Women to Watch

Quem são as mulheres à frente da IA no Brasil?

Lideranças contam suas histórias e apontam desafios e caminhos para aumentar a diversidade na área

i 25 de agosto de 2025 - 8h57

Globalmente, as mulheres representam apenas 22% dos trabalhadores de IA, com níveis ainda menores entre as lideranças, somando 14% dos cargos executivos sênior, segundo a pesquisa “AI’s Missing Link: The Gender Gap in the Talent Pool”, da Interface.

De acordo com o estudo, são inúmeras as razões para a baixa representatividade feminina entre os desenvolvedores de IA, incluindo o número tímido de mulheres em cursos de STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), questões culturais que desincentivam meninas a seguirem tais áreas e que minam as carreiras femininas seja por vieses, estereótipos, assédios ou o “teto de vidro”.

Apesar da baixa representatividade, Cíntia Barcelos, CTO do Bradesco, vê a situação como um copo meio cheio: “A tecnologia, incluindo a inteligência artificial, ainda é vista como um território masculino, o que pode afastar algumas mulheres desde a formação acadêmica. Mas isso também apresenta uma oportunidade: há um espaço enorme para inclusão, inovação e protagonismo feminino”, destaca.

Cíntia sempre gostou de matemática, por isso, formou-se em engenharia eletrônica pela UFRJ. Em sua carreira de 28 anos, passou por diversas áreas e indústrias, desenvolvendo conhecimentos em arquitetura, cloud, inteligência artificial e soluções resilientes. Em 2017, foi nomeada Distinguished Engineer, a primeira mulher na América Latina a receber esse título. Desde 2024, lidera a área de tecnologia como CTO do Bradesco, à frente de iniciativas de infraestrutura, operações de TI, cibersegurança, arquitetura, dados e IA.

Cíntia Barcelos, CTO do Bradesco (Crédito: Divulgação)

Cíntia Barcelos, CTO do Bradesco (Crédito: Divulgação)

Bárbara Vallim, cofundadora e CEO da Hera.Build, startup que oferece soluções de IA para empresas, também enxerga um movimento positivo de mulheres se fortalecendo em grupos. “Como mulher em tecnologia, posso dizer que ainda somos minoria, mas vejo um movimento muito grande de inclusão de mulheres na área acontecendo. Existem iniciativas, comunidades, grupos e até fundos de investimento que trabalham para garantir pelo menos uma mulher no board de empresas de tecnologia. Temos um papel importante de pavimentar esse caminho para outras mulheres, inspirar e mostrar que não há motivo para ter medo de trabalhar com IA ou tecnologia de forma geral”, ressalta.

Mulheres em STEM

Para Amanda Graciano, co-fundadora da Trama e especialista em inteligência artificial, as mulheres sempre estiveram envolvidas com a tecnologia e ciência. “Temos um desafio de storytelling: parece que mulheres nunca estiveram na tecnologia, mas isso não é verdade. A história não é contada, e quando encontramos essas mulheres, elas já ocupam posições de liderança”, aponta.

Formada em economia, Amanda trabalha com tecnologia há 12 anos. Ela enxergou uma oportunidade de prestar consultoria e produzir conteúdo sobre inteligência artificial quando percebeu que muitas lideranças desconheciam o tema. “Para discutir governança, legislação brasileira sobre IA, proteção de dados ou decisões de conselhos de administração, é preciso conhecer a tecnologia. Não adianta só eu saber; precisamos que mais pessoas tenham acesso”, afirma Graciano.

Cintia é uma dessas mulheres que sofreu pela falta de referências. “É difícil se imaginar em um lugar onde não vemos pessoas parecidas conosco”, desabafa. “Desde cedo, meninas são menos incentivadas a explorar áreas de exatas e tecnologia. Isso se reflete na formação acadêmica e, mais tarde, nas oportunidades de carreira”, continua Barcelos.

Conforme também aponta o estudo da Interface, o segundo maior entrave para aumentar a presença feminina nessas áreas é cultural. “Atualmente, ainda nos deparamos com vieses inconscientes, como a tendência de direcionar conversas a homens em reuniões, mesmo quando a mulher é a líder da equipe”, afirma Fernanda Jolo, diretora de engenharia de clientes de IA do Google Cloud para América Latina.

A inteligência artificial entrou na vida de Fernanda há mais de duas décadas, quando decidiu cursar estatística na Unicamp. “Minha paixão pelas ciências exatas e pela computação me impulsionou a focar na aplicação do conhecimento estatístico para resolver problemas de negócio, uma direção que mantive ao longo de toda a carreira”, conta. Jolo seguiu estudando o tema e já trabalhou com empresas globais como McKinsey, Accenture e SAS, antes de entrar no Google.

Fernanda Jolo, diretora de engenharia de clientes de IA do Google Cloud para América Latina (Crédito: Divulgação)

Fernanda Jolo, diretora de engenharia de clientes de IA do Google Cloud para América Latina (Crédito: Divulgação)

Entre crenças e vieses

A crença de que a tecnologia é um ambiente masculino não somente desincentiva mulheres a seguirem essas carreiras, como também reforça estereótipos e vieses que impactam a permanência daquelas que decidem seguir na área.

“Os principais desafios certamente estão relacionados ao estereótipo de que tecnologia não é para as mulheres. Vocês já se perguntaram o porquê da maioria dos assistentes virtuais terem nomes femininos? Isso reflete estereótipos de gênero profundamente enraizados na sociedade. Essa escolha está ligada a percepções culturais sobre o papel tradicional das mulheres como cuidadoras e assistentes”, reflete Marisa Reghini, vice-presidente de negócios digitais e tecnologia do Banco do Brasil.

“Sempre fui apaixonada por tecnologia. Desde quando entrei para o Colégio Técnico, lá em Bauru, e comecei a estudar TI com 14 anos, tive a certeza de que gostaria de trabalhar com aquilo pelo resto da minha vida”, conta Marisa. A líder construiu uma carreira de 26 anos no Banco do Brasil e desde 2023 ocupa a cadeira de VP de negócios digitais e tecnologia.

Apesar de ser apaixonada pela carreira, Reghini lembra que a desconfiança de si mesma é outro obstáculo comum às mulheres. “Infelizmente, no mundo feminino, a síndrome do impostor está presente, o que faz com que não se achem capazes de abraçar uma carreira ou mesmo boas o suficiente para as posições que ocupam”, pontua.

Tais questões culturais vazam para as relações no ambiente corporativo, refletindo da mesma forma os vieses e preconceitos que limitam o potencial feminino. “As empresas ainda falham em criar estruturas de retenção e ascensão de mulheres. Por exemplo, quando uma mulher engravida, muitas vezes a carreira dela pode parar, porque não há políticas que protejam esse ciclo natural. Se ela liderava uma equipe majoritariamente masculina, ao retornar da licença, encontra resistências e acaba saindo em pouco tempo”, exemplifica Amanda.

Para Luciana Lima, sócia executiva da A3Data, consultoria especializada em dados e inteligência artificial, a falta de confiança das mulheres também impacta sua progressão de carreira. “Parte do problema é estrutural: as mulheres têm maior dificuldade de se posicionar, de demonstrar e comunicar o valor do trabalho. Isso cria um represamento ao longo da carreira, que explica por que menos mulheres chegam a subir no palco de um evento ou a assumir uma cadeira de diretoria”, reflete.

Luciana Lima, sócia executiva da A3Data (Crédito: Divulgação)

Luciana Lima, sócia executiva da A3Data (Crédito: Divulgação)

IA no Brasil

Apesar de não ser um dos líderes globais no desenvolvimento de tecnologias de inteligência artificial, o Brasil apresenta um panorama promissor, com alto grau de adoção tanto pelas empresas quanto pelas pessoas.

“No Brasil, testemunhamos uma verdadeira corrida das organizações para implementar soluções de IA, impulsionada pelo recente boom. O país se destaca como um dos mais entusiasmados com o impacto da IA, com um em cada quatro brasileiros já percebendo que a tecnologia os auxilia a realizar tarefas de forma mais rápida e eficiente”, afirma Fernanda.

“O uso de inteligência artificial no Brasil tem crescido de forma acelerada, e o setor financeiro é um dos destaques. Embora o país ainda não esteja entre os maiores investidores globais em IA generativa, é o que apresenta a maior proporção de usuários que já declararam ter usado essa tecnologia. Isso mostra um mercado com alto potencial de adoção e inovação”, acrescenta Cintia Barcelos.

Entretanto, ainda existem desafios técnicos como a falta de profissionais especializados nessas tecnologias, mas, como pontua Graciano, o crescimento de data centers no país abre novas oportunidades para a área. “Isso pode reduzir nossa dependência tecnológica e nos colocar na vanguarda da criação de novas soluções”, complementa Amanda.

“Hoje, vejo mais uma janela de oportunidade do que liderança global. Comparando com países do sul global, como Índia ou China, ainda estamos atrás. Mas temos uma chance valiosa de investir em infraestrutura digital, governança e valorização da inteligência artificial em todos os aspectos”, conclui a especialista.

Impacto da IA para as mulheres

De acordo com um relatório da Unesco, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as IAs podem ter diferentes impactos na vida das mulheres. Desde a falta de acesso à internet e falta de habilidade digitais, até o reforço dos vieses e estereótipos de gênero propagados pelas ferramentas. Por isso, o mesmo estudo destaca pontos importantes para mitigar esses problemas, começando pela qualificação da mão de obra feminina e o incentivo de incluir mais mulheres nas áreas STEM.

“A busca pela equidade de gênero na tecnologia vai além da promoção de diversidade ou da busca por um percentual: ela é fundamental para termos uma IA ética e livre de vieses”, reforça Marisa.

“Quando trazemos mais mulheres para atuar no desenvolvimento de inteligência artificial, agregamos perspectivas únicas para a construção de sistemas inteligentes, enriquecemos os algoritmos à medida que questionamos vieses e avançamos com sistemas mais justos e inclusivos”, continua.

Marisa Reghini, vice-presidente de negócios digitais e tecnologia do Banco do Brasil (Crédito: Divulgação)

Marisa Reghini, vice-presidente de negócios digitais e tecnologia do Banco do Brasil (Crédito: Divulgação)

A diversidade não apenas ajuda a mitigar os vieses, mas também implica no desenvolvimento de soluções mais alinhadas às reais necessidades dos usuários e seus diversos perfis. “Mulheres trazem algumas perspectivas únicas, que ajudam a evitar vieses, ampliar a empatia nas soluções e garantir que a tecnologia reflita a pluralidade da sociedade. Equipes mais diversas tendem a criar soluções mais justas e representativas”, afirma Cintia.

“A presença de mulheres e qualquer forma de diversidade é fundamental para validar soluções, porque quando a gente fala de IA, existem vários níveis de maturidade. E aí você pode ter uma máquina tomando decisões, o que sempre envolve risco. Se o time não for diverso, a chance de não identificarmos todos os riscos é alta. Ter diversidade é essencial para testar soluções e entender se elas realmente são aderentes à sociedade e ao público-alvo impactado”, destaca Luciana Lima.

“Tem um caso antigo, de um produto feito para identificar se havia uma pessoa em vídeo. Ele foi testado na Europa apenas com pessoas brancas. Quando testaram em outros lugares, com pessoas negras, o produto falhou, porque o algoritmo não foi treinado para essas variações. A falta de diversidade no time fez com que ninguém pensasse nisso, e quando entrou em produção, o algoritmo simplesmente não funcionava. Isso é muito problemático”, exemplifica Luciana.

Além desses pontos, conforme analisa Amanda Graciano, a diversidade impulsiona a inovação. “Times com múltiplas perspectivas têm abordagens mais criativas e conseguem lidar melhor com a complexidade atual. Tenho muito receio de trabalhar com times homogêneos, mesmo que sejam todos mulheres ou todos negros. Times iguais não conseguem enxergar o problema de forma completa nem navegar na complexidade do mundo atual”, afirma.

A diversidade também gera empresas e times mais resilientes. “O mundo que temos pela frente é 100% complexo. Não existe a ideia de permanecer vinte anos na mesma posição; tudo muda rápido. Times diversos oferecem uma estabilidade momentânea que nos ajuda a lidar com essa complexidade. Times homogêneos, definitivamente, não sobrevivem a esse ritmo e tornam o trabalho mais angustiante”, continua Amanda.

Como aumentar a presença feminina

A sub-representação feminina no setor de tecnologia, especialmente em áreas de ponta como a inteligência artificial, é um desafio persistente. Especialistas e lideranças da área apontam que a mudança deste cenário exige uma estratégia multifacetada, que vai da base educacional à cultura corporativa, passando por processos seletivos inclusivos e políticas de permanência.

A aposta em educação e capacitação é unânime. “Para aumentar a presença feminina, as empresas devem focar em iniciativas internas, como a promoção de eventos e programas educacionais que fomentem o engajamento feminino desde as etapas mais básicas da formação”, destaca Fernanda.

Um exemplo é o programa Laboratoria, do Bradesco, que capacita mulheres para o mercado de TI e já impactou mais de 4 mil profissionais, das quais 100 foram contratadas pelo banco. O Banco do Brasil também já capacitou mais de 65 mil funcionários em dados e IA, e agora foca no desenvolvimento de lideranças, com o programa Líder Digital.

Dando um passo para trás, as especialistas apontam a necessidade de revisar os processos seletivos para que sejam mais inclusivos. “Hoje, quando falamos de contratação, como buscamos profissionais do gênero feminino para o time de tecnologia? Trata-se de dar a oportunidade para que elas participem do processo seletivo, porque muitas vezes isso nem acontece. Então, primeiro, começa pela empresa: ter processos de contratação abrangentes e diversos”, pontua Bárbara Vallim.

Bárbara Vallim, cofundadora e CEO da Hera.Build (Crédito: Divulgação)

Bárbara Vallim, cofundadora e CEO da Hera.Build (Crédito: Divulgação)

Para Fernanda, as mulheres precisam ser encorajadas a se candidatar para as oportunidades, mesmo quando têm dúvidas se preenchem todos os requisitos, e que elas aprendam a praticar a autopromoção. Além disso, Luciana destaca a importância de ter mais mulheres em posições de liderança para que outras consigam se espelhar e almejar alcançar tais postos.

A liderança tem um papel central nessa transformação. Amanda Graciano é enfática: “Mudanças estruturais e culturais nas organizações são top-down. Cabe às lideranças, conselhos administrativos e consultivos definirem a estratégia e implementá-la junto ao restante da organização”, afirma.

Bárbara complementa: “A liderança precisa pavimentar esse espaço, conscientizar colaboradores e criar uma cultura de inclusão e diversidade, não apenas pontual, mas constante. E isso vale para toda a empresa, não só para tecnologia ou IA”.

Além disso, a CTO destaca que as metas de inclusão são um passo essencial para o avanço da representatividade feminina. “Hoje, 50% do nosso quadro funcional é composto por mulheres, ou seja, são mais de 41 mil colaboradoras. Na área de STEM, 30% das cadeiras são delas, e temos metas claras para ampliar essa presença, inclusive em posições de liderança”, diz.

Consequentemente, a cultura organizacional também é fundamental para a retenção desses talentos femininos, o que perpassa por instituir políticas de permanência. “Hoje, muitas vezes elas são expulsas do mercado por cultura organizacional, falta de políticas contra assédio, ausência de benefícios que considerem suas responsabilidades parentais ou familiares, e necessidades de saúde mental”, ressalta Amanda.

Para Marisa Reghini, o momento atual é único. “A IA chegou como uma novidade e estamos em pé de igualdade no que se refere a essa tecnologia. Independentemente de gênero, área de formação ou de atuação, todos estamos aprendendo juntos, o que nivela o ponto de partida e as empresas devem investir nisso. Essa é uma oportunidade valiosa para trazer pessoas diversas para o desenvolvimento dos códigos, quebrando barreiras que antes pareciam intransponíveis quando nos referimos à diversidade no mercado de TI”, conclui a VP.