pessoas, pode até passar despercebido. São situações que subestimam a capacidade ou o poder das mulheres. “No Japão, quando participei da primeira reunião com a alta gestão de uma corporação japonesa, apesar de ser a principal apresentadora da reunião, as perguntas eram direcionadas apenas aos demais executivos homens. Um dos diretores me disse: não estranhe se eles não falarem com você, pois não estão acostumados a ter uma mulher na mesa”, lembra Anny Chueh.

“Acredito que toda mulher já enfrentou algum tipo de situação, às vezes sutil, mas presente. Um exemplo que ainda é realidade é a sucessão familiar nos negócios rurais. Muitas mulheres preparadas e comprometidas não são a primeira opção para assumir a gestão da propriedade”, exemplifica Francila.

Além disso, as mulheres enfrentam barreiras estruturais que são transversais a qualquer setor, como o acúmulo de tarefas e a sobrecarga mental dos cuidados que recaem sobre elas. A disparidade salarial e a baixa representatividade em posições estratégicas de alta liderança também estão presentes neste cenário. A pesquisa da Deloitte, por exemplo, destaca que as mulheres recebem 18% a menos que os homens no setor agropecuário no Brasil.

Como aumentar a presença feminina no agro?

Ainda segundo a pesquisa da Deloitte, 48% das entrevistadas afirmaram que os maiores desafios e preconceitos por questões de gênero estão nas lideranças e nos gestores. O estudo também pediu que as entrevistadas selecionassem as principais iniciativas de estímulo à participação do público feminino no agronegócio. 76% destacaram a mudança na cultura organizacional, 52% citaram a implementação de políticas de gestão inclusiva, 47% mencionaram programas de apoio para conciliar carreira e responsabilidades pessoais e, 40%, programas de desenvolvimento de carreira.

Uma das iniciativas destacadas pela pesquisa e citada por Barbara Sollero são os grupos de apoio e afinidade que promovem talentos diversos. “Vejo com um caminho o fortalecimento de grupos, redes de apoio e mentoria que promovam também a diversidade de raça, idade, orientação sexual e os demais aspectos, o constante investimento na base da educação, e, sem dúvida, a promoção de treinamentos que desconstruam preconceitos e construam a valorização da diversidade como um motor para inovação e melhores resultados”, afirma.

Bárbara Sollero, head de agricultura regenerativa na Nestlé Brasil (Crédito: Divulgação)

Bárbara Sollero, head de agricultura regenerativa na Nestlé Brasil (Crédito: Divulgação)

Vanusia Nogueira cita a Aliança Internacional para as Mulheres do Café (IWCA), da qual participa como membro. A Bayer, por sua vez, promove o Conexão Mulheres no Agro. “Desde 2020, mais de 15 mil mulheres já foram impactadas pelas ações do programa, que inclui uma Jornada do Conhecimento, com mentorias e trilhas de capacitação para formar lideranças femininas especializadas em negócios rurais”, ressalta Francila.

A mudança cultural, destacada pela maioria das entrevistas da pesquisa da Deloitte, pode significar diferentes ações e comportamentos das lideranças e dos times. Para a head da Bayer, as iniciativas devem incorporar a interseccionalidade e a propósito. “É necessário estabelecer ações intencionais e consistentes de inclusão, além de garantir a existência de ambientes seguros e acolhedores em toda a cadeia produtiva. Desde processos seletivos mais inclusivos até programas de formação, escuta ativa, valorização da diversidade regional e combate a todas as formas de discriminação”, complementa.

Por fim, as lideranças pontuam a importância do estabelecimento de metas e compromissos por parte das empresas. Silvia Massruhá destaca algumas das ações que a Embrapa tem adotado nesse sentido. “A assinatura do termo de compromisso com a sétima edição do Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, do Ministério das Mulheres, em maio de 2024; e a formalização de uma aliança com a ONU Mulheres, em 2025, a partir de uma carta de intenções com o objetivo de institucionalizar a perspectiva de gênero nas políticas públicas de agricultura, por meio da geração de conhecimento científico, desenvolvimento de tecnologias sociais e articulação com programas estratégicos”, afirma.

Silvia Massruhá, presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) (Crédito: Lilian Alves)

Silvia Massruhá, presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) (Crédito: Lilian Alves)

A Bayer é outra empresa que estabeleceu metas concretas para aumentar a participação feminina. “Por aqui, temos a ambição clara de alcançar a igualdade de gênero em cargos de gestão até 2030. No país, a Bayer já conta com 42% de mulheres em cargos de liderança. Na divisão agrícola, o percentual é de 34,3%, com presença crescente nas áreas de pesquisa e desenvolvimento”, diz Francila.

Fortalezas femininas

Ainda assim, a presença feminina é celebrada pelas potências que trazem às empresas e aos ambientes que frequentam. “Na Raiar, por exemplo, temos um equilíbrio entre homens e mulheres no time. Tanto nos aviários como na sala de ovos, temos maioria feminina, de cerca de 70%. Pela nossa experiência, as mulheres têm desempenho superior em atividades que demandam cuidado e atenção a detalhes. No nosso caso, o manejo das aves e dos ovos é a parte mais importante do nosso negócio, o coração da empresa. E, por conta disso, naturalmente diversas líderes mulheres vêm despontando e se desenvolvendo dentro da nossa empresa”, afirma Anny.

Anny Chueh, sócia e diretora para novos negócios e marketing da Raiar Orgânicos (Crédito: Fernanda Nunes)

Anny Chueh, sócia e diretora para novos negócios e marketing da Raiar Orgânicos (Crédito: Fernanda Nunes)

Para Liège, diversidade é sobre inteligência de negócios. “Precisamos de times que reflitam a sociedade em que vivemos: mulheres, negros, jovens, pessoas LGBTQIA+. Não é só uma questão moral, é também competitividade e sobrevivência. Um agro que se fecha em um perfil único de liderança perde inovação e mercado. Cabe a nós, líderes, criar espelhos para que cada pessoa veja que pode chegar lá. O desafio é grande, mas a recompensa é maior: um setor mais justo, moderno e lucrativo”, pontua.

De forma complementar, Francila destaca o papel da diversidade na criação de soluções criativas. “O que tenho aprendido ao longo da minha trajetória é que trabalhar em equipes multidisciplinares, com diversidade em todos os âmbitos e com bagagens distintas é uma maneira muito eficiente de desafiar o status quo e encontrar soluções criativas, algo cada vez mais necessário frente às transformações que temos vivido nos negócios, nas relações e no mercado de trabalho”, destaca.

Francila Calica, diretora de assuntos agrícolas e sustentabilidade Latam da Bayer (Crédito: Divulgação)

Francila Calica, diretora de assuntos agrícolas e sustentabilidade Latam da Bayer (Crédito: Divulgação)

Além desses pontos, a diversidade também impacta na cultura dos ambientes profissionais. Mulheres aportam o acolhimento e o bem-estar como propósitos que transcendem para a sociedade.

“O componente acolhedor da mulher também é muito importante nesse sentido. Independentemente da questão de gênero, acho que o importante é o legado que queremos deixar para a pesquisa agropecuária brasileira. Os nossos desafios não são os mesmos das últimas cinco décadas. Queremos construir um modelo sólido de sustentabilidade social, ambiental e econômica para as futuras gestões e gerações”, acrescenta Silvia.

Por fim, a presença feminina é um impulsionador de mudança e fonte de inspiração para que mais portas sejam abertas para as mulheres no setor. Como pontua Liège, “Liderar como mulher não é um desafio, é uma oportunidade”. E para a presidente da Embrapa, é uma chance de retribuir para as próximas gerações. “Espero que toda a minha experiência nesse trajeto, como a primeira mulher chefe de um centro de pesquisa e, depois como presidente da Embrapa, sirva como um legado para as próximas mulheres que virão”, afirma Silvia.