Women to Watch

Quais são as lições da periferia para a liderança?

Executivas compartilham como suas origens moldaram competências, visão de mundo e estilo de gestão

i 31 de julho de 2025 - 9h12

Andreia Roma cresceu na periferia de São Paulo, enfrentando dificuldades financeiras, mas encontrou nos livros e nos valores familiares, como resiliência, empatia e respeito, a base para sua trajetória. Desde criança, criava seus próprios livros com recortes e cola caseira.

Sua carreira começou cedo, com trabalhos como animadora de idosos, vendedora de pastel e recepcionista. A paixão pelos livros a levou ao mundo editorial, primeiro como vendedora, depois fundando a sua própria editora, a Leader. Hoje, como CEO, ela carrega consigo as lições que aprendeu do convívio comunitário da periferia e de sua família, transformando desafios em legados de sucesso e impacto social.

Assim como Andreia, a trajetória de outras pessoas que vieram da periferia tem semelhanças. Débora Fernanda, head de RH, diversidade e inclusão da Gut, também começou a jornada profissional ainda na adolescência, cuidando de crianças, Depois, trabalhou como arrematadora numa oficina de costura e recepcionista de um consultório odontológico.

Já Thais Borges, hoje diretora comercial e de marketing na Systak, nascida na periferia da zona norte de São Paulo, vem de uma família de empreendedores. A tia era boleira, outra, salgadeira, mas foi na sorveteria dos pais que ela começou a trabalhar.

Luana Ozemela, vice-presidente de impacto e sustentabilidade do iFood, nasceu na periferia de Porto Alegre e teve sua trajetória marcada pela influência dos pais que estavam muito envolvidos nas causas sociais e raciais. Sua mãe, apesar de ter engravidado ainda no colégio, era firme e acreditava na importância dos estudos para o futuro de seus filhos.

“Mesmo tendo nascido e crescido numa periferia, meus pais tinham ensino superior, e para mim isso pesou muito mais do que ter vindo de lá. Eles foram a base da minha trajetória de sucesso, com a bagagem, consciência e inspiração que me deram. A periferia é um divisor de comportamentos, mas eu atribuo muito valor à influência dos meus pais”, conta.

Assim que Luana se formou em economia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, percebeu que era uma das únicas mulheres negras nos ambientes que frequentava, e isso a levou a entender que precisava estar mais bem preparada para sentar à mesa e defender seu ponto de vista com argumentos técnicos bem embasados.

Luana Ozemela, vice presidente de impacto e sustentabilidade do iFood (Crédito: TBS Estúdio)

Luana Ozemela, vice-presidente de impacto e sustentabilidade do iFood (Crédito: TBS Estúdio)

Para Thais, a chave de seu sucesso foi alimentada pelo inconformismo. “Se alguém dizia que eu não podia, eu ia lá e fazia. Como menina preta e periférica, ouvi muitas vezes que eu não conseguiria. Mas toda vez que a vida tentou me marcar com um ‘não’”, fui buscar um ‘sim’ muito maior”, afirma. Foi pelo inconformismo, e pela psicanálise, que Thais conseguiu superar o sentimento de inferioridade e ir atrás de uma oportunidade.

Débora Fernanda conta uma história parecida. Para ela, o que a trouxe ao sucesso profissional foi nunca se diminuir. “Nunca me olhei com os mesmos vieses que os outros usavam pra me enxergar. Acho que tive a sorte de crescer, mesmo na periferia, cercada por pessoas com muita autoestima intelectual, de beleza, de postura. Isso me ajudou demais”, aponta.

Racismo, vieses inconscientes e autoestima

A vivência da periferia traz muitas lições e habilidades para essas profissionais, mas ela não é isenta de desafios. Um deles são os vieses que impõem suposições errôneas sobre pessoas periféricas. Um viés sutil é o pedido de um café ou de um favor simples.

“Quando precisa abrir a porta, buscar café, ir até a impressora, quase sempre é esperado que a pessoa periférica faça. Como se estivesse ali para servir, como se fosse natural essa posição de subserviência”, destaca Fernanda.

Outro viés é a ideia de que, por ser da periferia, a pessoa não possa ter um bom vocabulário e amplo. “Aí vêm os comentários: ‘Nossa, como você é inteligente’, ‘Como você fala bonito’, ‘Não esperava que você falasse assim’. E eu penso: por que não esperava? Por que, vindo da periferia, minha única opção seria falar com gírias?”, questiona Débora.

Debora Fernanda, head de RH, diversidade e inclusão da Gut (Crédito: Divulgação)

Debora Fernanda, head de RH, diversidade e inclusão da Gut (Crédito: Divulgação)

Outro viés semelhante é a subestimação da capacidade. E, para Ozemela, este é o tipo de racismo mais perverso. “Não é o racismo que te chama de macaca, é aquele que fica chocado ao descobrir que eu tenho doutorado, que falo três idiomas. Eu fico pensando: ‘Por que tanta surpresa?’”, destaca Luana.

“Então, você tem que se impor. Claro, muitas vezes eu fui, sim, buscar o café. Mas, com o tempo, com mais maturidade e inteligência emocional, comecei a questionar: ‘Mas por que preciso pegar o café?’ E aí a pessoa se dá conta, pede desculpa, e ela mesma levanta e vai buscar”, continua Débora.

O racismo e o machismo são barreiras constantes que essas mulheres enfrentam, mas, como reflete Thais Borges: “Pensando bem, os principais desafios foram os internos. Os desafios de ser mulher e negra são reais, mas os internos pesam mais, pois são os que mais nos travam”.

Para a diretora comercial, o sentimento de inferioridade e a necessidade de se superar foram os mais difíceis de enfrentar. “Nunca achei que fosse super inteligente, então acreditava que precisava trabalhar mais, estudar mais pra me destacar. Eu tinha que ser a primeira da sala, ou no máximo a segunda, porque me sentia inferior. Sempre carreguei esse sentimento de inferioridade. E ele ainda aparece, inconscientemente”, revela.

Thais Borges, diretora comercial e de marketing da Systak (Crédito: Divulgação)

Thais Borges, diretora comercial e de marketing da Systak (Crédito: Divulgação)

Choque de culturas

Cruzar a ponte é mais do que um ato. É uma realidade constante das pessoas da periferia e comumente significa entrar em contato com uma cultura e um contexto totalmente distintos daqueles a que se está acostumado. “Quem mora na periferia entende esse marco simbólico. Sempre tem uma ponte que separa a gente da ‘cidade’”, conta Débora. Para ela, que morava em Guarulhos, era a ponte Fernão Dias. Logo no início de sua jornada profissional, quando começou a cruzar a ponte, ela se deparou com pessoas de classes sociais e realidades totalmente distintas.

“Era outro universo. Gente que falava que ia velejar no fim de semana. E eu pensava: ‘Nossa, nunca fui nem ao Rio de Janeiro, o que vou conversar com essas pessoas?’”, lembra. Essa vivência a ajudou a entender e conviver com pessoas de diferentes realidades. Não só de classes sociais mais ricas, como também de periferias diferentes.

Débora lembra que quando trabalhou no Rio de Janeiro, liderou pessoas que viviam em comunidades, algumas pacificadas e outras não. “Teve gente que me ligou com tiro ao fundo dizendo: ‘Débora, não consigo sair, estou deitada no chão da minha casa, o ‘caveirão’ entrou na comunidade.’ Eu pensava: como vou exigir que essa pessoa, assim que o tiroteio acabar, volte ao trabalho?”, conta.

O choque cultural pode, inclusive, fomentar aqueles vieses que limitam as pessoas periféricas. Mas essas profissionais aprenderam a lidar com essas adversidades e a entender que sua presença nos ambientes corporativos já é sinal de luta e ativismo. “Não preciso nem falar muito, só o fato de entrar e sentar à mesa já é um ativismo. Meu corpo é um instrumento de ativismo, mostrando que quando entro, sou a única assim. E aí, as pessoas percebem que precisam de mais diversidade, de mais visões diferentes”, destaca Luana.

Habilidades periféricas

“Precisamos olhar de forma diferente para quem vem da periferia. Elas trazem tantas competências que vêm do dia a dia, tantas expertises que nascem ali, na prática”, acrescenta Débora. “Pensa numa comunidade que se organiza para cuidar de tudo: levar criança pra escola, cuidar da casa, ajudar com a lição, atravessar a cidade, pegar ônibus. Isso exige um dinamismo enorme, gestão de crise, gestão de tempo, habilidades que, no dia a dia do trabalho, são justamente as que mais nos sustentam e nos fazem avançar”, continua.

A vida na periferia é marcada pela vivência em comunidade. Existem códigos e um senso coletivo muito forte que unem essas pessoas. “A periferia nos ensina a respeitar o próximo, a se colocar perto do outro e a dividir, porque muitas vezes na nossa casa tem mais do que na casa do vizinho. Minha mãe sempre dividia comida, e minha família sempre ajudava quem podia. Ela conversava, fazia bolo e levava para os vizinhos, sempre acreditando no compartilhar”, diz Andreia Roma.

Andreia Roma, fundadora e CEO da editora Leader (Crédito: Divulgação)

Andreia Roma, fundadora e CEO da editora Leader (Crédito: Divulgação)

Foi nesse convívio que Débora aprendeu o valor das redes de apoio, principalmente para as mulheres. Elas se ajudam para cuidar das crianças, dos idosos, da casa, ou, ainda, emprestando coisas, como uma roupa para ocasiões especiais.

Além disso, a diretora destaca a capacidade de observação como uma das habilidades que aprendeu nesse contexto. Isso a permite observar o ambiente antes, entender os códigos, costumes e comportamentos, para então agir com maior empatia e sensibilidade. Habilidades que hoje carrega em sua liderança humanizada.

“Quando eu trabalhava em dois empregos, das 6h da manhã ao meio-dia e depois das 13h às 16h, eu precisava acordar às 4h porque só passava um ônibus nesse horário. Se perdesse, não chegava no trabalho. E ainda tinha que me preparar para o vestibular, que demandava muito tempo. Essas experiências ensinam sobre resiliência e generosidade”, conta Luana Ozemela.

“As habilidades que a periferia me deu são difíceis de explicar, mas incluem essa resiliência de enfrentar desafios sem desistir, a generosidade e a empatia, e vontade e ousadia de querer mudar estruturas econômicas e de poder”, continua.

Papel das empresas

Se as companhias desejam atrair mais talentos periféricos, elas precisam primeiro entender o contexto social que cada uma dessas pessoas vive, avalia Débora.

“É sobre entender o indivíduo. Como no exemplo que vivi com colaboradores de diferentes comunidades, algumas pacificadas, outras não. Todas são periferias, mas com vivências distintas. Não dá pra aplicar uma ação de inclusão padronizada, como se servisse pra todo mundo. É preciso olhar para cada história”, aponta a executiva.

Uma das ações destacadas pelas entrevistadas são os treinamentos de vieses inconscientes, oferecendo uma visão sobre o que é a cultura periférica e o que significa o Brasil profundo.

O passo seguinte é criar programas de entrada, que abram portas e oportunidades para esses talentos, sem perder de vista o investimento na progressão de carreira. “Acredito muito nessas ações, além de estágio, jovem aprendiz, que sejam inovadoras e valorizem a perspectiva dessas pessoas, ajudando a desenvolver essa ousadia de entrar em ambientes diferentes, sem se sentirem fora do ‘aquário’, sem se sentirem menores”, destaca Luana.

Thais Borges concorda: “Defendo que as empresas criem programas voltados para a base, acompanhando esse crescimento de forma contínua, de baixo para cima. Só assim os índices realmente vão mudar. E não é só um processo técnico, é educativo. Essas pessoas precisam acreditar que podem”, complementa.

“Isso aconteceu muito comigo. Eu não tinha referência: ninguém na minha família era formado, ninguém trabalhava em grande empresa, ninguém tinha viajado pra fora. Fui a primeira em tudo. Então, se as empresas querem mesmo causar impacto, têm que começar da base. Porque tem muita gente na periferia com capacidade, mãe chefe de família, mãe solo, mulheres incríveis. Vale a pena investir nelas e fazer a diferença de verdade”, conclui Thais.