Women to Watch

Como a IA deu voz a mulheres vítimas da violência armada

Conheça os bastidores da campanha do Instituto Sou da Paz para abordar a dor das “vítimas que ficam” e estimular a entrega voluntária de armas de fogo

i 6 de agosto de 2025 - 13h48

MarIA é uma personagem em IA para campanha do Instituto Sou da Paz (Crédito: Reprodução/Youtube)

MarIA, personagem criada por IA para campanha do Instituto Sou da Paz (Crédito: Reprodução/Youtube)

Quase 77% das vítimas de armas de fogo em 2023 eram pessoas negras, sendo mais da metade (54%) jovens de 15 a 29 anos e 94% homens, segundo pesquisa do Instituto Sou da Paz com dados do Ministério da Saúde. Além disso, 71% das mortes violentas no país foram praticadas com armas de fogo, segundo o Atlas da Violência de 2025. Conforme destaca o relatório do Ipea, quanto maior a circulação e a prevalência de armas de fogo, maior tende a ser a taxa de homicídios.

Apesar de serem a maioria das pessoas que perdem a vida para a violência armada, as mulheres são as “vítimas que ficam”. Metade das mortes por agressão feminina em 2023 foram cometidas com armas de fogo, aponta o Instituto Sou da Paz. No final, elas sofrem duplamente: ao serem vítimas da violência e ao perderem entes queridos como maridos e filhos.

A fim de dar voz às vítimas que ficam, o Instituto Sou da Paz criou uma campanha protagonizada pela MarIA, uma personagem desenvolvida pela inteligência artificial que representa as mulheres brasileiras que perderam pessoas para a violência armada. “Eu me chamo Maria, Lúcia, Helena, Tania”, a personagem se apresenta no início do vídeo. “Nós também somos vítimas e eu sou a soma de todas as dores”, continua.

A ação divulga a campanha nacional de entrega voluntária de armas de fogo, que é uma política pública permanente do Ministério da Justiça e Segurança Pública. A campanha do Instituto Sou da Paz foi criada e desenvolvida pela agência Troup Cyranos em parceria com a Alegria, e foi realizada pela produtora Love Pictures Company.

Natália Pollachi, diretora de projetos do Instituto Sou Paz, fala sobre o processo de desenvolvimento da MarIA e do uso de inteligência artificial para a criação da personagem. Além disso, ela ainda discute os impactos da violência armada para as mulheres e defende a maior participação cívica feminina no debate sobre segurança pública.

Natália Pollachi, diretora de projetos do Instituto Sou da Paz (Crédito: Divulgação)

Natália Pollachi, diretora de projetos do Instituto Sou da Paz (Crédito: Divulgação)

Meio & Mensagem – Como foi o processo de desenvolvimento da campanha com a MarIA? Como vocês chegaram nessa personagem?

Natália Pollachi – No Instituto Sou da Paz, a gente já estava querendo fazer uma campanha que voltasse a falar sobre a entrega voluntária de armas de fogo e desse mais espaço para os familiares das vítimas. Falamos muito da violência armada letal e, claro, a vítima maior é a vida que se perde. Mas também sabemos do impacto social que isso gera na família inteira, o luto, a dor, a perda de uma pessoa que muitas vezes era fonte de renda ou tinha um papel social importante naquela casa. Nosso desejo era trazer uma dimensão mais humana para os dados, para as famílias que ficam e que, muitas vezes, seguem lutando por justiça. Estávamos nessa busca quando fomos procurados pelas agências Alegria e Troup Cyranos, que apresentaram uma proposta de criar uma personagem com uso de inteligência artificial.

Foi uma construção muito conjunta, buscando um uso ético, transparente e declarado da tecnologia. A ideia era que essa personagem transmitisse emoção no olhar, nas pausas, em algo bem humanizado e bonito. A representação visual também foi pensada para refletir a média das famílias vitimadas. A gente sabe que, no país, as maiores vítimas são pessoas negras e jovens, então imaginamos essa mãe de um jovem que perdeu a vida por violência armada. Sobre a escolha de usar uma personagem criada por IA, a proposta inicial veio da agência, em parceria com a gente. Quisemos experimentar um uso produtivo, ético e responsável dessa tecnologia. E, nesse caso, a IA também trouxe uma camada de proteção. Pensamos várias vezes em fazer com familiares reais, mas é muito delicado, envolve reviver o luto, falar de novo sobre a perda.

M&M – A campanha também busca posicionar a vítima no centro das discussões sobre segurança pública. Falar sobre as famílias que ficam ainda é um desafio?

Natália – Olha, muitas vezes, nesse debate sobre segurança pública, vemos uma despersonalização da discussão. Quando falamos sobre controle de armas, e essa campanha trata muito da entrega voluntária, não estamos nem discutindo quem pode ou não comprar. A mensagem é: se você quer entregar voluntariamente, existe um canal seguro para isso. Mas, frequentemente, quando o assunto é controle de armas, o debate se desloca completamente para o objeto em si. A discussão vira sobre a arma: se é pistola ou revólver, o calibre, quantas armas a pessoa pode ter, o que é viável ou não. E aí, muitas vezes, o debate entra num campo ideologizado, com viés político de um lado ou de outro. A gente tenta sempre se afastar dessa polarização e reforçar que não é sobre a arma em si. A discussão é sobre o direito à vida, sobre proteger as pessoas mais vulneráveis.

Queremos trazer esse aspecto humano de volta: não é sobre ideologia, não é sobre o objeto, é sobre gente. As armas existem, então como controlamos de forma responsável essa circulação? Especialmente nesse caso, que é sobre entrega voluntária. É isso que a gente quer dizer com humanizar o debate: tirar a arma e a ideologia do centro. Porque, muitas vezes, ouvimos que não se pode restringir e que, se alguém descumprir a lei, a gente pune depois. Mas, quando falamos de arma de fogo, não tem depois. Se alguém usou mal, pode ter matado uma pessoa. E isso não tem volta. Não tem punição que repare essa perda, não tem justiça que cure essa dor. Por isso a prevenção é essencial.

M&M – Qual o impacto emocional e social da invisibilização dessas mulheres que perderam seus filhos, irmãos e maridos para a violência armada?

Natália – Os impactos são muitos e extensos. O primeiro é, claro, a perda, a dor, esse luto imenso. A gente fala muito das mães e das mulheres porque, no Brasil, 94% das vítimas são homens, então, normalmente, quem fica é a mulher. É o que chamamos de “a vítima que fica”, um dos motes da campanha. Mas, obviamente, as mulheres também são muito vitimadas. Metade das mortes por agressão contra mulheres é cometida com arma de fogo. No geral, porém, são elas que permanecem. E aí tem esse primeiro impacto, que é o luto, geralmente por alguém muito próximo e muito jovem. A perda de um filho, por exemplo. Claro que toda perda é dolorosa, mas a do filho é diferente.

Tem também um impacto psicológico muito forte nessa busca por justiça. A gente vê muitos relatos de mulheres que adoecem, tanto pelo luto não processado quanto pela falta de apoio do Estado. Não existe assistência psicológica ou social adequada. Essas mulheres deveriam ter acesso à terapia, por exemplo, mas não têm. Fica esse luto não elaborado, muitas vezes acompanhado de uma busca exaustiva por justiça. Muitos homicídios não são esclarecidos, ou a vítima acaba sendo culpabilizada. Dizem que reagiu ou que tinha antecedente criminal. Essa luta por justiça é muito desgastante, e também tem a batalha pela memória da pessoa, para que ela não seja apagada ou desrespeitada por essas narrativas.

Além disso, tem a questão prática, econômica. Muitas vezes, essas mulheres viram a única fonte de renda da família, cuidando sozinhas dos filhos, dos pais idosos ou até dos netos. Elas se desdobram. Trabalham, cuidam da casa, dos filhos, e não têm nenhum tempo para si, para processar o luto. Há muitos casos de adoecimento físico, com pessoas que começam a tomar remédio para pressão alta, para dormir, e, infelizmente, são muitos também os casos de morte precoce. Então existe um desgaste físico, emocional e econômico muito grande.

M&M – Você acredita que trazer esse olhar feminino, especialmente das mães em luto, pode influenciar uma visão mais sensível para essa agenda da segurança pública?

Natália – Acho que é uma personagem com a qual todo mundo consegue se conectar, seja pela própria mãe ou por alguma figura materna na vida. Acreditamos muito nesse lugar emocional de conseguir tocar as pessoas independentemente de discussões técnicas ou ideológicas. A dor de perder alguém vai além disso. É sobre pessoas e relações humanas. Trazer a figura da mãe teve essa intenção. Também tem outra questão muito relevante: no Brasil, as mulheres são muito refratárias ao acesso às armas de fogo. Mesmo sendo quem mais vivencia os impactos da violência armada, muitas vezes elas não se engajam nesses temas. Às vezes porque a pauta da segurança pública é vista como algo mais masculino, ou porque o próprio campo hostiliza a presença feminina.

Queremos também fazer esse movimento de aproximação das mulheres com as pautas de segurança pública, porque elas são protagonistas importantes e precisam ter suas vozes ouvidas nesse debate. A política pública no Brasil ainda é muito masculina, e a segurança pública, em particular, é um exemplo gritante disso. A quantidade de reuniões que o Sou da Paz participa e que são compostas apenas por homens é impressionante. Ainda há uma participação mínima de mulheres na formulação e na tomada de decisão nesse campo, e isso precisa começar pelo engajamento cívico também.

M&M – Como o setor privado pode apoiar causas como essa e que tipo de alianças vocês buscam fora do terceiro setor?

Natália – Buscamos parcerias intersetoriais. Por exemplo, sobre o tema da proteção às mulheres, temos falado bastante sobre o risco de feminicídio, que aumenta muito com a presença de uma arma em casa, independentemente do portador. Então, temos trabalhado esse viés da proteção das mulheres, e também das crianças. O risco de acidentes com crianças e adolescentes é enorme. Vimos vários casos graves, como os ataques em escolas, em que adolescentes acessaram armas do pai, da mãe e do tio dentro de casa.

Tem também o viés da saúde pública, com disparos que deixam sequelas permanentes ou exigem fisioterapia. E no setor privado, nossa abordagem costuma ser pela responsabilidade social. Algumas empresas se engajam com esses temas. No caso da campanha de entrega voluntária, é um campo especialmente propício, porque não envolve discussão sobre regulação ou política. Só de divulgar que existe um canal seguro para entrega voluntária já pode salvar muitas vidas. Esse canal tirou mais de um milhão de armas de circulação, e temos certeza de que muitas vidas foram salvas.

M&M – Nesta campanha, a IA foi usada para amplificar vozes. Quais aprendizados vocês tiraram ao desenvolver essa campanha?

Natália – Acho que foi um aprendizado muito bacana pensar, junto com a agência, de forma criativa, qual poderia ser um uso responsável dessa tecnologia, sem ferir nenhum princípio que a gente considerava essencial, principalmente o respeito à dor, por ser algo muito pessoal para as famílias. Teve também um aprendizado técnico importante. Foram muitas horas de trabalho na programação para conseguir, por exemplo, um olhar humanizado, pausas naturais, o movimento da boca, e a gente também aprendeu sobre as possibilidades dessa ferramenta. Temos visto uma recepção bem positiva, inclusive pelo fato de termos sido transparentes desde o início. A gente não queria, de forma alguma, criar uma representação que parecesse real sem ser, de maneira escamoteada. Claro que isso não substitui, em hipótese nenhuma, a necessidade de ouvir as vítimas reais e as famílias das vítimas. Isso é algo que a gente continua fazendo e dando espaço em outros projetos.

M&M – Como é possível equilibrar o uso dessas tecnologias com a sensibilidade de tratar temas delicados como a violência e o luto?

Natália – Acho que é possível, sim, desde que com os cuidados que tentamos resguardar, como trazer uma representação física coerente com o perfil de quem é mais vitimado. As falas também não foram inventadas: são semelhantes a depoimentos reais que a gente já ouviu em outros espaços. Tentamos trazer essa sensibilidade. A MarIA é uma personagem que mistura força e emoção. Ela não está num lugar de inação, é firme, tem uma fala forte, mas também muito emocionada. E acho importante trazer essa emoção e essa humanização para o debate público. Muitas vezes dizem que emoção não pertence a esse espaço e não é verdade. Claro que ela não pode ser o único elemento, mas faz parte. Estamos falando de pessoas reais, de perdas reais. Foi isso que a gente tentou resguardar: ter cuidado ao utilizar e garantir que fosse um uso bem declarado.