O mundo acabou na virada do milênio

Buscar
Publicidade

Opinião

O mundo acabou na virada do milênio

O mundo como conhecíamos começou a acabar quando usamos a tecnologia para hackear o sistema que criamos expandindo nossa visão da realidade, gerando fricções de todos os tipos, questionando valores estabelecidos


10 de dezembro de 2019 - 9h43

(Crédito: Diy13/ iStock)

Se você respirou aliviado ao acordar no primeiro dia de janeiro de 2000 e percebeu que o mundo não havia acabado, que tudo continuava igual, a essa hora já deve ter percebido que estava errado. O mundo como conhecíamos começou a acabar bem antes da virada do segundo milênio e não foi apenas porque passamos a falar com aparelhos eletrônicos e a receber entregas através de drones. Não. Começou a acabar quando usamos a tecnologia para hackear o sistema que criamos expandindo nossa visão da realidade, gerando fricções de todos os tipos, questionando valores estabelecidos e revelando para nós mesmos nossa dificuldade de aprendizado e apego a padrões geradores de opressão e injustiça.

A segunda década do segundo milênio fez muito mais do que revelar a potência representada pelo encontro entre desenvolvimento tecnológico e científico. Revelou que o direcionamento positivo ou negativo dessa potência depende de qualidades humanas e do entendimento de ética como construção de bem comum. A revolução que vivemos é infinitamente mais potente que a alcançada na primeira Revolução Industrial e isso exige, urgentemente, uma revolução humana.

A perspectiva dos negócios, a única sobre a qual este texto trata, pode ser resumida pelo título de uma série de livros publicada pela Harvard Business Review em 2017: How to be human at work. Naquele momento, uma das mais importantes escolas de negócios do mundo assumia que havíamos nos afastado de valores humanos essenciais, apontando para a necessidade de olharmos com seriedade para questões que não podiam mais ser consideradas menores, passageiras ou irrelevantes. No auge do surgimento de uma nova economia, os acontecimentos mais marcantes desta década deixaram clara a necessidade de discussão de impactos até então considerados inevitáveis ou, simplesmente, parte do jogo.

Revelando o melhor e o pior da natureza humana, a década que vemos se encerrar comemorou a revolução promovida pelo Uber, um modelo de negócio baseado em uma lógica de economia compartilhada, que viu sua existência ameaçada por processos trabalhistas e tomou a decisão de investir na pesquisa de veículos autônomos com foco na substituição da frota de motoristas humanos, colocando em risco sua relação original com a construção de um modelo de corporação baseado no compartilhamento de interesses entre pessoas.

Na metade da década, a visão positiva da relação entre tecnologia e a construção de um mundo melhor, amplamente propagada em décadas anteriores, passou a considerar novas camadas, menos românticas, quando o mundo descobriu que potência e consequência andavam juntas ao conhecer as denúncias de que o Facebook, Twitter e outras mídias sociais foram usados como ferramentas de propaganda pela Rússia, Coreia do Norte, Irã e outros países na esperança de interferir nas eleições nos Estados Unidos. Logo depois, a geração e distribuição de fake news se transformou em fenômeno global junto com o colapso do nosso sistema individual de confiança.

Em 2010, o Trust Barometer, estudo anual publicado pela Edelman desde 2001, apontou para o valor da construção de confiança como uma linha essencial dos negócios. Em 2014, mostrou que as corporações estavam liderando o processo de mudança do mundo e, em 2017, apontou para a crise do sistema de confiança impulsionada pela corrupção (em todos os níveis) e pelas fake news. Nos anos seguintes, não ficou melhor. Em 2015, hackers roubaram contas de 250 mil usuários do Facebook com jailbreak em seus iPhones. No mesmo ano, a Apple ameaçou expulsar o Uber da App Store devido a uma violação dos termos de privacidade — o Uber encontrou uma forma proibida de identificar iPhones individualmente mesmo depois que o aplicativo era desinstalado — e criou uma “gambiarra”, chamada de “cerca geográfica”, para que os engenheiros da Apple não descobrissem o esquema. Em 2017, a polícia chinesa prendeu 22 pessoas suspeitas de vender dados de usuários da Apple.

Em 2018, estudo realizado pela EY com 2.550 executivos de 55 países mostrou que a fraude e a corrupção nos negócios não estão desaparecendo. Os resultados da pesquisa sugerem que os benefícios de demonstrar a integridade organizacional vão além da prevenção de penalidades e podem realmente melhorar o desempenho dos negócios. No mesmo ano, um recorde de 18% de CEOs foram substituídos, sendo que mais executivos foram demitidos por falta de ética do que por fraco desempenho ou desentendimento com o conselho de administração, segundo estudo da PwC, divulgado em maio de 2019.

Em 2019, Larry Fink, CEO da Black Rock, maior fundo de investimentos do mundo, afirmou, em carta anual para o mercado, que as empresas têm um papel fundamental diante dos principais desafios do mundo, ressaltando a importância do propósito como fator norteador de negócios: “Mudanças econômicas profundas e o fracasso dos governos em prover soluções duráveis levaram a sociedade a olhar para as empresas que devem demonstrar seu compromisso com os países, regiões e comunidades onde operam, especialmente nas questões centrais para a prosperidade do mundo. Atrair e reter os melhores talentos requer um propósito claro. Propósito orienta comportamento ético, cria mecanismos de fiscalização de ações que se desviem dos interesses únicos dos acionistas, guia culturas, fornece um framework consistente para tomada de decisão e mantém retornos financeiros de longo prazo”.

Em agosto do mesmo ano, 200 CEOs das maiores multinacionais americanas firmaram um compromisso que ressalta que a geração de valor para acionistas já não é mais o objetivo principal das empresas. Dentre os líderes, estão Jeff Bezos, da Amazon, Tim Cook, da Apple, Brian Moyhinan, do Bank of America e Denis Muilenburg, da Boeing.

A segunda década do século XXI deixou claro que algo muito melhor está por vir, dependendo do quanto formos capazes de olhar os problemas de frente e aprender na velocidade da revolução tecnológica que tanto celebramos. Mais uma vez, encerro com as palavras de Eduardo Giannetti sobre Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1988: “Se a economia desligada da ética é cega, a ética desligada da economia é vazia. O surpreendente não é que a teoria econômica e a reflexão ética voltem a caminhar juntas, mas que tenham permanecido divorciadas e incomunicáveis entre si por tanto tempo”. O mundo como conhecíamos e que nos trouxe até aqui acabou e isso não é ruim. Longa vida ao mundo que podemos ver nascer em substituição a ele.

*Crédito da foto no topo: Vijay Kumar/iStock

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • Premiunização para avançar

    Fazer leituras rasas dos cenários econômicos pode restringir oportunidades de negócios

  • Marcas fofoqueiras

    O consumidor deixa rastros de seus gostos (ou não) o tempo todo, resta às empresas saberem como lidar com isso