Dois anos da Lei de Igualdade Salarial: o que mudou?
Apesar de não diminuir a diferença entre os salários de homens e mulheres, houve avanços na forma com que o tema é tratado pelas empresas
Em 2022, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou que, em média, as mulheres ganham 20% a menos que os homens globalmente. No Brasil, esta diferença é de 20,9%, de acordo com o terceiro relatório de transparência salarial, de 2024.
Em média, os homens ganham R$ 4.745,53, enquanto as mulheres recebem R$ 3.755,01. Esta diferença é ainda mais acentuada quando adicionamos a lente de raça. O salário médio das mulheres negras é de R$ 2.864,39, número ainda mais distante dos homens negros, cuja média é de R$ 3.647,97. A diferença entre mulheres negras e homens não negros chega a 47,5%.
Frente a este cenário, em 2023 foi instaurada a Lei de Transparência Salarial, nº 14.611, que exige a publicação de relatórios de transparência e instaura mecanismos de fiscalização contra a desigualdade salarial, visto que a exigência de igualdade salarial já era prevista pela CLT.
A nova legislação determina que empresas com mais de 100 empregados adotem medidas para assegurar essa igualdade, implementando ações como a divulgação dos relatórios de transparência salarial, fiscalização contra a discriminação, canais para denúncias, programas de diversidade e inclusão e capacitação profissional para mulheres.
Contexto atual
No cenário nacional, vemos ainda um panorama marcado pela menor participação feminina na força de trabalho e desigualdades de oportunidades e salários. “Sabemos que, tradicionalmente, principalmente nas empresas de maior porte, há mais homens do que mulheres trabalhando. Dos 19 milhões de trabalhadores, cerca de 12 milhões são homens e 7 milhões mulheres”, informa Paula Montagner, subsecretária de estatísticas e estudos do trabalho do Ministérios do Trabalho e Emprego (MTE).
A presença feminina também ainda não está bem distribuída em todos os setores. Conforme relata a subsecretária, existe uma maior concentração de mulheres nos setores de serviços e comércio, mas um déficit de participação nas indústrias, construção civil e na atividade rural, onde há predominância masculina.
Além disso, a pandemia da Covid-19 deixou marcas que afetaram a inclusão profissional das mulheres e a oportunidade de galgar cargos e bonificações salariais. “As primeiras pessoas que voltaram para casa foram elas, e também foram as últimas a retornarem ao mercado de trabalho. Quando isso acontece, as mulheres acabam aproveitando menos suas experiências anteriores, o que faz com que o salário de entrada seja, muitas vezes, menor do que aquele que tinham antes da demissão. E, com o tempo, isso torna a negociação salarial mais difícil”, pontua Paula.
Nestes últimos dois anos, entretanto, os relatórios de transparência não identificaram mudanças numéricas significativas. “Criamos um indicador de salário mediano de entrada, para garantir que as mulheres recebam valores pelo menos similares aos dos homens. Hoje, observamos que a diferença se mantém relativamente estável, com as mulheres ganhando cerca de 10% a menos nos salários de entrada. Também temos visto mais contratações femininas e uma certa estabilidade na remuneração média”, avalia Montagner.
Avanços qualitativos
Mesmo com pouco avanço numérico após os dois anos da lei, as especialistas enxergam algumas mudanças positivas. “O que temos ouvido das áreas de recursos humanos é que hoje há uma percepção maior de que garantir a igualdade salarial entre homens e mulheres é uma política de Estado. Esse tema passou a ser tratado no nível da alta direção das empresas, com o entendimento de que veio para ficar”, afirma a subsecretária do MTE.
De forma complementar, Anete Brasil, advogada coordenadora da área trabalhista do Barreto Veiga Advogados, entende que a lei trouxe maior visibilidade para o tema. “As empresas passaram a rever algumas políticas internas, como a criação de planos de carreira, para que os empregados tenham um parâmetro mais claro de onde estão e para onde podem seguir”, pontua.

Anete Brasil, advogada coordenadora da área trabalhista do Barreto Veiga Advogados (Crédito: Divulgação)
Outro ponto destacado pela advogada é o aumento da fiscalização interna e a tomada de uma atitude preventiva por parte das companhias. “Também vejo um movimento de regulamentação interna mais forte, com a implementação de auditorias para fiscalizar essas questões antes mesmo de uma eventual atuação do MTE”, diz.
Além disso, a lei contribuiu para a evolução da transparência e governança das organizações. “Quando você dá visibilidade a um tema, inevitavelmente acaba corrigindo pequenas distorções. Isso faz toda a diferença quando falamos em cultura de transparência interna e em reputação de marca, porque hoje as empresas são impactadas por qualquer ação externa que coloque em questão suas estruturas reputacionais”, destaca Daniela Garcia, CEO do Capitalismo Consciente no Brasil.
A legislação também promoveu a criação do Plano Nacional de Igualdade Salarial, que foi instituído em abril deste ano, e mostra todas as políticas necessárias para dar suporte às mulheres no âmbito profissional. São 79 ações divididas em três eixos: acesso e ampliação da participação das mulheres no mundo do trabalho (36 ações); permanência das mulheres nas atividades laborais (19 ações); e ascensão e valorização das mulheres no mundo do trabalho (24 ações).
Algumas dessas ações incluem a capacitação de mulheres para a liderança, incentivo para programas com foco em diversidade e inclusão, apoio ao empreendedorismo feminino, aumento das vagas em creches e escolas em período integral, ampliação da adesão de empresas no programa Empresa Cidadã, ações de enfrentamento ao assédio sexual e moral, entre outras.
Desafios e barreiras
Apesar dos avanços, ainda existem alguns obstáculos na aplicação desta lei. Por parte das empresas, a falta de padronização e diretrizes para a formatação dos relatórios é o principal desafio.
“Como não há padronização, cada uma acaba fazendo o relatório do seu jeito, e isso torna a fiscalização muito superficial. O auditor olha os números e conclui: aqui alguém recebe menos. Mas ele tem apenas uma visão numérica, sem espaço para a empresa justificar o contexto. Essa justificativa acaba acontecendo só numa eventual atuação, quando o auditor analisa o caso mais a fundo”, aponta Anete Brasil.
Outro ponto sensível é com relação à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), que estabelece normas para a proteção e tratamento de dados pessoais. Isso porque ela determina que as organizações divulguem para o público geral esse mesmo relatório.
“A divulgação desses dados pode expor os empregados, especialmente em empresas menores. Se há, por exemplo, duas ou três pessoas em posição de liderança e apenas uma mulher, é fácil identificar quem está recebendo menos. Então, embora o relatório tenha o propósito de garantir transparência, ele pode acabar expondo os profissionais”, destaca a advogada.
Entretanto, o MTE rebate que não há divulgação de dados individuais. “Nós já divulgamos três relatórios, e ficou muito claro que não publicamos informações individuais de nenhum estabelecimento. A legislação determina que o trabalho seja feito com base nos estabelecimentos, e não nas empresas”, afirma a subsecretária.
Sobre a diferença entre estabelecimentos e empresas, Paula explica: “Cada empresa tem um CNPJ. Se a empresa tem filiais, cada filial tem um CNPJ com os primeiros 8 números iguais à matriz e os demais correspondentes a cada estabelecimento”.
Além disso, a lei prevê que a publicação desses relatórios respeite a LGPD, considerando a divulgação em casos em que há pelo menos 3 mulheres e 3 homens em posições de liderança, o que afasta a possibilidade de identificação.
“Como as empresas se manifestaram contra a publicação de dados monetários, publicamos a razão entre o salário de mulheres e homens. Neste sentido, o relatório apresenta indícios da existência de diferenças”, continua Montagner.
Nesses últimos dois anos, também surgiram movimentos refratários à lei. Duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) foram movidas por confederações empresariais e serão julgadas pelo STF, uma pela Confederação Nacional do Comércio e outra pela Confederação Nacional da Indústria.
As ações pedem uma medida cautelar para suspender os efeitos de alguns dos dispositivos da lei. Um dos pontos questionados é a divulgação dos relatórios de transparência salarial que violariam a proteção de dados individualizados, e, por consequência, a imposição das multas também é colocada em xeque.
Metas, prazos e próximos passos
Outra diretriz da lei ainda pouco falada é a criação de planos de ação para mitigar as desigualdades, incluindo metas e prazos. Para a subsecretária do MTE, os próximos passos são a criação destes planos de ação que ainda não estão bem estruturados pelas empresas que apontaram desigualdades salariais.
“Muitas empresas têm dificuldade de pensar em como fazer isso, porque entendem que sua estrutura atual funciona bem e garante os lucros necessários”, pontua Paula.
A lei prevê algumas exceções em que a diferença salarial pode ser explicada por tempo de casa ou capacidade técnica. “Agora, o próximo grande desafio é reconhecer com mais clareza o que significa igualdade de conhecimento e de capacidade de desenvolvimento no trabalho. Muitas vezes, a progressão salarial está atrelada apenas ao tempo de casa, mas é preciso avaliar também a capacidade e o desempenho”, reflete Montagner.
Como pontua a subsecretária, por vezes estes critérios acabam desfavorecendo as mulheres. Ela destaca o impacto da Covid-19, em que muitas tiveram que recomeçar em novas empresas, com salários de entrada menores e, consequentemente, reiniciando a contabilização de tempo de casa.
A questão da maternidade também intensifica esta questão, visto que muitas mulheres são demitidas ou saem do mercado de trabalho no período. Além de outros pontos que prejudicam as mulheres durante as avaliações de desempenho, como a questão do “teto de vidro” que dificulta a ascensão de mulheres à cargos elevados.
Para Daniela Garcia, é preciso haver uma mudança cultural do olhar sobre a mulher no trabalho de forma geral. “Precisamos olhar para esse contexto e entender onde estamos atuando de fato, para que cada uma dessas frentes seja corrigida e, juntas, gerem uma mudança real. Temos desafios sociais que envolvem governo e educação. Nas grandes empresas, há espaço para treinar colaboradores e enfraquecer o teto de vidro; e, de modo geral, é preciso repensar a forma como a mulher é vista dentro das organizações”, afirma a CEO.

Daniela Garcia, CEO do Capitalismo Consciente (Crédito: Divulgação)
Para haver tal mudança, a especialista reforça a importância do compromisso das empresas com a agenda de diversidade e inclusão. “Acho que o futuro passa por todas essas dimensões: a governança das empresas, a criação de ações voltadas ao universo feminino, a cultura organizacional que reafirma a importância das mulheres no espaço executivo, e a promoção de comportamentos e espaços de troca mais igualitários”, defende Daniela.
Engajamento das lideranças
Para muitos especialistas, o compromisso das empresas depende fundamentalmente do envolvimento das lideranças. “Quando falamos de mudança cultural dentro das empresas, é importante lembrar que tudo depende de liderança e de um exercício contínuo de entender o que é prioridade. A lei obriga a exposição dos dados e dá relevância à transparência, mas não traz o desejo de mudar”, destaca Garcia.
A executiva ainda ressalta a importância de dar exemplos positivos de empresas que estão colocando em prática essa mudança, mostrando os caminhos possíveis para mitigar as desigualdades entre os gêneros. “Quando a iniciativa privada se posiciona e demonstra o que está fazendo, ela multiplica esse impacto, servindo de exemplo para outras que querem fazer mais e melhor”, complementa.
A igualdade salarial não é importante apenas pelo aspecto social, mas existem também vantagens econômicas. “Há números que indicam que, se os salários fossem iguais entre homens e mulheres, poderíamos injetar quase R$ 90 bilhões na economia. Ou seja, a desigualdade salarial afeta não só a renda individual, mas toda a dinâmica econômica: tem impacto no consumo, na economia como um todo e também na performance dos negócios, porque as mulheres têm muito a entregar”, finaliza Daniela Garcia.