Women to Watch

O futuro da IA no Brasil: entre o otimismo e os desafios

Karina Lima, da AWS no Brasil, revela tendências e obstáculos para o uso da inteligência artificial entre as empresas

i 20 de outubro de 2025 - 14h59

Karina Lima, head de startups na AWS no Brasil (Crédito: Divulgação)

Karina Lima, head de startups na AWS no Brasil (Crédito: Divulgação)

Em um cenário onde a inteligência artificial já é uma realidade para 40% das empresas brasileiras, compreender os rumos dessa tecnologia transformadora se tornou essencial. Segundo a pesquisa “Desbloqueando o potencial da IA no Brasil”, encomendada pela Amazon Web Services (AWS) à Strand Partners, mais da metade das startups brasileiras (53%) já usam inteligência artificial, e 31% desenvolvem novos produtos com base nessa tecnologia. O estudo ainda destaca que 78% dos entrevistados acreditam que a IA transformará seu setor nos próximos cinco anos.

Entre as startups, a IA é base para inovação: 22% consideram a tecnologia essencial para suas operações e 29% usam IA para aplicativos avançados, acima da média nacional de 12%. O impacto da IA já é percebido pelas empresas. 95% das organizações que já adotam a tecnologia registraram crescimento de receita, com aumento médio de 31%. Além disso, 85% esperam reduzir custos, combinando crescimento com ganhos de eficiência operacional, e 89% projetam aceleração de crescimento para 2026.

Entretanto, o nível de maturação do uso da IA ainda está engatinhando entre as empresas brasileiras: 62% usam a tecnologia de maneira básica, 26% intermediária e apenas 12% em nível transformador, capaz de reinventar produtos, serviços e estabelecer novos padrões competitivos.

Karina Lima, head de startups da AWS no Brasil, traz para esta entrevista um olhar analítico sobre esse ecossistema. Ela não apenas visualiza as tendências para os próximos anos, com destaque para a busca por qualidade de vida e a aceleração da inovação corporativa, mas também mapeia como startups e empresas estabelecidas estão usando a IA de forma prática.

Ela ainda aborda os desafios críticos para o país, como a capacitação de mão de obra e a urgência de mantermos o pensamento crítico.

Meio & Mensagem — Quais tendências de IA generativa você visualiza para 2026?

Karina Lima — Fizemos uma pesquisa chamada “Desbloqueando o Potencial da IA no Brasil”, com um recorte para a América Latina, especialmente para o Brasil, e ficamos muito impressionados com os resultados. O que precisamos entender agora é como utilizá-la melhor, tanto no nosso dia a dia, como pessoas físicas, quanto nos negócios. Uma das tendências é a busca por mais tempo livre e qualidade de vida. Mesmo em meio ao caos, acreditamos que a IA pode nos ajudar a otimizar o tempo, criar novas oportunidades e permitir que as pessoas façam mais do que amam.

Do ponto de vista corporativo, muitas empresas, especialmente startups, já estão incorporando a inteligência artificial em seus produtos e serviços. Para você ter uma ideia, nossa pesquisa mostrou que 53% das startups brasileiras já usam IA, enquanto a média nacional entre pequenas, médias e grandes empresas é de 40%. Esse número é alto em comparação com outras regiões, o que impressiona bastante. Um dado interessante é que 25% das empresas do setor de educação que já usam IA estão reportando crescimento de receita. Quando vemos números tão expressivos, fica claro que essa tendência continuará crescendo e se desenvolvendo.

M&M — Como a IA tem sido usada para a inovação entre as startups brasileiras?

Karina — O mais bacana das startups é essa capacidade de entender rapidamente as novas demandas e se reinventar com agilidade. Temos visto startups aproveitando oportunidades para desenvolver soluções em áreas muito importantes para o Brasil, como a jurídica, por exemplo. A Solex AI é uma empresa que está criando ferramentas para ajudar advogados a redigir melhores petições, identificar pontos de melhoria nas ações e otimizar processos. Já a AICube desenvolveu um processo chamado “Synthetic Workforce Technology”, que automatiza funções voltadas à operação de sistemas de tecnologia de forma mais ágil, a partir da inteligência artificial.

Além dessas, há startups fazendo trabalhos incríveis na área da saúde e biotecnologia. A gente já tem visto notícias de empresas que estão acelerando o desenvolvimento de novos produtos e medicamentos, e até possibilitando o diagnóstico precoce de doenças graves, como o câncer. Tudo isso porque a IA tem uma capacidade muito maior de processar dados do que o humano. Essa parceria entre humanos e tecnologia continua sendo fundamental para o sucesso dessas startups, e essa combinação torna o trabalho ainda mais relevante e transformador.

M&M — E como a IA está sendo usada para a produtividade pelas empresas?

Karina — O ser humano tem essa busca constante por melhorar a maneira de usar o tempo, que é o único ativo que a gente não recupera. Então, com ferramentas como o Asana e o Slack, a gente consegue automatizar ações para torná-las mais eficientes. Na minha equipe, por exemplo, automatizei alguns indicadores para que o time receba no Slack um alerta meu dizendo: “Olha, esse indicador precisa da sua atenção. Vamos montar juntos um plano de ação?”. E com ferramentas como o Amazon Q, que é um agente da própria AWS, já conseguimos sugerir algumas ações, como “que tal entrar em contato com tais clientes?” ou “observar como eles estão adotando determinada tecnologia”. Isso ajuda a equipe de relacionamento com clientes a ser mais objetiva nessas interações, preservando o tempo de todos. Os agentes são outro exemplo que continuará crescendo e têm sido cada vez mais adotados. E, claro, sempre com atenção à segurança, especialmente a de dados e ao uso responsável da tecnologia.

M&M — Quais vantagens competitivas o uso da IA generativa possibilita?

Karina — A transformação da IA vem justamente da possibilidade de fazer novas perguntas, porque, para mim, essa é a capacidade máxima do ser humano: questionar. Mas algumas perguntas antes nem conseguíamos formular, porque não tínhamos capacidade de acessar as fontes certas ou explorar outras áreas de informação. Por isso, o mais bacana desse campo é justamente destravar perguntas que ainda não éramos capazes de fazer. E agora temos respostas de maneira rápida e acessível, sem precisar esperar anos, o que nos permite fazer novas e melhores perguntas continuamente.

Minha maior preocupação é colocar o ser humano como parte desse processo. Sempre existiu essa discussão sobre a substituição do trabalho, mas não vejo problema nisso se entendermos nosso papel. Para mim, a visão complementar é justamente colocar o ser humano no centro da discussão e refletir sobre qual é o papel dele em cada uma dessas mudanças, especialmente no que diz respeito ao alívio de tarefas e à transformação do nosso dia a dia.

M&M – Quais as principais barreiras para a adoção da IA generativa no Brasil?

KarinaUm ponto que se destaca para nós é a formação de mão de obra. Ter a mão de obra capacitada é essencial, e por isso o desenvolvimento de pessoas qualificadas é uma prioridade. Inclusive, assumimos publicamente o compromisso de treinar um milhão de pessoas nos próximos anos. Como parte disso, já iniciamos uma parceria com o Sebrae e, até agora, já treinamos mais de 53 mil pessoas. Mas esses não são os únicos desafios. Também nos preocupamos muito com a nossa capacidade de extrair conteúdo relevante e de medir o retorno sobre os investimentos feitos. É um trabalho que realizamos junto aos nossos clientes, ajudando-os a aprimorar esses processos e a entender como podem ser feitos de forma mais eficiente.

M&M – Quão crítica é essa lacuna de talentos para o futuro da inovação em IA no país?

Karina Uma lacuna importante que a gente percebe é a questão da idade e da experiência em tecnologia, principalmente em startups e produtos já em versões avançadas. Hoje, temos equipes com pessoas jovens, estagiários, mas ainda assim apenas uma pequena parcela da força de trabalho brasileira está preparada para lidar com isso. É uma situação preocupante, porque mesmo que você produza tecnologia, essas empresas precisam ser capazes de extrair valor dela e aplicar a IA de maneira transformadora no negócio. Estou falando de startups, mas também de grandes empresas que estão começando a adotar inteligência artificial ou a treinar suas equipes conosco. Algumas participam mais ativamente, outras menos, mas todas precisam investir no desenvolvimento da mão de obra. O desafio é ainda maior para pequenas e médias empresas do Brasil, que representam mais de 90% da nossa força profissional. Se o negócio não é baseado em IA, existe também o desafio de adotar a tecnologia como aliada e não obstáculo.

Acredito que aí entra o papel fundamental do treinamento: preparar pessoas que não são da área de tecnologia para usar a IA de forma eficiente. A IA generativa tem grande potencial nesse sentido, porque a facilidade de interação, a naturalidade da linguagem e a capacidade de adoção por qualquer pessoa tornam a tecnologia mais acessível.

M&M – Como o Brasil se posiciona na corrida para a criação de data centers? Quão importante é a construção de data centers no país?

Karina Muito importante. Muitas das soluções que a gente oferece já estão disponíveis no Brasil, nos nossos data centers. Mas o desafio do data center não é só nosso; é global, e passa principalmente pela questão da energia, porque tecnologias assim consomem muita [energia]. Por isso, a Amazon é uma das cofundadoras do The Climate Pledge. Sustentabilidade é um pilar fundamental para a gente, justamente porque precisamos alinhar nossa operação à energia limpa e zerar nossas emissões de carbono, inclusive antes dos compromissos públicos assumidos. Então, não se trata apenas de ter data centers e disponibilizar tecnologia, mas de entregar essa tecnologia sem impactar negativamente o planeta.

Outro ponto importante: quando falamos de IA generativa, não estamos falando apenas de capacidade computacional, mas também da eficiência dessa capacidade. Na AWS, por exemplo, temos três camadas de soluções de IA generativa. A primeira é a camada em que os produtores consomem a tecnologia, incluindo capacidade computacional e chips mais produtivos, que permitem processar mais dados de forma eficiente com a mesma tecnologia. Você consegue desenvolver mais e melhor.

A segunda camada é intermediária, funcionando como um marketplace de modelos de linguagem. Nosso objetivo é democratizar o acesso à tecnologia, permitindo que os clientes escolham o modelo mais adequado ao seu caso de uso e possam trocar caso encontrem outro mais eficiente. A terceira camada envolve agentes e outras aplicações prontas, como apps. Ou seja, trabalhamos em três camadas diferentes, mas para todas elas é essencial que a tecnologia esteja disponível e segura. Nosso investimento no Brasil tem sido crescente, focado em entregar essa capacidade de forma confiável, garantindo que os clientes possam adotar a tecnologia com autonomia e segurança, escolhendo o que for melhor para eles.

M&M – Como a IA está sendo aplicada na área de comunicação?

Karina A gente tem visto alguns casos muito legais. A Meliva, por exemplo, uma empresa de Goiás que surgiu dentro da Universidade de Goiás, começou desenvolvendo produtos para empresas sociais e hoje cria campanhas inteiras usando IA generativa. Eles usam diferentes modelos para produzir campanhas de marketing mais rápidas e mais baratas para as empresas. Outro caso interessante da Adidas. Eles mudaram completamente o processo de construção de produto: em vez de criar, produzir, exportar e depois lançar a campanha de marketing, eles idealizam o produto com IA, lançam a campanha e testam a aderência do cliente antes de investir na produção. É incrível como a tecnologia pode inverter a lógica de valor.

M&M — Existe uma também uma discussão sobre os riscos do uso da IA sobre a capacidade de pensamento crítico, principalmente entre os jovens. Qual a sua visão sobre este problema?

Karina Isso toca muito meu coração, porque para mim é um tema extremamente importante. Nasci numa favela no Rio de Janeiro, e minha mãe, se esforçando para pagar os estudos dela, sempre me dizia: “Você vai ter educação, mas vai ter que correr atrás”. Não me esqueço disso quando penso nos jovens de hoje. Eles têm acesso a uma quantidade enorme de informação, mas nosso cérebro, neurocientificamente, ainda não está preparado para lidar com tantas fontes e com a quantidade de interações que as mídias sociais trazem. Isso representa um desafio enorme, especialmente para os jovens.

Cito minha mãe porque acredito que a educação é essencial para desenvolver senso crítico, que não podemos perder. Todos nós, não só executivos ou profissionais do mercado, mas também influenciadores, temos um papel fundamental em incentivar o desenvolvimento do pensamento crítico. É preciso saber o que estamos vendo, questionar se aquilo é realmente a realidade completa e buscar outros lados da história, em vez de simplesmente seguir algoritmos que reforçam nossas ideias. O aprendizado de máquina funciona pelo reforço positivo, mas nós também fomos educados assim. Quando éramos crianças, se fazíamos algo certo, recebíamos elogios; se não, éramos corrigidos. Se conseguirmos aplicar esse aprendizado à nossa vida hoje, podemos lidar melhor com os desafios atuais: criar uma relação saudável com a tecnologia, colocando-a para trabalhar a nosso favor, e não o contrário.

Vejo esse como um grande desafio para as gerações futuras, mas não tenho dúvida de que vamos encontrar o caminho. Sou uma entusiasta desse debate e tenho muita esperança. Apesar das incertezas sobre nosso papel nesse mundo de tecnologia e excesso de informação, acredito que podemos promover mudanças significativas. Por isso, dedico parte do meu tempo a advogar sobre isso, especialmente com jovens, mas também com pessoas na terceira idade, que muitas vezes se sentem excluídas desse movimento. Trabalhar essas duas camadas, jovens e terceira idade, e trazê-los para o debate, é uma bandeira pessoal para mim.