Sua mesa pode ser um lugar perigoso?
Com inevitável nostalgia de quem já participou presencialmente de outras edições, um vídeo me chamou particularmente atenção na 67ª edição do Cannes Lions, desta vez 100% virtual.
O vídeo mostra uma sessão de terapia de um casal em que um deles representava o consumidor e o outro o vendedor. As características da crise são típicas de relações um tanto quanto desgastadas: tomada de decisões impulsivas, mudança dramática de comportamento, pensamento constante sobre infidelidade, intensa sensação de saudades de outros tempos, comparação constante de si mesmo com os outros.
Essa foi a maneira divertida que a PHD Media WorldWide iluminou a questão da “crise da meia idade do marketing”. De fato, o marketing nunca precisou tanto de terapia e Mark Ritson poderia ser o nome do terapeuta. Sem entrar no mérito da criatividade e qualidade da metáfora utilizada, o vídeo evidenciou alguns dos atuais desafios da indústria de marketing.
Em um mundo que enfrenta uma crise colossal diante da pandemia – com o consequente aumento da desigualdade e da instabilidade – não é de se surpreender que as dúvidas sobre o futuro da “indústria de comunicação” tenham povoado vários conteúdos da edição de 2021.
A WGSN trouxe uma perspectiva muito interessante sobre a redefinição significativa das prioridades das pessoas em um mundo pós pandêmico. O estudo “O futuro do Consumidor 2023” apresentado por Carla Bozzi, diretora da empresa, é ancorado na busca por compreender “sentimentos” e “perfis de consumidores” apontando que a “forma como nós sentimos” terá um impacto muito relevante e refletirá na forma que iremos gastar.
Mas, observar o que está se passando agora na cabeça e na vida das pessoas não pode ser apenas uma forma de sofisticar nossas teorias. Mais do que nunca, é preciso aproximar teoria e prática, discurso e ação. Nesse sentido, o título no painel da Conny Braams, CDMO (Chief Digital & Marketing Officer) da Unilever, é bem sugestivo: “Your desk is a dangerous place”.
Conny iniciou sua fala agradecendo aos profissionais que arriscaram suas vidas para salvar outras durante a pandemia. Em seguida, ela indicou as consequências sociais que estamos vivendo: 1. Aceleração da digitalização. “Vimos uma década de mudanças se concretizando em um ano”. 2. As desigualdades pioraram e os movimentos a favor da diversidade e inclusão explodiram. 3. A crise climática se tornou mais profunda e se transformou em emergência.
Conny foi taxativa: “Business as usual is over!” O marketing precisa adaptar suas estratégicas e táticas para navegar neste novo mundo em que o consumidor sabe cada vez melhor fazer suas escolhas, as pessoas descobrem marcas de diferentes formas, os dados nos permitem entender melhor grupos menos atendidos na sociedade e a confiança nas empresas está em ascensão.
Para explicar como chegar lá, Conny convidou Aline Santos, líder global de marca e de diversidade e inclusão da Unilever, para falar. Confesso que uma mulher brasileira falando ampliou ainda mais minha conexão com o painel. O ritmo da sua fala, a energia das suas palavras e o conteúdo que molda sua filosofia e estratégia de marketing fizeram a diferença. A filosofia: “Get on the front line!” .
Através das falas da Conny e da Aline, pode-se aprofundar mais as reflexões sobre como estourar a bolha que acomoda o marketing. Em resumo: estar mais perto das pessoas – e da realidade em movimento – é o melhor caminho para trazer novas possibilidades para aquele “casal de meia idade” que está precisando de urgente terapia.
Não somos necessariamente nossos típicos consumidores e os dados são somente uma parte da equação. Se quisermos construir marcas relevantes precisamos estar próximos, sentir e vivenciar os aspectos de diferentes realidades. A conexão cultural existe na prática. A teoria não é suficiente. Este é um ponto indispensável da equação. Só assim, o marketing andará de braços dados às mudanças – negativas e positivas – do mundo.
Volto a frase que nomeou o painel. Ela é do escritor britânico John le Carré, pseudónimo de David John Moore Cornwell, e completa é ainda mais poderosa: “A desk is a dangerous place from which to view the world”. Se as marcas podem fazer diferença no mundo, este momento é agora. Para benefício do negócio e dos consumidores, nada melhor do que evitar o perigo da sala fechada. Só assim, será possível dar conta da escala e do ritmo das mudanças pelas quais nosso setor tem passado nos últimos tempos.