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Trabalho de cuidado entra na pauta corporativa com nova lei federal

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Women to Watch

Trabalho de cuidado entra na pauta corporativa com nova lei federal

Política Nacional de Cuidados garante direitos a cuidadores e a quem precisa de cuidados, além de responsabilizar Estado, família, sociedade civil e setor privado


27 de maio de 2025 - 11h14

(Crédito: Shutterstock)

No final de 2024, o atual presidente da República aprovou a Lei 15.069, que institui a Política Nacional de Cuidados. Entre as medidas previstas está a elaboração de um plano nacional com ações, metas, indicadores, instrumentos, períodos de vigência e revisão, além de órgãos e entidades responsáveis pela implementação da lei. A nova norma prevê a garantia do direito ao cuidado e compartilha a responsabilidade deste trabalho entre Estado, família, setor privado e sociedade civil.

Por ora, os grupos prioritários são crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, além dos trabalhadores do cuidado, remunerados ou não. Com o Plano Nacional de Cuidados, o governo federal, juntamente com os estados e municípios, será responsável por coordenar as ações voltadas a estes públicos nas mais diversas áreas como saúde, assistência social, trabalho, educação e direitos humanos.

Além de assegurar a garantia ao cuidado de qualidade, a lei também promove o trabalho decente aos cuidadores, de forma a redistribuir a carga de trabalho que recai sobre as mulheres. De acordo com o IBGE, as mulheres passam, em média, 21 horas semanais nas atividades de cuidado, enquanto os homens utilizam 11 horas. Ou seja, quase o dobro do tempo.

O projeto de lei chegou ao Congresso em julho de 2024, e foi aprovado pela Câmara e pelo Senado no início de dezembro do mesmo ano. Antes de chegar nas casas legislativas, o tema é fruto de uma grande articulação do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) sobre cuidado, composto por 20 ministérios e 3 entidades permanentes (IBGE, Fiocruz e Ipea).

Até o momento, o plano nacional está dividido em quatro eixos. O primeiro promove a garantia de direitos e promoção de políticas para quem necessita de cuidados e para quem cuida de forma não remunerada. O segundo refere-se a políticas de promoção do trabalho decente para quem cuida de forma remunerada. O terceiro eixo prevê o reconhecimento de diferentes expressões culturais do cuidado e de uma comunicação para a desnaturalização da divisão sexual e racial do trabalho. E o último diz respeito à governança e gestão do plano.

Em conversa com o Women to Watch, Nana Lima, sócia e cofundadora do Think Eva e da Think Olga, discute a importância da Política Nacional de Cuidados para o Brasil, os impactos da sobrecarga com o cuidado para as mulheres e o papel das empresas neste contexto.

Nana Lima é sócia cofundadora da Think Eva e Think Olga (Crédito: Divulgação)

Meio & Mensagem – Qual é o contexto do surgimento da Política Nacional de Cuidados?

Nana Lima – Em 2020, O Think Olga e o Think Eva fizeram um relatório sobre a economia do cuidado. Esse olhar para o trabalho do cuidado já existia há muito tempo na academia, mas ainda não era um tema popularizado. Não tinha chegado nas empresas, nem em outros setores da sociedade, e ficava muito restrito ao meio acadêmico. O governo atual tem um desejo muito forte de transformar o cuidado em um direito. Não só como um dever das pessoas, como no caso do cuidado parental ou com idosos, mas como um direito garantido. E, pra isso, ele precisa estar reconhecido na legislação. Essa mudança é simbólica e prática, porque o cuidado vai entrar, de fato, no arcabouço legislativo brasileiro. E isso é muito significativo, já que vários direitos estão garantidos na Constituição desde sempre, mas o cuidado nunca foi um deles.

Acho que isso está ampliando a consciência coletiva de que o cuidado é central para a sociedade funcionar como funciona. E, se a gente não olhar para isso na lei, na garantia de direitos, o trabalho do cuidado vai continuar sendo um fator que aprofunda a desigualdade de gênero. Quem cuida fica sempre para trás, sem nenhuma garantia social. Então, esse objetivo atual é justamente reconhecer e apoiar quem cuida, sejam cuidadores de idosos, formais ou informais, e também quem precisa de cuidado. A proposta olha para esses dois públicos: os cuidadores, para que não fiquem precarizados, na informalidade e sem direitos, e quem precisa de cuidado, para que tenha isso garantido por lei.

M&M – Quais ações e iniciativas a lei incentiva ou propõe?

Nana – Ainda haverá mais detalhes de como isso será implementado nos municípios, estados e federação. Mas, por enquanto, de forma mais genérica, o texto destaca o reconhecimento e o apoio a quem cuida, e isso inclui o cuidado não remunerado, o que é muito importante. Porque, imagina, você é dona de casa, cuida do seu neto, do seu irmão idoso, e isso nunca foi reconhecido como trabalho. Agora, a ideia é entender que esse cuidado pode, e deve, ser recompensado de várias formas. Existe, por exemplo, o caso da Argentina, onde o tempo dedicado ao cuidado dos filhos conta na aposentadoria da pessoa cuidadora. Isso é muito interessante, porque começa a existir uma recompensa, uma segurança social para quem cuida.

Na Colômbia, tem o que eles chamam de “manzanas del cuidado”, que seriam como “quarteirões do cuidado”. São espaços com vários serviços públicos concentrados, como lavanderia pública, lugar para fazer exercício enquanto uma cuidadora cuida da criança. É um espaço onde quem cuida consegue resolver várias coisas no mesmo lugar. Além disso, estão prevendo iniciativas de formação e qualificação para essas pessoas. Porque muitas vezes, a babá ou a cuidadora de um idoso está na informalidade, sem nenhuma formação, cuidando só com base na vivência. Também entra a promoção de um trabalho digno, o que é fundamental quando falamos das trabalhadoras domésticas. São mulheres que, muitas vezes, precisam deixar seus próprios filhos, às vezes em condições ruins, para cuidar dos filhos de outras pessoas. Isso tudo impacta diretamente nas crianças, nos idosos e nas pessoas com deficiência, que são justamente quem mais precisa desse cuidado e quem está em situação mais vulnerável.

Agora, com esse plano de cuidados, a ideia é que ele venha com ações, metas e orçamento. Está rolando uma discussão interministerial para entender o que é responsabilidade de cada um. E aí começa o trabalho mais complexo. Porque, por exemplo, uma política de cuidado em São Paulo é completamente diferente de uma em comunidades ribeirinhas no Pará ou em comunidades indígenas, onde até a forma de parir pode ser totalmente diferente. Então, será preciso respeitar esses territórios. Por enquanto, está tudo muito aberto. O momento ainda é de articulação.

M&M – Qual é o papel das empresas na economia do cuidado?

Nana – A sensibilização é o primeiro passo. Entender o peso do cuidado. As empresas não vão conseguir bater metas de equidade de gênero e de mulheres na liderança se não compreenderem que o trabalho de cuidado recai muito mais sobre elas. E isso acontece mesmo quando estamos falando de um público mais executivo, que muitas vezes tem como contratar ajuda. Ainda assim, essa mulher provavelmente vai carregar a carga mental da gestão da casa, da rotina dos filhos, independentemente do nível de privilégio que ela tem na sociedade. Depois, o próximo passo é colocar isso dentro dos critérios da empresa de avaliação de performance, benefícios, políticas internas, políticas afirmativas, contratação. E também pensar em como apoiar e incentivar que os homens cuidem. Porque tem empresa em que um executivo nunca tirou uma licença, nunca perdeu um dia de trabalho para cuidar de alguém.

Te dou um exemplo de uma empresa, que tinha um público interno muito grande na operação e manutenção. Era um pessoal que trabalhava por hora, em turnos, sem flexibilidade e sem possibilidade de home office. As mulheres da empresa contaram que não havia política de abono de faltas quando o atestado era de acompanhante. Ou seja, se alguém da família ficava doente e a pessoa precisava acompanhar, levava um atestado dizendo “levei meu filho ao médico, faltei meio período”. Quando olhamos para os dados, 99% dos atestados de acompanhante eram de mulheres. Porque são elas que acompanham os filhos, o marido, a mãe, o pai, ou algum idoso da família. Como é que estamos penalizando essas mulheres por algo que é uma imposição da sociedade? É esperado que elas cuidem. E, muitas vezes, são mães solo, que nem têm com quem dividir esse cuidado. Então, é esse entendimento que precisa vir primeiro, porque não dá pra fingir que todo mundo parte do mesmo lugar. Na prática, é bem diferente. As mulheres não vão conseguir progredir no mercado formal se essa questão do cuidado não for compreendida e se as empresas não agirem sobre isso.

M&M – Por que o Brasil precisa de uma lei como essa?

Nana – A maioria das pessoas na informalidade hoje são mulheres, e muitas estão nesse trabalho de cuidado. Temos 11 milhões de mulheres no Brasil que gostariam de trabalhar fora de casa, mas não podem porque cuidam de alguém. Metade das mães no país são mães solo. Essa desigualdade aparece também na questão da licença-paternidade. O ônus recai sobre a mulher na hora da contratação. O empresário olha e pensa: “Essa aqui vai sair quatro, cinco meses; esse aqui não sai. Quem eu vou contratar?”. A gente não vai conseguir garantir um país com mais saúde mental para quem cuida, nem um cuidado mais digno para crianças e idosos, se não olhar para isso. A creche, por exemplo, muitas vezes acaba sendo a vizinha, porque a mulher precisa sair para buscar renda e não tem outra opção. A informalidade vira a única saída. Se a gente não resolver o básico, que é entender o cuidado como dever, como direito e também como trabalho, mesmo que não remunerado, a gente não vai chegar a lugar nenhum.

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