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Inserções de marcas no entretenimento: vale tudo?

Especialistas avaliam publis que marcaram o remake de Vale Tudo, cujo capítulo final vai ao ar nesta sexta, 17

i 17 de outubro de 2025 - 15h33

Usain Bolt Omo

Usain Bolt faz participação especial em Vale Tudo (Crédito: Manoella Mello/Globo)

O que você faria por dinheiro? A pergunta que ecoou em 1988, quando Vale Tudo estreou na Globo, voltou em 2025, agora em meio a um novo tipo de disputa: a das marcas por espaço dentro da ficção.

O remake assinado por Manuela Dias se tornou a novela das nove com maior faturamento da história da emissora, alcançando mais de 141 milhões de pessoas e registrando 87 ativações de conteúdo envolvendo 23 marcas, com média de uma a cada dois capítulos exibidos.

Entre os anunciantes estão Itaú, Vivo, BYD, Coca-Cola, Ambev, Uber, Dove, Omo, Comfort, Amazon, Paramount, Johnson Baby, Electrolux, Ram, Boticário, L’Oréal, Hapvida, Globoads, Chilli Beans, Cimed, Abbott, Copagaz, Tintas Coral e iFood.

Globo defende publicidade contextualizada

Segundo Manzar Feres, diretora de negócios, o objetivo é integrar as marcas de forma “orgânica e multiplataforma”, evitando inserções descontextualizadas, com desdobramentos em breaks dentro do contexto, redes sociais e conteúdos exclusivos do Globoplay.

A presença da agência fictícia Tomorrow, criada para a trama (na versão original, a empresa era uma revista), também contribuiu para as ativações.

Para a porta-voz, o sucesso comercial do folhetim está diretamente ligado ao poder simbólico das novelas.

“Nossas histórias têm impacto real na vida das pessoas, e essa conexão natural com o público fortalece a presença das marcas de forma orgânica e duradoura”, comenta.

Impacto na narrativa

Para o colunista Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo, as ações de merchandising “sempre impactam a narrativa, pois interrompem o foco do espectador na história para chamar atenção à mensagem comercial”.

“Embora o público já esteja acostumado a ver produtos em cena, prática que existe desde Beto Rockfeller (1969), da TV Tupi, o excesso e a má execução tornam essas inserções mais perceptíveis e, em alguns casos, viram motivo de piada nas redes sociais. Apesar das críticas, isso não altera a forma como o público acompanha a novela: pode irritar, mas não afasta os espectadores”, reflete.

Segundo Stycer, as inserções não interferiram no conteúdo crítico ou social da obra, exceto quando se tratavam de campanhas cívicas ou sociais.

Em Vale Tudo, por exemplo, o tema da adoção ganhou destaque no núcleo formado por Sarita (Luara Victoria Telles), Laís (Lorena Lima) e Cecília (Maeve Jinkings), enquanto a trama sobre pensão alimentícia acompanhou Lucimar (Ingrid Gaigher) em uma batalha contra Vasco (Thiago Martins).

Quando essas cenas foram ao ar, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro registrou aumento de 300% nos acessos ao aplicativo oficial do órgão.

Na avaliação do colunista Chico Barney, o remake representa “uma evolução” no modo como a teledramaturgia lida com as marcas, ainda que o volume de ativações cause estranhamento.

“As marcas fazem parte do cotidiano das pessoas e, portanto, podem fazer parte do cotidiano dos personagens. O desafio é encaixar a mensagem da marca na narrativa de maneira orgânica”, diz.

Para ele, Vale Tudo marca um processo de transição da TV aberta rumo a um modelo de negócios mais multiplataforma.

“Na disputa pela atenção, quanto mais pontos de contato reconhecíveis para o público, melhor. O telespectador quer se conectar com o universo da novela para além da tela”, afirma.

Desafio de integrar publicidade sem quebrar a história

Paulo Nassar, da ECA-USP e diretor-presidente da Aberje, e a professora Roberta Cesarino Iahn, da ESPM Rio, concordam que Vale Tudo é um laboratório para observar a tensão entre narrativa e publicidade. Para ambos, o desafio é integrar marcas sem que elas dominem a cena ou quebrem o realismo da trama.

“Quando a publicidade ocupa o centro da cena, a narrativa perde oxigênio e humanidade”, alerta Nassar.

“A saturação contínua, o que eu chamo de ‘blitzkrieg publicitária’ (a ofensiva de inserções contínuas sem respiro), gera exaustão estética e emocional. O público valoriza autenticidade; quando o roteiro vira catálogo, o engajamento se dissolve.”

Roberta complementa: “As inserções impõem tensão entre integridade dramática e necessidade de rentabilizar a obra. Quando um personagem age de forma ilógica apenas para fazer uma venda, o público percebe e reage. É aí que o realismo da trama se rompe.”

Para ela, Vale Tudo testou a paciência do público, mas provou que é possível monetizar sem perder relevância cultural.

Os dois lados destacam, porém, que há casos de integração bem-sucedida, quando a marca se torna parte orgânica do universo da trama.

Nassar cita séries internacionais como Mad Men e Emily in Paris, enquanto Iahn reforça que no Brasil, boas inserções foram observadas nas novelas Avenida Brasil e Verdades Secretas, onde o consumo dialoga com o drama sem sequestrar o enredo.

Visão de mercado

No mercado, o folhetim é visto como uma vitrine de práticas ainda em aperfeiçoamento. Para Barbara Cavalcanti, diretora de marketing do Grupo Bolt, “é inevitável que a publicidade esteja presente na televisão e que evolua junto com as novas formas de consumo. O que antes era uma inserção quase literal hoje se transforma em algo mais orgânico, mais próximo do cotidiano. Mas, quando a integração acontece de forma forçada, o público percebe e o roteiro perde força. A boa publicidade é a que serve à história.”

Ela reforça que a inserção de marcas dentro da narrativa é, no fundo, “uma disputa por relevância simbólica. Quando a marca se insere de forma orgânica, apropria-se de significados culturais e passa a integrar a memória afetiva do público. Não se trata apenas de exposição, mas de associação de valor.”

O público contemporâneo “é um leitor de narrativas, não um receptor passivo”, reforça Barbara. A audiência espera coerência entre TV, digital e pontos de venda.

“O impacto de uma inserção não se mede apenas pelo alcance, mas pela consistência narrativa entre plataformas. O que o personagem consome na TV precisa existir também no digital e nos pontos de venda.”

O olhar das agências

Karen Bartels, sócia e managing director da a.gente, responsável por Dove, explica que a marca passou por sua maior renovação nos últimos 15 anos e precisava se inserir no roteiro sem interromper a narrativa.

“Cada aparição foi tratada como parte orgânica do roteiro, respeitando tom, ritmo e universo simbólico da trama. Na tela e nas redes sociais, nossa função foi traduzir a conversa cultural do público em narrativa, mantendo coerência entre on e off”, detalha.

Rafael Ziggy, CCO da Droga5, que trabalhou OMO e Zé Delivery, enfatiza a contextualização: “Nos breaks, OMO reforçou a limpeza rápida de figurinos durante os momentos icônicos da novela, como a morte de Odete e a revelação do assassino. Entre esses momentos, criamos conteúdos digitais com influenciadores, brincando com teorias sobre o assassinato, reforçando atributos do produto de forma natural.”

Quanto a Zé Delivery, a interação entre personagens e redes sociais impulsionou engajamento positivo.

No caso de Boticário, Sofia Calvit, executive creative director da Gut, destacou que respeitar a personalidade dos personagens foi essencial.

Odete, que despreza produtos nacionais, criticava Botik na trama, enquanto Débora Bloch apresentava a marca nas redes sociais, criando coerência entre obra e artista.

uem não matou Odete Roitman? O público, que nunca a esqueceu e tampouco as marcas, que não ignoram a força da personagem (Crédito: Divulgação)

uem não matou Odete Roitman? O público, que nunca a esqueceu e tampouco as marcas, que não ignoram a força da personagem (Crédito: Divulgação)

“Nosso maior aprendizado foi ‘construir para a marca falando mal dela’. A protagonista só entrava na história para criticar, e a marca se fortalecia no digital”, explica.

Para o futuro

De acordo com os entrevistados, o futuro aponta para um modelo de monetização mais sofisticado, capaz de equilibrar a necessidade comercial com histórias que emocionem e se conectem genuinamente com o público.

O objetivo é que o merchan se torne uma extensão natural da narrativa, e não um elemento intrusivo.

Para Nassar, esse caminho passa por uma “TV 3.0”, em que o conteúdo da novela se integra de maneira orgânica a outras plataformas e experiências do público. Nesse modelo, a marca deixa de ser apenas um produto em cena e passa a fazer parte de um universo narrativo expandido.

Roberta ressalta que essa evolução depende da sensibilidade das equipes criativas, cujo grande desafio é manter a autenticidade e a integridade dramática.

“As marcas precisam se aproximar da narrativa sem interromper o fluxo emocional da história. A expectativa é que surjam mais experiências interativas, permitindo que o público participe da trama de forma indireta, como vemos em estratégias de branded content internacionais”, destaca.

Barbara complementa que o futuro exige coerência total entre storytelling e experiência de marca. “Não basta a marca estar presente: ela precisa fazer sentido em todos os pontos de contato. Se o personagem consome algo na novela, isso precisa existir também no digital, nos pontos de venda e nas campanhas off-line. O público atual não aceita desconexão; ele quer consistência e relevância cultural.”