Qual o impacto da liderança negra na publicidade brasileira?
Falta de mulheres negras no comando de agências e anunciantes desafia a narrativa de diversidade da indústria
Embora a representatividade racial na publicidade passe por todas as dimensões da indústria, duas são fundamentais: as campanhas e as agências. Enquanto o número de pessoas negras em peças publicitárias cresce, a presença nos times que as desenvolvem diminuiu. Isso é o que aponta o Censo de Diversidade das Agências Brasileiras de 2024, realizado em parceria com o Observatório da Diversidade na Propaganda (ODP) e a Gestão Kairós: no quadro geral, a porcentagem de mulheres negras caiu de 21% para 17% de um ano para o outro. A proporção do grupo diminui conforme a hierarquia, sendo gerente (13%), diretoria (6%) e CEO (3%).
Apesar do cenário, é possível identificar um aumento de mulheres negras no alto comando. Em 2023, a porcentagem era zero. Já em 2024, foi de 3%. Nas cadeiras de gerência e diretoria, elas representavam 4,6% em 2023. Mesmo diante do crescimento tímido, as profissionais da área destacam que ainda há muito o que avançar.
“A porta até abriu, mas a estrutura não mudou o suficiente para que elas permanecessem”, reflete Tatiana Marinho, CEO da Gana. “No último ano, notamos um retrocesso. Empresas encerraram as áreas dedicadas à diversidade ou reduziram investimentos sob o argumento de redução de custos”, continua.

Tatiana Marinho, sócia e CEO da Gana (Crédito: Felipe Adati)
Joana Mendes, cofundadora e CCO da Jungle Kid, destaca como o caso George Floyd foi um propulsor de contratações e da criação de programas de diversidade. “Muita coisa mudou naquele momento. Mas, passados alguns anos, há um arrefecimento claro. Os números mostram queda na presença de mulheres negras nas agências. Isso revela que o tema ainda não está consolidado como estratégia de longo prazo. Quando há pressão externa, o mercado se movimenta, mas quando a pressão diminui, as prioridades mudam”, avalia.
Para Bia Lopes Maria, head of creative na W3Haus, houve um movimento de contratação, mas sem avanços na cultura interna. “O resultado foi um alto turnover e a repetição de práticas racistas veladas”, aponta. “É doloroso constatar que, enquanto vítimas de racismo seguem deixando o mercado, muitos dos agressores permanecem e são promovidos. Isso mostra que o problema é estrutural. A publicidade reconhece o poder da negritude como força cultural e econômica, mas nem sempre há interesse genuíno em transformar esse reconhecimento em mudança concreta.”

Bia Lopes Maria, head of creative na W3Haus (Crédito: Divulgação)
A avaliação das entrevistadas é que houve um aumento da presença de pessoas negras principalmente na base, mas estas profissionais ainda enfrentam grandes desafios para ascender na carreira. “É o que a Chimamanda fala sobre o perigo da história única: quando apenas um grupo conta a história, ela fica incompleta. Há um esforço para trazer diversidade, mas ainda falta criar caminhos de desenvolvimento, promoção e permanência. Falta garantir que essas pessoas tenham espaço, voz e poder de decisão. Não basta ter diversidade na porta de entrada, porque a transformação real só acontece quando ela chega também à sala onde as decisões são tomadas”, afirma Gabriela Guerreiro, diretora de marketing da The Fini Company no Brasil.
Representatividade nas campanhas
De acordo com um estudo recente da SA365, Elife e Buzzmonitor, em 2024, as pessoas negras estavam presentes em 39,9% das publicidades digitais com imagens de pessoas, versus 31,6% no ano anterior. Em outro levantamento, o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), núcleo de pesquisa da UERJ, destacou um aumento na representatividade de pessoas não brancas de 1987 até 2017, de 7% para 18%. Neste estudo, os homens brancos são a maioria dos modelos em anúncios e representavam, em média, 52,5% do total. Por outro lado, mulheres não brancas foram o grupo menos presente, com apenas 3,5%.
A mais recente pesquisa “Consciência Negra – Realidades em Preto e Branco”, realizada pela HSR Specialist Researchers, em outubro, a pedido do Valor, aponta que, se em 2023 apenas 26% das pessoas negras diziam se sentir representadas na propaganda, em 2025, o índice subiu para 35%.
Já o relatório “Representa: O mapa da representatividade da publicidade brasileira”, de 2023, realizado pela Aliança Sem Estereótipos e coordenado pela ONU Mulheres, apresenta alguns dados positivos sobre a presença de mulheres negras em campanhas. Entre 2016 e 2022, houve um aumento deste grupos nas peças digitais no Instagram e Facebook de 12% para 28%, assim como protagonistas na televisão, de 3% para 18%.
Entretanto, o próprio estudo aponta que nos últimos anos houve uma estagnação e até retrocesso do protagonismo negro com reforço de estereótipos negativos. A quantidade de mulheres negras na TV em papéis principais diminuiu nos dois anos anteriores, de 22% em 2020, para 27% em 2021 e 18% em 2022. Já no digital (Instagram e Facebook), elas eram 35% em 2020, 25% em 2021 e 28% em 2022.
“As propagandas evoluíram nessa questão, e não sozinhas. A representação das mulheres negras vem mudando em todos os pontos de comunicação: dos papéis nas novelas às influenciadoras que passaram a ser valorizadas pelas marcas. Ainda assim, acredito que há muito o que avançar”, avalia Camila Rodrigues, diretora de criação da Wieden+Kennedy São Paulo.

Camila Rodrigues, diretora de criação da Wieden+Kennedy São Paulo (Crédito: Divulgação)
Entretanto, a aparição isoladamente não significa avanço. “Hoje vemos mais mulheres negras ocupando espaços de protagonismo, não apenas como símbolo de resistência, mas como referência de sucesso, inteligência e liderança. Ainda assim, existe um padrão de representação muito limitado: a mulher negra continua sendo retratada dentro de um enquadramento social específico, e não na pluralidade que de fato nos define”, complementa Camila Miranda, head de marketing da Adobe para América Latina.
Segundo a pesquisa da Aliança Sem Estereótipos, em 2022, 31% das peças analisadas mantinham uma narrativa neutra sobre diversidade, enquanto 18% reforçam estereótipos. A análise não traz uma visão específica da mulher negra, mas aponta que, dentre as campanhas que retratam mulheres estereotipadas, existe uma grande ausência de diversidade racial.
“Ainda vemos, sim, a representação da mulher negra presa a antigos estereótipos com os quais fomos obrigadas a conviver: a cuidadora, a mulher ‘forte o tempo todo”’ a hiperssexualização do corpo”, reforça Mariana Coelho, diretora de estratégia da WMcCann. “Por outro lado, precisamos reconhecer que existem campanhas que trazem mulheres negras sob perspectivas menos estereotipadas e geram novas provocações sobre o nosso lugar. E esses são exemplos claros de como a publicidade tem um papel fundamental no debate racial no Brasil”, continua.
Para Gabriela Guerreiro, a diferença é que hoje este tipo de narrativa estereotipada não passa despercebida. “O público questiona, as marcas sentem a pressão, e dentro das empresas já tem gente puxando essa conversa com mais coragem. Esse tensionamento constante é importante, mas ele é novo”, aponta.
Publicidade antirracista
“A publicidade tem um papel estratégico no combate ao racismo”, destaca Camila Novaes, diretora de marketing da Visa no Brasil. “Ela não só reflete, mas também molda percepções e comportamentos. Quando a publicidade dá visibilidade positiva a pessoas negras e constrói narrativas antirracistas, contribui para desconstruir estereótipos e combater o racismo. Por outro lado, a invisibilidade ou a representação negativa perpetua a exclusão e reforça preconceitos. É uma responsabilidade que vai além do comercial: trata-se de construir referências e abrir caminhos para uma sociedade mais justa”, segue.

Camila Novaes, diretora de marketing da Visa no Brasil (Crédito: Divulgação)
Para Camila Rodrigues, a indústria também tem papel pedagógico. “As propagandas ensinaram as pessoas a usar creme dental, a colocar bombril na antena e até a fazer piadas equivocadas por décadas. Por isso, é preciso tratar cada mensagem com responsabilidade, porque ela vai ser repetida incontáveis vezes para o público”, reflete.
Assim como a educação proposta por Paulo Freire, a publicidade também pode ser instrumento de opressão ou libertação. “Ela molda imaginários, cria referências e legítima presenças. Quando uma marca mostra uma mulher negra liderando um projeto ou um homem negro ocupando um lugar de destaque, ela não está só vendendo um produto, está ampliando o campo do que a sociedade entende como possível”, complementa Gabriela.
Conforme explica Bia Lopes, a publicidade molda o imaginário coletivo. “Ela define o que é aspiracional, desejável e digno de ser visto”, pontua. Entretanto, a criativa destaca que a indústria brasileira precisa remodelar o imaginário sobre o que é ser negro no Brasil. “Precisamos substituir narrativas estigmatizadas por representações reais, diversas e potentes, que mostram a multiplicidade de existências negras”, continua.
Brasil real
Uma vez que 56% da população brasileira é composta de pessoas que se declaram pretas e pardas, segundo o IBGE, quando a publicidade não retrata esses corpos, ela se afasta de seu próprio público consumidor. Isso não só impacta a efetividade das campanhas, mas também traz consequências sociais que vão além da comunicação e tocam na construção da identidade brasileira.
“Isso cria uma desconexão profunda: com a própria identidade e com a ancestralidade. E alimenta algo muito brasileiro, silencioso, que muitos autores chamam de ‘aspiração à brancura’: uma tentativa de se afastar da própria origem porque ela não foi validada socialmente”, destaca Gabriela Guerreiro.

Gabriela Guerreiro, diretora de marketing da The Fini Company no Brasil (Crédito: Divulgação)
Além disso, existe um impacto individual na autoestima dessas pessoas. “Negar ou invisibilizar a negritude na publicidade afeta profundamente a constituição da identidade individual e coletiva dos brasileiros. A ausência de representatividade limita sonhos, enfraquece a autoestima e reforça a ideia de que certos espaços não nos pertencem. Isso não é apenas uma questão simbólica, mas uma violência que impacta gerações e perpetua desigualdades”, destaca Camila Novaes.
“Quando uma criança não se sente representada, ela aprende cedo que certos espaços ‘não são para ela’. Quando um adulto não se vê, ele acaba internalizando a ideia de que precisa se ajustar o tempo todo para caber em padrões que nunca foram feitos com a sua história em mente”, complementa a diretora da Fini.
A invisibilidade não é neutra. Na verdade, ela acaba reforçando o mito de que o Brasil é um país “sem hierarquias raciais” e aprofunda desigualdades e violências simbólicas. “A negação da negritude mantém vivo o mito da ‘democracia racial’ e a ideia de que o racismo é um problema menor ou pontual. Quando as experiências, dores, alegrias e conquistas de pessoas negras não são contadas, o Brasil perde a chance de se enxergar como realmente é: um país profundamente marcado pela contribuição negra em todas as esferas”, reflete Mariana Coelho.

Mariana Coelho, diretora de estratégia da WMcCann (Crédito: Divulgação)
Outras consequências são a criação de uma visão distorcida da realidade do país e a dificuldade de enfrentar o racismo. “Enquanto isso não mudar, nossa indústria continuará limitada na sua capacidade de criar conversas que refletem o Brasil e não teremos uma transformação real e duradoura. E isso impacta não só pessoas negras, mas toda a sociedade. Quando um país não reconhece sua própria pluralidade, ele se torna incapaz de projetar futuros mais justos”, afirma a CEO da Gana.
Diversidade nos bastidores
“A autenticidade de uma campanha depende diretamente de quem está por trás dela. Se o time criativo é diverso, o olhar sobre o mundo também é, e isso se reflete em narrativas mais humanas e conectadas com o público”, destaca Camila Miranda.
A diversidade dentro das agências e marcas é motor da transformação e é o que impede que as campanhas retratem a realidade como ficção. “Ela faz diferença direta no resultado. Quando há pessoas negras participando das decisões, da estratégia à direção, as narrativas ficam mais precisas, mais naturais e menos sujeitas à caricatura”, adiciona Joana Mendes.

Joana Mendes, diretora de criação (Crédito: Divulgação)
Quando pessoas negras não estão nos espaços de criação, decisão e desenvolvimento, o risco de cair em narrativas e representações estereotipadas, ou até neutras, é muito maior. “A chance de acerto aumenta porque existe repertório, vivência, sensibilidade. Quando essa diversidade não está presente, o risco de voltar para o ‘lugar de sempre’ reaparece, não por má intenção, mas por falta de referência mesmo. Por isso, a representatividade não pode caminhar sozinha. Ela precisa vir acompanhada de intenção, preparo e repertório. Só assim a gente sai do estereótipo e chega na complexidade real das mulheres negras”, destaca Gabriela Guerreiro.
Além disso, existe um custo para a própria criatividade, que deixa de se beneficiar de diferentes perspectivas. “Não adianta falar sobre inclusão se o processo criativo continua sendo construído a partir de um único ponto de vista. Quando há pluralidade nas equipes, de gênero, raça, vivência e pensamentos, as campanhas se tornam mais humanas, criativas e conectadas com o mundo real”, reforça Camila Miranda.

Camila Miranda, head de marketing da Adobe para América Latina (Crédito: Divulgação)
Apenas com pessoas negras dentro dos times, e em todas as esferas de decisão, da base ao topo, é que é possível criar novas narrativas que empoderam e movem os ponteiros. “Hoje, precisamos ir além da representatividade de elenco. É sobre como marcas e agências se posicionam com coragem, clareza e, principalmente, consistência, contra o racismo. Isso significa compromisso: revisar roteiros, piadas, estereótipos, investir em pessoas negras nos times, apoiar iniciativas de formação e usar a força da comunicação para validar histórias sob o ponto de vista das pessoas negras”, afirma Mariana Coelho.
“O papel de agências e anunciantes é criar um ambiente em que esses vieses sejam identificados, corrigidos e, principalmente, substituídos por narrativas que ampliem o jeito de olhar para a pessoa negra no Brasil, com mais verdade, respeito e potência”, conclui a diretora de estratégia da WMcCann.