Women to Watch

Mulheres negras na criação: a potência que o mercado ignora

Com essas profissionais na área, a indústria pode desafiar estereótipos e ter conexão real com o público

i 25 de julho de 2025 - 14h58

O último Censo de Diversidade das Agências Brasileiras do Observatório da Diversidade na Propaganda (ODP) e da Gestão Kairós apontou que houve uma diminuição do número de mulheres negras nas agências de publicidade. Em 2023, elas representavam 21% no quadro geral de pessoas e, em 2024, o número caiu para 17%. A proporção desse grupo diminui conforme a hierarquia sobe, sendo gerente (13%), diretoria (6%) e CEO (3%).

Não à toa, a trajetória das mulheres negras no mercado da publicidade é cercada de desafios, a começar com a dificuldade de entrada. “Sou publicitária de formação, mas não consegui logo de cara entrar no mercado, por dificuldades financeiras. Os estágios não pagavam, e eu precisava ajudar a pagar a faculdade. Então, como a maioria dos brasileiros, comecei a trabalhar em empregos que não eram da minha área, só para pagar as contas”, conta Renata Hilario, que hoje é líder de desenvolvimento criativo na Globo.

A dificuldade é ainda maior quando falamos da área de criação. Thamara Pinheiro, cofundadora e CEO da Auê, hub criativo formado por profissionais negros, ouviu ainda na faculdade que a criação não era lugar para mulheres. “Lembro de um professor, no meu primeiro ano na Cásper Líbero, que disse: ‘Mulheres não vão para criação, vão pro atendimento’.” E eu ali, a única menina negra da sala, pensei: ‘Meu Deus, se essas meninas que estão dentro do padrão não vão para criação, imagine eu?’” Ouvir aquilo me desanimou muito e já começou a mostrar como o mercado funcionava”, recorda.

Tawane Silva, ACD na Galeria, teve uma experiência semelhante. “Lembro que, na minha primeira agência em São Paulo, meu time tinha 20 pessoas e todas eram homens. Isso foi um choque pra mim. Foi quando percebi que, num mercado majoritariamente masculino, talvez eu não tivesse tanto espaço pra crescer na criação”, afirma.

Virada de chave

Em todas essas histórias, houve um ou dois momentos de virada de chave. Para Gabriela Moura, foi encontrar pessoas que acreditaram em seu potencial. “Todo o potencial que eu tinha, esse background diferente que eu trazia, precisava de um espaço para se expandir, de gente que acreditasse na minha história. E sempre que eu encontrava essas pessoas, sentia que algo mudava de rumo”, conta.

Para Renata Hilario, essa pessoa foi o Mano Brown, rapper integrante do grupo Racionais MC’s e apresentador do podcast Mano a Mano, do qual Renata é co criadora e coordenador editorial. “O ‘Mano a Mano’ foi um grande divisor de águas. Foi um projeto que, a princípio, ninguém acreditava muito, mas aconteceu, contrariando a lógica do sistema. Trabalho com o Mano Brown há quatro anos, e ele fala algo que levo para a vida: a causa é maior que nós e a gente tem que ser útil. Ele vive isso de fato, e eu tento seguir esse exemplo”, diz.

Renata Hilário, líder de desenvolvimento criativo na Globo (Crédito: Divulgação)

Renata Hilario, líder de desenvolvimento criativo na Globo (Crédito: Divulgação)

Assim como Renata, para Tawane, criar um projeto solo, o Periféricas, foi um dos catalisadores para o sucesso profissional. “A ideia era reunir mulheres da periferia com histórias parecidas com a minha que estudavam publicidade em faculdades nos extremos da cidade. O projeto me deu visibilidade na área, fez com que as pessoas conhecessem minha história”, conta.

Em muitos casos, essas mulheres precisaram pavimentar o próprio caminho para serem reconhecidas. Algumas com projetos paralelos, outras empreendendo, seja dentro das próprias agências ou criando seus próprios negócios. “Se não tem espaço, eu preciso ser a pessoa que ajuda a construi-lo. Eu me deparei com uma realidade muito dura, de ter que fazer alguma coisa. Como se eu não tivesse escolha. Como se precisasse pavimentar um caminho pros outros e pra mim mesma”, reflete Tawane.

Thamara Pinheiro conta uma história parecida. Apesar de ter ouvido muito cedo que a criação não era seu lugar, ela desafiou esse conceito. “Todos os meus movimentos foram assim: me colocando em espaços que não eram meus e me dispondo a fazer acontecer. Chegar até aqui foi um processo de me provar constantemente, de testar até onde podia chegar. Sempre foi isso: necessidade, autonomia e disposição para fazer funcionar. Porque se nós, mulheres, esperarmos a chancela de alguém pra fazer algo, vai demorar muito”, diz.

Para outras, a virada de chave aconteceu com importantes momentos sociais. “Durante essa onda recente de feminismo, as pessoas começaram a perceber que havia muito mais homens do que mulheres na criação publicitária. As mulheres sempre ocuparam outros cargos nas agências, mas na criação publicitária era muito difícil ser mulher, e ser mulher negra, então, era ainda mais complicado”, destaca Joana Mendes, diretora criativa e ex-presidente do Clube de Criação.

Joana Mendes, diretora de criação (Crédito: Divulgação)

Joana Mendes, diretora de criação (Crédito: Divulgação)

“Para as pessoas negras, infelizmente, o grande marco foi o assassinato de George Floyd, em 2020, que trouxe uma onda rápida, mas que logo diminuiu. Muitos negros foram promovidos a diretores de criação, tiveram suas carreiras reconhecidas, mas depois começaram a perder espaço. Foi um momento difícil para todos nós”, continua Joana.

Retrocesso na publicidade

Como apontada na pesquisa da ODP, houve um retrocesso no número de pessoas negras dentro das agências de publicidade. Apesar dos avanços alcançados, a onda conservadora parece ter impactado o setor.

“Acho que mudou um pouco. Hoje, ocupo esse lugar, o que já é um grande avanço. Mas ainda vejo poucas como eu conseguindo chegar até aqui. Não é falta de vontade, muitas meninas negras querem estar nesse lugar criativo. E as agências precisam da gente. Estamos falando de um país onde 56% da população é preta e 51% é feminina. Não sou exceção, sou a regra”, destaca Thamara.

Mesmo quando ocupam os lugares na criação, por vezes, elas não têm voz no processo criativo, na tomada de decisões ou ainda, não são reconhecidas por suas ideias. “Pessoas pretas têm voz em momentos muito específicos, por exemplo, no mês da Consciência Negra. Mas, quando o assunto muda, essas mesmas pessoas não têm o mesmo espaço nem a mesma escuta. E isso é cansativo, criativamente falando. Porque, sendo mulher ou homem preto, a gente quer criar a partir da nossa potência, e não só quando o tema é racial”, pontua Tawane.

Tawane Silva, Diretora de Criação Associada da GALERIA.ag (Crédito: Divulgação)

Tawane Silva, diretora de criação associada da Galeria (Crédito: Divulgação)

Para as criativas, existem algumas razões que explicam o retrocesso atual do mercado. Em parte, o fim da pandemia e o retorno ao modelo presencial nos escritórios voltou a fechar as portas das agências para talentos de outras regiões. “E o que vemos em São Paulo? Um mercado ainda majoritariamente branco, elitista, muito concentrado na Faria Lima”, ressalta Jessica.

As políticas externas de acabar com programas de diversidade e inclusão em empresas no exterior também influenciam as agências nacionais. Além disso, passados cinco anos da morte de George Floyd, o assunto parece ter esfriado. “Parece que aquela onda só aconteceu porque a branquitude se sentiu envergonhada ao assistir repetidamente a cena de um homem negro sendo morto por um policial. Não é possível que a gente continue esperando outra desgraça acontecer pra voltar a olhar para os problemas”, afirma Gabriela.

Acompanhado deste resfriamento, além de perderem espaço no mercado, as pessoas negras também perdem visibilidade. “Esse retrocesso é perigoso. Hoje, está sendo normalizado ver só pessoas brancas nos lugares de destaque, nos palcos, nas notícias. Nos veículos especializados em publicidade, vemos novas promoções e times se formando, e tudo isso naturaliza a presença exclusiva de pessoas brancas nesses espaços”, reforça Renata.

E tal retrocesso também impacta nas campanhas produzidas por esses times. “Sem mulheres negras criando junto, a indústria se torna muito homogênea, muito branca, muito masculina. Para mim, vira quase um cover mal feito de Hollywood, com tendências importadas e mal adaptadas à nossa realidade, que acabam destoando da nossa sociedade”, aponta Gabriela Moura.

Potências negras

A realidade brasileira é marcada por uma maioria da população sendo negra e uma riqueza cultural que se diferencia de norte à sul. “O que importa no final é a diversidade cultural e de vivências, que é o que faz nossa publicidade ser criativa, diversa e premiada”, destaca Jessica Almeida.

“A população negra é extremamente rica culturalmente. E a nossa indústria perde muito por não dar atenção à negritude, por não dar atenção às mulheres negras. Porque não é só sobre força e resiliência. É sobre criatividade, cultura, história e filosofia”, complementa Gabriela.

Para Thamara, a mulher negra contribui para a publicidade com um olhar não enviesado. “A mulher negra traz humor, seriedade, criatividade, brilho e uma visão ampla dos temas, justamente por ocupar um lugar pouco visto e pouco considerado. Socialmente, ela sempre se colocou na posição de observar o que é importante para o outro. Esse é o lugar social da mulher negra”, aponta.

Thamara Pinheiro, cofundadora e CEO da Auê (Crédito: Divulgação)

Thamara Pinheiro, cofundadora e CEO da Auê (Crédito: Divulgação)

Por estarem na base da pirâmide social e serem o maior grupo social no Brasil (28% da população), as mulheres negras trazem um conhecimento profundo das dores, desejos e necessidades do povo. “Quando você está na base da sociedade, como eu, você percebe movimentos, pessoas, problemas sociais e insights para as marcas que quem está no topo não vê”, continua Thamara.

“Ter mulheres negras na indústria criativa brasileira é representar a verdadeira fotografia da sociedade, dessas mulheres que lideram famílias, comunidades, escolas, e movem a vida cotidiana”, destaca Jessica.

Ter mulheres negras na publicidade traz genuinidade e identificação para as campanhas. “Uma mulher negra na criação é um agente duplo: está na comunidade e dentro da criação das marcas, pensando em narrativas e campanhas que falem de mulher para mulher, de forma verdadeira. Nada mais justo que uma mulher negra falar para outra mulher negra, dentro da estratégia e da criação, usando códigos e jeitos de falar que só quem viveu aquela realidade entende”, completa a criativa baiana.

Jessica Almeida, senior content manager na Usina Creative Company (Crédito: Divulgação)

Jessica Almeida, senior content manager na Usina Creative Company (Crédito: Divulgação)

Propósito e qualificação

A mulher negra traz outras bagagens e referências para os times, que, muitas vezes, agregam em soluções e olhares para problemas antes não vistos. “Trazemos outras histórias, referências e vivências. A gente anda pelos mesmos lugares, mas também por outros espaços. Essa capacidade de contar histórias sob uma perspectiva diferente é importante, principalmente porque somos a maior população desse país”, destaca Joana.

Para Thamara Pinheiro, justamente por ocupar este lugar social, a mulher negra traz em si um propósito de servir a algo maior. “Ela tem esse olhar amplo sobre o que é criatividade e como ela deve estar sempre a serviço de um propósito. É um lugar muito particular, vindo da nossa vivência, de encontrar soluções onde só existem problemas, soluções que vêm do pouco, e não de grandes orçamentos. Imagine o que podemos fazer com grandes investimentos, usando toda a força da publicidade”, ressalta Thamara.

Além disso, existem muitas mulheres negras qualificadas para ocupar papéis em todos os extratos das agências. “Muitas de nós estudam muito, fazem cursos, mestrado, doutorado, MBA, justamente para garantir nosso espaço nesses ambientes”, aponta Joana.

“É preciso mexer um pouco mais acima na estrutura. A base, de certa forma, já está consolidada, as próprias faculdades mostram isso. As mulheres pretas estão qualificadas. Elas estudam mais, trabalham mais e acumulam mais responsabilidades, pois muitas vezes são mães ou cuidam de alguém”, complementa Tawane.

Papel de todos

“Diante disso, acho que qualquer pessoa, independente de gênero ou raça, que não concorde com esse retrocesso, tem uma responsabilidade ética de retomar esse debate. A gente não pode depender de tragédias extremas, como foi o assassinato do George Floyd, pra levantar essas questões de novo”, destaca Gabriela Moura.

Para a criativa, faltam oportunidades e portas abertas. “Não tem justificativa para dizer que não encontram essas pessoas, elas existem. Posso dar uma lista imensa de mulheres negras em quem confio”, continua.

Gabriela Moura, diretora criativa (Crédito: Divulgação)

Gabriela Moura, diretora criativa (Crédito: Divulgação)

Para Renata Hilario, é preciso maior envolvimento das lideranças. “Virar esse ponteiro depende das lideranças, porque são elas que têm o poder de contratar e promover equipes mais diversas”, pontua.

Thamara Pinheiro ressalta a importância de colocar mais mulheres negras na gestão das agências. “Precisamos abrir uma conversa real no mercado sobre mulheres negras em cargos de liderança, em espaços de tomada de decisão. A base é essencial, claro, mas a gente já passou anos construindo isso”, destaca.

Por outro lado, Joana Mendes ressalta o papel dos clientes de exigir maior diversidade dos times nas agências. “Quando eu trabalhava na WPP, uma cliente chegou e falou que queria ver mais mulheres na criação, que tinha poucas. Isso foi fundamental, pois por causa dela eu podia contratar mais mulheres. Assim, conseguimos montar um time bastante equilibrado, com quase metade de mulheres. Então, além da nossa vontade, a gente precisa que os clientes façam esse movimento também”, reforça.

“Há marcas, como a L’Oréal, que declararam que não vão diminuir os incentivos à diversidade, porque esses investimentos trouxeram resultados gigantescos, e o Brasil é um dos maiores mercados do mundo para elas, e faz sentido continuar”, complementa Thamara.

“Como diz Cindy Gallop, a gente não precisa de mais mentoria, mas sim de alguém que fale da gente nas salas onde não estamos. Precisamos de ‘champions’, pessoas que nos representem e nos indiquem. A gente traz muita inteligência, humor, comprometimento, porque queremos estar nesses espaços, queremos fazer parte da publicidade”, adiciona Joana.

Ter aliados é essencial para Thamara. “A estratégia deve ser mais pragmática, como hackear o sistema e mostrar que diversidade não é só uma questão político-social, mas de negócio, rendimento, prosperidade e conexão com comunidade”, finaliza.