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Por que mulheres negras ainda se sentem solitárias na liderança?
Machismo, racismo e outras barreiras do mercado são os principais desafios para a ascensão delas na carreira
Por que mulheres negras ainda se sentem solitárias na liderança?
BuscarMachismo, racismo e outras barreiras do mercado são os principais desafios para a ascensão delas na carreira
Lidia Capitani
30 de setembro de 2024 - 9h16
Apesar das mulheres negras serem o maior grupo demográfico brasileiro, representando 28% da população, elas são apenas 10% das lideranças empresariais, conforme destaca pesquisa do Pacto Global da ONU Brasil e da 99jobs. Esta falta de representatividade, aliada aos desafios do machismo e do racismo, gera um sentimento de solidão para essas mulheres, que não encontram pares semelhantes, são constantemente excluídas dos espaços e questionadas sobre suas capacidades.
Na indústria da publicidade, a representatividade de mulheres negras diminuiu no último ano. Em 2023, elas eram 21% e, neste ano, caíram para 17%, de acordo com a segunda edição do Censo de Diversidade das Agências Brasileiras, realizada em parceria com o Observatório da Diversidade na Propaganda (ODP) e a Gestão Kairós. A proporção ainda diminui conforme a hierarquia sobe, sendo gerente (13%), diretoria (6%) e CEO (3%). Essa redução também foi identificada por Priscila Salgado, diretora de diversidade e inclusão da 99jobs, ao realizar a pesquisa “Mulheres Negras na Liderança”.
“Ainda observamos que na alta liderança e nos conselhos, a presença feminina diminui a cada ano. Enquanto isso, baixa e média liderança são onde as mulheres, especialmente as negras, estão crescendo e se tornando mais representativas”, avalia a diretora.
O primeiro impasse para a ascensão dessas mulheres é a porta de entrada. Outro estudo da Gestão Kairós, chamado “Diversidade, Representatividade e Percepção”, identificou que as mulheres negras representam apenas 9% do quadro funcional das empresas no Brasil. “Se elas não conseguem entrar, como vão ascender? E, mesmo quando entram, enfrentam barreiras invisíveis, tanto de raça quanto de gênero”, afirma Liliane Rocha, CEO da Gestão Kairós.
Ainda segundo a pesquisa da 99jobs, os principais desafios enfrentados por essas mulheres são o racismo estrutural, a conciliação com objetivos e atividades pessoais e o machismo institucional. “Infelizmente, ainda vivemos como se estivéssemos nos anos 1990 no Brasil, onde o papel das mulheres negras parecia pré-determinado”, provoca Jandaraci Araujo, conselheira e co-fundadora do Conselheira101, programa de formação para conselhos administrativos focado em mulheres negras e indígenas
Segundo a executiva, as barreiras de ascensão não se explicam pela falta de formação dessas profissionais. “Estou falando de mulheres extremamente qualificadas. As alunas do nosso grupo têm, em média, 25 a 30 anos de carreira. Mesmo com toda essa qualificação, o sistema simplesmente não permite o avanço. Isso já se mostrou uma desculpa infundada”, afirma Jandaraci.
Para a conselheira, as empresas ainda estão muito limitadas a promover diversidade apenas na base. “Mesmo hoje, quando falamos de diversidade racial, ainda é muito restrito: programas de trainee ou estágio e jovem aprendiz. É como se nós, profissionais negros, só passássemos a existir a partir da Lei de Cotas. Antes disso, éramos totalmente invisíveis”, aponta Araujo. Isso porque a lei tem apenas 12 anos, e as mais de cem alunas que já passaram pelo Conselheira101 são formadas antes disso.
Visto que o segundo maior desafio apontado pelo estudo é a dificuldade de conciliar o trabalho com a vida pessoal, isso se reflete na dificuldade de permanência dessas mulheres. “Quando consideramos que a maioria das mulheres cuidam de suas famílias, elas não só enfrentam questões financeiras, mas também lidam com aspectos emocionais que impactam diretamente suas famílias”, afirma Priscila Salgado.
Os mecanismos que barram sua entrada no mercado são permeados pelo machismo e racismo, e podem ser mascarados por exigências a mais, que não são cobrados de outros candidatos, por exemplo. “Há empresas que nem sequer têm operação internacional e exigem inglês, sendo que, em muitos casos, nem as mulheres brancas precisam atender a essa exigência. Então, criam-se barreiras desnecessárias”, destaca Jandaraci.
Quando conseguem entrar, a mesma exigência elevada é imposta sobre a avaliação de sua performance. Ou, ainda, as avaliações de desempenho não atestam sobre seu trabalho, e sim sobre comportamento ou estética. “Na verdade, quando uma mulher está prestes a conquistar uma posição, muitas vezes surgem novos critérios, ou as condições mudam sem aviso prévio, tornando o ambiente de trabalho psicologicamente inseguro e difícil, o que impede sua ascensão”, pontua a diretora da 99jobs.
“Uma experiência que tive foi receber feedbacks sobre meu cabelo. Mesmo já sendo líder global, me disseram que eu deveria fazer chapinha por ser negra”, conta Liliane Rocha. “Uma pessoa recém-chegada na empresa recebe esse tipo de feedback, e dependendo da sua geração e do seu contexto, pode acabar saindo. No meu caso, não saí porque já tinha uma trajetória consolidada e uma necessidade de permanecer ali”, continua.
A falta de representatividade, os desafios do machismo e do racismo criam um ambiente insólito para essas mulheres. O resultado é um sentimento de solidão, que impacta severamente o comportamento e a saúde mental dessas profissionais. Não se trata de uma solidão afetiva, conforme reflete Priscila Salgado, e sim de uma falta de troca e de inclusão nos espaços.
“Há reuniões em que essas mulheres não são convidadas, como os encontros no café, na academia, no almoço ou no happy hour. Não há mesas onde todos possam se reunir para discutir questões corporativas, e isso contribui para essa solidão”, explica a diretora da 99jobs. “Embora estejam em posições de liderança, as interações com elas são quase inexistentes, como se fosse absurdo considerar suas contribuições e a presença delas fosse vista como incompetência”, continua.
Em outros casos, o que fica implícito é falta de confiança sobre suas competências. Seja para dar a última palavra sobre um projeto ou com boicotes e exigências incabíveis. “Se conversarmos com essas mulheres, elas relatam histórias muito parecidas: orçamentos reduzidos, metas muito mais difíceis do que as de seus antecessores, e falta de autonomia para implementar as mudanças necessárias. O sistema vai, aos poucos, bloqueando suas ações”, relata Jandaraci Araujo.
O preço acaba sendo alto: “Isso leva à crença de que, de fato, ninguém escuta sua voz, fazendo com que você duvide de sua capacidade de tomar boas decisões”, aponta Priscila Salgado. Além disso, cria-se um sentimento de não pertencimento. Liliane Rocha identifica isso nos grupos de WhatsApp dos quais participa com outras lideranças. “Isso leva a uma situação em que mulheres negras, por exemplo, acabam mandando menos mensagens em grupos de negros ou em grupos de mulheres executivas. Quando isso acontece, fica a impressão de que elas têm menos a dizer, mas não é verdade”, conta.
Segundo o estudo “Potências (In)visíveis”, do Indique Uma Preta, existem três níveis de potências das mulheres negras no mercado de trabalho: reputação, performance e inovação. Para 83% dos consumidores, as empresas devem fazer transformações da porta para dentro antes de fazer discursos sobre diversidade, de acordo com um estudo da Box1824.
Para a CEO da Gestão Kairós, houve um avanço na questão da sensibilização sobre o tema, entretanto, isso não se refletiu na estrutura interna. “No ano em que tanto falamos sobre backlash, os anúncios publicitários envolvendo diversidade estão em alta. Cortou-se investimento em projetos estruturantes nas empresas, mas não na comunicação. O orçamento para publicidade pode variar de 1 a 30 milhões de reais para atingir públicos consumidores como mulheres, negros e LGBTs. Porém, no que diz respeito a projetos de diversidade, o cenário é bem diferente”, contesta Liliane.
Para tal transformação, as pessoas e empresas devem começar aceitando a existência do racismo, conforme avalia Priscila Salgado. Assim, é possível iniciar um processo de avaliação interna sobre a diversidade do seu quadro funcional e criar ações a partir desses resultados. O relatório da Indique Uma Preta aponta 8 passos para a jornada da transformação, começando pela motivação, que compreende a avaliação do cenário de maturidade da diversidade na empresa, e a mensuração, sensibilização e engajamento da liderança.
A partir de então, o estudo pontua ações para catalisar a transformação. O que inclui selecionar, contratar e pensar em soluções para os perfis diversos já existentes, com foco na promoção e reconhecimento. O passo seguinte é trabalhar a manutenção e desenvolvimento por meio de feedbacks e métricas de crescimento, além de promover a sensibilização de todos os colaboradores.
No entanto, tais ações requerem investimentos. “O grande salto seria transformar a sensibilização em ação, e isso inclui reavaliar onde as empresas estão investindo. Se uma empresa gasta 30 milhões de reais em marketing para atingir esses públicos, que tal investir metade disso em organizações sociais, consultorias, especialistas ou comunidades? Isso traria uma transformação real”, provoca Liliane.
O segundo nível de potência das mulheres negras é a performance que elas agregam às organizações. O relatório “Diversity Wins”, da McKinsey, já apontou que empresas mais diversas são mais propensas a ter maior lucratividade. Isso porque profissionais diversos adicionam suas vivências e perspectivas para os processos e decisões da empresa, resultando em novos olhares, soluções e reflexões. Mas, para isso, os processos seletivos precisam ser baseados em competências, e feitos de forma transparente, como reforça Jandaraci Araújo.
“Não é falta de currículo ou formação, é preconceito. Se buscarmos de forma proativa, encontraremos especialistas em finanças, na área jurídica e em tecnologia. Tem muita gente boa disponível”, relata a executiva. Isso também perpassa pela disseminação das oportunidades em círculos fora dos mesmos de sempre. “Tenho enfatizado para os meus clientes a importância de usar imagens de mulheres negras nas campanhas de captação de currículos e de buscar organizações especializadas que dialoguem com esse público”, aponta Liliane.
O que leva ao terceiro ponto das potencialidades das mulheres negras: a inovação. Não se trata apenas de promover justiça social, mas de construir um futuro e uma sociedade melhor. “Essa falta de diversidade e alteridade na liderança contribui para o modelo de sociedade que vivemos. Que outros modelos coletivos estamos perdendo por não incluir diferentes pessoas e perspectivas nesse debate?”, questiona a CEO da Gestão Kairós.
“Um dos maiores benefícios de termos mais mulheres no mercado é que, como sociedade, ficamos melhores. Quanto mais mulheres empregadas e produzindo, melhores famílias teremos e, consequentemente, uma sociedade infinitamente melhor. Isso significa mais recursos, crianças que se alimentam e estudam melhor”, complementa Priscila Salgado.
Para isso, o acolhimento e a permanência são os próximos passos a seguir. As especialistas reforçam a importância do letramento sobre vieses e da adoção de uma política contra o racismo e o machismo. O que entra em concordância com a última fase da jornada da transformação proposta pelo mesmo estudo, que contempla a promoção de uma cultura de segurança psicológica sob o viés racial, o investimento em capacitação e a garantia de representatividade em cargos com poder de decisão.
Nesse último ponto, a quantidade também importa para a garantia de ambientes mais acolhedores e inclusivos. Jandaraci e Liliane, por exemplo, não tiveram mulheres negras em quem se espelhar. Elas foram a primeira geração a conquistar esses espaços e abrir o caminho para as próximas.
Na pesquisa da 99jobs, 48% das entrevistadas afirmaram que se sentiram mais à vontade quando tiveram líderes mulheres. Além disso, 98% acreditam que sua trajetória não só abre espaço, como também “incentiva outras mulheres a galgarem seus objetivos de reverter a pirâmide”. Enquanto Liliane Rocha só via inspirações em modelos muito distantes, como Michelle Obama e Oprah Winfrey, o estudo da 99jobs já aponta novas inspirações brasileiras como Rachel Maia, Lisiane Lemos, Djamila Ribeiro, Nina Silva, Luana Génot e Monique Evelle.
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