O poder da hospitalidade irracional
No trabalho, nas relações e na vida, não precisamos nos contentar com o razoável

(Crédito: Shutterstock)
Quando vi o título “Unreasonable Hospitality” na livraria, senti um arrepio. Pensei: “é sobre mim”. E não demorou para que as (muitas) lembranças me alcançassem. Ao longo da vida, sempre ouvi que eu nunca estava satisfeita. Que eu sempre queria mais, que sempre acreditava ser possível fazer melhor.
No fundo, acho que é verdade. Sempre acreditei que a nossa verdadeira obrigação, quando servimos ou acolhemos, é ir além do que se espera. É antecipar desejos, necessidades e até sonhos de quem está diante de nós.
Esse impulso de cuidar não nasceu no trabalho. Nasceu em mim. Desde menina, eu sentia prazer em servir. Não como algo que me diminuísse, mas como um gesto que me completava. Servir era criar situações bonitas, preparar um ambiente, acender uma luz na intensidade certa, escolher um detalhe que fizesse alguém se sentir especial. Era o meu jeito de demonstrar amor e atenção.
Lembro quando meu pai, numa viagem à Suíça, voltou e me disse: “filha, você tem todos os talentos para o mundo da hospitalidade”. Ele tinha visto de perto a seriedade e a beleza desse ofício em escolas que formavam profissionais do acolhimento. Ali, a hospitalidade não era vista como improviso ou simpatia, mas como uma ciência, uma arte. E foi assim que segui: primeiro como formação, depois como destino.
Na faculdade, aprendi uma lição dura e essencial: hospitalidade não é capricho nem luxo. É disciplina, é precisão, é ética no detalhe. Meus professores, rígidos, diziam: “vamos quebrar a espinha dorsal de vocês”. Queriam nos ensinar que hospitalidade é transcender. É compreender o que não foi dito. É oferecer o inesperado com naturalidade.
Por isso, costumo dizer que hospitalidade irracional é quase um vício. Porque onde quer que eu entre, em qualquer espaço, eu enxergo imediatamente o que poderia ser melhorado. Um prato que poderia ser servido mais quente, uma mesa que poderia estar posicionada de modo mais acolhedor, uma palavra que poderia ser dita com mais gentileza. Não consigo desligar esse radar. Ele está sempre ativado.
E não falo apenas de experiências luxuosas. Pelo contrário. A hospitalidade irracional pode estar num botequim de esquina no Rio de Janeiro. Está no chope que chega gelado e com colarinho perfeito, no croquete sequinho que não pinga óleo, na brisa que entra pela janela aberta, na iluminação que favorece as pessoas em vez de cansá-las. São gestos simples, mas que mostram atenção. São lembranças que ficam para sempre.
Esse é o poder da hospitalidade irracional: ela não tem fim porque deixa rastros. Quando alguém nos oferece esse tipo de experiência, ela fica guardada na memória com a força das primeiras lembranças da infância. É quase como voltar àquele tempo em que tudo era novidade e cuidado. E, por isso, transforma.
Mas encantar sozinho é impossível. O que eu aprendi ao longo do tempo é que hospitalidade irracional precisa ser cultura, não apenas talento individual. É preciso montar equipes com pessoas que compartilhem do mesmo prazer em oferecer mais do que se espera. Gente que não ache exagero querer encantar, mas que veja nisso um propósito. Só assim é possível criar marcas sólidas, relações que resistem, experiências que deixam marcas de verdade.
E talvez o maior segredo seja esse: hospitalidade irracional não está em “dar demais”, mas em compreender profundamente o humano que está diante de nós. É atenção, é presença, é respeito. É lembrar que servir não diminui ninguém. Pelo contrário, é um ato de humanidade e de beleza.
No fundo, hospitalidade irracional é um convite: para não nos contentarmos com o razoável, para não pararmos no mínimo aceitável. É escolher encantar, surpreender, cuidar, transformar o ordinário em extraordinário. É lembrar, todos os dias, que ser humano é desejar. E que quando atendemos esse desejo com generosidade e delicadeza, criamos memórias que nunca se apagam.
Quando fechei o livro “Unreasonable Hospitality”, de Will Guidara, percebi que tinha mesmo lido sobre mim mesma e sobre tudo o que acredito. Guidara, que transformou o Eleven Madison Park em um dos melhores restaurantes do mundo, não fala de luxo, mas de humanidade. Cada página me lembrou que a hospitalidade irracional é enxergar no outro suas vulnerabilidades e sonhos, e responder a eles com generosidade. Esse caminho não é excesso, mas potência. É futuro.
Talvez essa seja a maior lição: no trabalho, nas relações e na vida, não precisamos nos contentar com o razoável. Podemos escolher sempre o irracional.