O lado obscuro dos influenciadores digitais fitness
Com impacto na saúde física e mental de seguidores, criadores propagam informações falsas e vidas irreais em busca de audiência e lucro
Antes de existir o universo dos influenciadores digitais fitness, as “musas fitness” eram reconhecidas neste lugar de influenciar e inspirar comportamento e padrões de beleza. Se antes o discurso dessas figuras era muito focado na cultura da academia e do treino, hoje, o cenário se expandiu.
“Nossa percepção sobre saúde mudou muito nos últimos anos, ainda que em um período curto, e isso também responde a essa busca por bem-estar, associada à longevidade e à qualidade de vida”, reflete Issaaf Karhawi, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, pesquisadora sobre comunicação digital e autora do livro “De blogueira a influenciadora”.
“Isso muda não só a dinâmica desses influenciadores, mas também como eles são percebidos: agora são entendidos como influenciadores de vida, de lifestyle, de forma ampla, mas sempre organizando seu conteúdo a partir dessa cultura wellness”, continua. Hoje, a figura do influenciador digital é entendida como um formador de opinião, detentor de um certo conhecimento capaz de traduzir um assunto de forma democrática para diferentes públicos.
Na avaliação da pesquisadora, os influenciadores fitness constroem dois tipos de relação com seus seguidores: a identificação e a projeção. “Seguimos influenciadores porque nos vemos neles, notamos afinidades e traços semelhantes”, responde Issaaf sobre o conceito da identificação.
Já na projeção, segundo ela, olhamos para o influenciador e almejamos aquela vida, aquele corpo, aquele estilo de vida, muitas vezes idealizados e distantes da realidade da maioria.
Orientação em tempos incertos
Conforme relata a pesquisadora, com a perda da força de instituições tradicionais, como a religião, família e carreira, o indivíduo contemporâneo se vê desorientado. “Nesse contexto, o influenciador assume um papel de guia: indica caminhos, substitui, em alguma medida, instituições tradicionais, e muitas vezes até o discurso científico é substituído pelo relato em primeira pessoa do que ele viveu”, reflete Karhawi.
Dentro desta lógica, o seguidor entende que para alcançar aquela vida ou corpo que almeja, ele precisa seguir os passos do influenciador digital. Entretanto, o que muitos acabam consumindo são rotinas irreais e corpos conquistados por meio de procedimentos estéticos ou uso de anabolizantes sendo vendidos com um discurso meritocrático que premeia o esforço individual como meio para alcançar o sucesso.
“E aí, a pessoa pensa: que sacrifícios sociais, financeiros, pessoais eu vou precisar fazer para atingir esse padrão? Tudo isso se encaixa nessa lógica neoliberal do indivíduo empreendedor de si mesmo. Ele vence, tem desafios, metas nos aplicativos, objetivos criados pelos próprios influenciadores, e o mérito está sempre nessa superação contínua”, afirma Hamilton Roschel, nutricionista, fisiologista, diretor científico e executivo do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP.
Mariana Kruger, formada em biologia, além de DJ e influenciadora digital, ainda enxerga um foco excessivo sobre os resultados estéticos e performáticos nos conteúdos de criadores fitness. No Instagram(@marikrugerb), ela tem 2,6 milhões de seguidores e ficou conhecida por combater a desinformação em saúde nas redes sociais com humor e ciência.
“As decisões partem sempre dessa lógica: ‘isso vai melhorar minha aparência?’, ‘vou emagrecer?’, ‘perder celulite?’, ‘eliminar gordura localizada?’. Falamos pouco sobre os benefícios reais para a saúde e longevidade, e muito mais sobre a foto, o corpo de verão, o biquíni”, reflete.

Mari Kruger, influenciadora digital (Crédito: Divulgação)
“A influência digital tenta te convencer de que aquele corpo foi conquistado com um suplemento só para te fazer comprá-lo. Mas, por trás das câmeras, há toda uma equipe de profissionais, nutricionista, personal trainer, e, em muitos casos, cirurgias plásticas, procedimentos estéticos ou até o uso de esteroides anabolizantes, que nunca aparecem na comunicação. A pessoa compra o produto acreditando que vai alcançar o mesmo resultado, quando, na verdade, ele é inalcançável”, continua a bióloga.
Não há um compromisso real com os resultados científicos ou com a regulamentação destes produtos, avalia Issaaf. “Muitas vezes, o foco é vender o produto ou se associar a marcas, afinal, esse é o modelo de negócio dos influenciadores digitais”, afirma a pesquisadora. “Tudo é embutido na lógica de que o indivíduo precisa se superar. Para isso, precisa usar o chip, os hormônios, a reposição, seguir protocolos específicos. Mas, na realidade, é um discurso que vende segurança onde não há”, adiciona Hamilton.
O professor da USP, que conduz uma pesquisa sobre o uso de esteroides anabolizantes, relata: “É muito cruel como se vende a falácia da segurança, porque quem está prescrevendo é um médico. Hoje, por exemplo, terapias hormonais totalmente ilegítimas do ponto de vista clínico foram naturalizadas. Esses chamados ‘chips da beleza’ são um cover-up para a prescrição inadequada de anabolizantes, sem qualquer respaldo clínico”, reforça.
Impactos negativos
Para Mariana, existe um impacto direto do conteúdo propagado por influenciadores digitais sobre os hábitos de comportamento, consumo e objetivos que o seguidor almeja. Além dos perigos reais à saúde que os anabolizantes podem causar, por exemplo, existe ainda consequências psicológicas, conforme ressalta Hamilton. “Essa lógica perniciosa culpabiliza o indivíduo, gera transtornos psíquicos e deixa todo mundo desanimado, porque o que foi erroneamente chamado de ‘estilo de vida’ é muitas vezes uma ficção de Instagram”, aponta o professor.
Issaaf cita o livro “Happycracia: Fabricando cidadãos felizes”, de Eva Illouz, para refletir sobre o tema. “O livro aborda a noção de felicidade meritocrática, ou seja, a tendência de ver situações particulares como resultado do merecimento pessoal, e não de processos estruturais”, explica.
A felicidade, segundo os autores, está conectada com a força de vontade e o esforço individual, sendo transformada em algo que pode ser fabricado, ensinado ou aprendido. “Eles criticam essa construção, mostrando que ela ignora questões estruturais e cria a ilusão de que é possível se livrar do sofrimento apenas pelo esforço individual”, continua Karhawi.
“No livro, os autores também falam de commodities de emoção, serviços, terapias e mercadorias produzidas para consumo com a promessa de gerar felicidade. Na minha leitura, o universo wellness se relaciona muito com isso. Não é só sobre ter um corpo saudável, mas sobre adotar um estilo de vida que parece ultra-responsabilizar o indivíduo, criando uma pressão por hiperaperfeiçoamento e autorresponsabilização”, afirma a pesquisadora.
O resultado dessa culpabilização é a frustração e o sentimento de insuficiência. Ao desconsiderar questões estruturais, o indivíduo é isolado e responsabilizado por sua própria insatisfação. “Se ele não conquista o que dizem ser possível, conclui-se que o problema está em mim. Aí a solução parece ser consumir cada vez mais produtos, mais redes sociais e mais suplementos”, continua Issaaf.

Issaaf Karhawi, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, pesquisadora sobre comunicação digital e autora do livro “De blogueira a influenciadora” (Crédito: Divulgação)
O resultado, muitas vezes, são indivíduos frustrados por não conseguirem alcançar os objetivos e rotinas impossíveis, ou, ainda, pessoas que perderam dinheiro ao investir em produtos que não geraram os resultados esperados. “A internet e os influenciadores que vendem esses produtos acabam criando problemas para que a gente queira comprar a solução. Ninguém tinha uma queixa de saúde, mas aparece um vídeo dizendo: ‘você anda cansado, ansioso, sem energia? Está faltando magnésio na sua vida’. E não é isso que está faltando. O que está faltando é rever a carga de trabalho, cuidar da saúde mental, fazer terapia”, rebate Mariana.
Este impacto é ainda mais cruel sobre as mulheres. “Infelizmente, nós estamos sempre inseguras com o nosso corpo. Fomos ensinadas a detestar nossa aparência, a performar feminilidade e a buscar um corpo dentro do padrão”, aponta Kruger.
Hamilton destaca ainda como este mercado acaba propagando prescrições desnecessárias e inadequadas para as mulheres, principalmente no que tange o uso de esteroides anabolizantes. “Nelas, a loucura é ainda maior. Parece que mulher ‘tem que ter’ testosterona, quando não é verdade. Cria-se a ideia de que a reposição hormonal é uma panaceia que resolveria tudo. Os efeitos colaterais são inúmeros e complexos, variando do estético, como acne, pêlos, alteração de voz, hipertrofia clitoriana, atrofia testicular e calvície, até problemas de saúde graves, como complicações cardíacas”, diz.
Desinformação
O resultado é um meio comunicacional infestado de desinformação sobre um tema indispensável: saúde. “O que a gente vê hoje são influenciadores indicando suplementos e treinos específicos sem ter formação para isso, e fazendo alegações que nem poderiam ser atribuídas àqueles produtos”, afirma Kruger.
Uma reportagem da Deutsche Welle checou a veracidade de posts publicados nas redes sociais e cita o exemplo de um vídeo, com mais de 1,7 milhão visualizações, em que uma influenciadora afirma que quatro suplementos específicos tornariam a pessoa mais inteligente. A informação foi desmentida pelo veículo.
Para explicar este fenômeno, Issaaf explica o conceito de paradigma do expert. Na sua avaliação, o expert é aquele que tem um “conjunto de saberes, competências e expertise imprescindíveis para certas atuações profissionais”. “Todo mundo, de certa forma, passa por esse paradigma do expert. Os influenciadores não. As redes sociais libertaram as pessoas do paradigma do expert, mas, ao mesmo tempo, geram efeitos colaterais significativos, especialmente quando se trata de saúde e bem-estar”, reflete.
Com um discurso em primeira pessoa, ao ressaltar os benefícios que ele desfrutou, o influenciador encontra brechas na regulamentação para propagar resultados impossíveis. “Ele chega carregado de certezas: ‘Pode usar, faça assim, eu fiz assim, meus pacientes fazem assado’. O cientista, por outro lado, sabe que tudo depende, porque a ciência tem limites que precisam ser respeitados. Já quem abdica do pensamento científico se apoia na experiência pessoal e faz absolutizações”, complementa Hamilton.
“Por isso, vemos também muitos influenciadores envolvidos em discursos anti-científicos ou desinformativos”, pontua Issaaf. Um destes casos é de Mayra Cardi. Frente ao popular programa de emagrecimento criado pela influenciadora, o Mayra Cardi Seca Você, o Conselho Regional de Nutricionistas de São Paulo e Mato Grosso do Sul emitiu uma nota reforçando que ela não é nutricionista e entrou com representação criminal perante o Ministério Público do Estado de São Paulo por atuação profissional sem autorização. Em 2019, ela foi denunciada pelo Ministério Público de exercício ilegal da profissão.
Uma reportagem do jornal Extra detalhou como funcionava o programa de emagrecimento da empresária e trouxe depoimentos de clientes insatisfeitos, incluindo denúncias de comportamento inadequado de Cardi. As entrevistadas alegam consequências como queda de cabelo, impactos durante a amamentação e até lesões físicas por conta dos treinos indicados. A reportagem destacava que o programa custava R$ 1500 por oito semanas de tratamento.
Outra que também enfrentou uma queixa foi Gabriela Pugliesi, acusada ao Ministério Público do Rio de Janeiro pelo exercício ilegal da profissão de educador físico. O exercício ilegal da profissão é considerado uma contravenção penal, de acordo com a lei 3.688 de 9141 (Lei das Contravanções Penais) e prevê pena de prisão simples, de 15 dias a três meses ou multa.
Responsabilidade do influenciador
Para Issaaf Karhawi, os influenciadores digitais precisam se enxergar como comunicadores e, portanto, saber as implicações éticas da atuação. “Assumir esse papel significa entender que, ao falar para grandes ou pequenas audiências, é preciso considerar aspectos éticos e ter responsabilidade sobre o conteúdo. Isso envolve, por exemplo, verificação de informações, uma prática cotidiana do jornalismo, e transparência com os seguidores em relações comerciais, algo comum no mercado publicitário”, pontua.
A relevância de cada influenciador é ditada por um pacto que estabelece com seus seguidores. “O processo também importa para a audiência, ou seja, como eles compartilham esse processo e como o público percebe esse processo como autêntico, mesmo sem necessariamente ser”, responde Issaaf. Quando o influenciador promove produtos ineficazes, quando propaga informações falsas e não é transparente, ele coloca em xeque esta relação com o seguidor, e por consequência, sua própria credibilidade.
No caso da recomendação de uso de anabolizantes, Hamilton é enfático ao lembrar o juramento dos profissionais da saúde de não fazer mal. “Incompetência, mau entendimento da função profissional ou má intenção deliberada. É difícil determinar qual delas é potencialmente mais danosa ao indivíduo, seja do ponto de vista psíquico ou fisiológico imediato. Quando o sujeito diz ‘pode usar bomba que está tudo bem, eu usei, olha como estou belo e forte’ ou ‘é assim que faço com meus clientes, e todos eles estão muito bem’, isso já é um sinal de risco”, aponta o pesquisador.
Já para o uso de suplementos, existem regulamentação e fiscalização da Anvisa sobre a fabricação e comercialização. Em agosto deste ano, a agência alertou sobre a baixa qualidade dos produtos ofertados no mercado nacional. Segundo a Agência Câmara de Notícias, representantes da Anvisa afirmaram que o setor de suplementos lidera o ranking de denúncias por infrações sanitárias e tem alto número de produtos reprovados. Mais da metade das denúncias está relacionada à propaganda enganosa de suplementos vendidos em plataformas digitais.
“A questão é: como responsabilizar legalmente um influencer que não tem relação com nenhuma profissão da saúde? Ele vai dizer: ‘Não estou prescrevendo nada, estou só mostrando minha rotina’. Então, como você regula isso?”, questiona Hamilton. “A gente não regula discurso de ódio na internet, e menos ainda algo como o que acontece nesse universo fitness, onde o lucro é muito mais presente, com patrocinadores, anunciantes e tudo mais”, continua.
“Vejo também uma responsabilidade das plataformas, porque não deveria ser tão fácil colocar um suplemento à venda na rede social e fazer alegações sem comprovação científica. Não dá para contar só com o bom senso dos seguidores, até porque quem propaga essa desinformação é muito bom no que faz. São influenciadores, pessoas com poder de persuasão, boa comunicação e um corpo que serve como vitrine para o produto que vendem”, complementa Mari Kruger.
“Por isso, não dá para culpar apenas quem consome e acredita nessas informações. É preciso uma fiscalização mais eficiente e que as próprias plataformas reconheçam o que está acontecendo”, finaliza.