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Temas complexos tratados sem eufemismos

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Cannes Lions

17 a 21 de junho de 2024 | Cannes - França
Cannes

Temas complexos tratados sem eufemismos

Assuntos da pauta ESG, como emergência climática e diversidade e inclusão, chegaram aos seminários do Cannes Lions este ano de forma dura e direta


18 de junho de 2024 - 6h01

Três painéis em horários próximos trouxeram pautas da agenda ESG logo no início dos seminários do Cannes Lions 2024. Nenhum deles estava exatamente lotado, como costumam ser aqueles com a presença de celebridades, o que indica que ainda há muito a ser feito nessas agendas.

Duncan Meisel, diretor-executivo da Clean Creatives, grupo de criativos e profissionais de relações públicas que lutam para que empresas do segmento não trabalhem com clientes que sejam empresas poluidoras, foi ao mesmo tempo provocativo e propositivo, ao falar sobre “Quatro super tendências que irão modelar o futuro da criatividade”.

Duncan Meisel trouxe dados para mostrar que petroleiras têm mentido em suas ações publicitárias (Crédito: Roseani Rocha)

Crescido no Texas, nos EUA, o executivo começou lembrando que o estado é sempre associado a calor e a combustíveis fósseis e gás, propagandeados como uma fonte infinita de receita. Mas as mudanças climáticas estão mudando a forma como as pessoas vivem e os passos que a indústria da comunicação devem tomar, num caminho agora mais difícil e mais perigoso.

Segundo Meisel, as quatro supertrends são: disrupção climática, cultura, tecnologia e litígio. Ele enfatizou que embora muita gente fale por alto sobre mudança climática, muitos ainda não perceberam que os eventos climáticos extremos já estão acontecendo e têm afetado, atualmente, 1,2 bilhão de pessoas. E pontuou que três quartos da poluição por carbono vêm do setor de energia. Além disso, 8,7 milhões de mortes por ano, em sua maioria por doenças pulmonares, são associadas à poluição do ar causada pelos combustíveis fósseis. Apesar disso, os países e empresas que têm grandes marcas desse setor não pretendem diminuir, mas aumentar sua comercialização, de acordo com informações que divulgam a investidores e reguladores.

Segundo ele, a própria indústria de petróleo sabe, desde o final da década de 1960, os problemas que causa, mas não muda. A BP (British Petroleum), por exemplo, no final dos anos 1970 já teria previsto inundações mais intensas afetando países como Bangladesh. Entre as consequências, disse, já existem seguradoras, hoje, que estão deixando de fazer seu trabalho em regiões frequentemente impactadas por desastres ambientais.

Nos EUA, a mudança climática custaria para cada pessoa nascida US$ 500 mil, cerca de US$ 125 mil, estariam ligados a moradia e custos de propriedade, US$ 92 mil, de energia; US$ 33 mil, do aumento dos preços dos alimentos; US$ 25 mil por perda de renda como consequência das ameaças climáticas; US$ 200 mil por recuperação de desastres (algo que, no Brasil, o estado do Rio Grande do Sul já está vivendo na pele neste momento, embora essa não tenha sido uma observação do palestrante).

A segunda tendência é a mudança de cultura, fazendo com que cada geração mais nova se sinta mais preocupada com um problema que torna a vida de todos “mais miserável” e aumenta até as turbulências aéreas. Segundo ele, millenials e GenZ estão mais propensos que gerações X e boomers a “tomar mudança climática como uma preocupação pessoal; tomar atitude pessoalmente para interromper o processo; falar sobre o problema; engajar no assunto em redes sociais para alertar sobre a necessidade de mudanças; favorecer carros não movidos a combustíveis fósseis; se opor a novos desenvolvimentos baseados em petróleo”.

Na terceira tendência, Meisel acredita que a tecnologia limpa está pressionando a indústria fóssil e fazendo com que esta última reduza mais rapidamente que o previsto. “Em 2023, mais carros elétricos foram vendidos por semana que todo o número anual, na última década”, disse. O problema é que o planeta já não tem todo o tempo que transições energéticas anteriores tiveram para acontecer. Ainda assim, no lado otimista, lembrou também que um terço das duas mil maiores empresas do mundo tinham planos net-zero e, agora, a metade delas tem. Por fim, ele exaltou o fato de que já existem mais de 1,8 mil processos contra empresas de petróleo por informações enganosas divulgadas. Embora muitas tenham até em 80% de seus conteúdos (caso da Chevron), mensagens usando termos como sustentabilidade etc, elas investem apenas 1% dos seus orçamentos em energia renovável, ou seja, mentem descaradamente. E esse cenário de brigas litigiosas também poderá, no futuro breve, comprometer as agências que atendem tais empresas, conformem crescem as regulações e fiscalização sobre o chamado greenwashing.  Com isso, Meisel defendeu que as agências tomem três medidas principais: tenham um plano para não trabalhar para poluidores do segmento (e anunciantes de outros segmentos que se importem com o futuro do planeta também parem de trabalhar com agências que continuem atendendo tais contas); teçam parcerias, porque ninguém precisa ou consegue fazer tudo sozinhos; e, por fim, recomendou que “ouçam seus times e construam com eles”.

Diversidade e inclusão em profundidade

Fundadora do Muslim Girls defende representatividade mais profunda que apenas fotos numa campanha (Crédito: Roseani Rocha)

Amani Al-Khatahtbeh, fundadora do projeto Muslim Girls (Garotas Muçulmanas), de cara, explicitou o desejo de que sua audiência no Cannes Lions fosse a de profissionais que iriam elevar a barra sobre o que se faz e diz em diversidade e inclusão (D&I). Lembrou que seu projeto surgiu por conta da falta de representação de pessoas como ela ou, mais que isso, por representações erradas da mídia, baseadas em estereótipos. “Muitas políticas afetam nossa comunidade marginalizada e reconstruir a forma como as garotas muçulmanas e outras pessoas marginalizadas são representadas não é só mostrar numa campanha, mas ouvir realmente sobre quem são. É mais profundo do que apenas se ver numa campanha”, disse.

Contundente em suas opiniões, afirmou que projetos de genocídio não são possíveis sem a mídia. “E se você ocupa um espaço na mídia e na publicidade será como cúmplice ou desafiante? Quero que todos sejam desafiantes”, disparou.

Ela contou que quando, até pouco tempo, em suas palestras pedia que as pessoas pesquisassem no Google o termo “muslim women” o que aparecia eram mulheres todas iguais, usando hijabs, parecendo deprimidas e/ou oprimidas. E esse foi o ponto de partida para um projeto bem-sucedido com a Stock Photos para trazer novas formas de representação, uma vez que as imagens digitais são muito definidoras de cultura na era digital. Outra parceria foi com uma linha de esmaltes da marca californiana Orly, que apresentava as mulheres islâmicas também de uma forma diferente dos padrões estereotipados.

Amani também ressaltou com números da McKinsey, as mudanças de comportamento da geração Z: 90% acham que empresas têm responsabilidade de assumir uma posição em questões de D&I e 48% desafiam o peso da inflação em suas contas para apoiar marcas que consideram autênticas.

Ao final, lembrou dados de quedas de valor que empresas como Starbucks e McDonald’s tiveram em momentos recentes nos quais não tomaram uma posição quando deveriam e ressaltou que “Não existem pessoas que não têm voz, mas pessoas que são silenciadas. Permitam que elas falem por elas mesmas. Façam história”, concluiu, usando o mote do Cannes Lions à comunidade criativa: “Make history”.

Todos somos imigrantes

Da esq. para a direita, a moderadora Julia Hood, a cineasta Agnieszka Holland, a ativista Jana Shostak e o executivo da Mastercard, Jerzy Holub (Crédito: Roseani Rocha)

Num contexto em que guerra e mudanças climáticas têm provocado imigrações em massa, a Polônia foi o país que mais recebeu refugiados na guerra da Ucrânia, com 10% da população, hoje, de ucranianos. O painel que reuniu a cineasta Agnieszka Holland, diretora do filme The Green Border, que fala sobre tragédias enfrentadas por refugiados, a ativista Jana Shostak e o vice-presidente de marketing e comunicações da Mastercard, Jerzy Holub, discutiram sobre como a publicidade pode encontrar soluções para essa questão global. O executivo, naquele país, implementou o programa “Where To Settle”, que ajudou milhares de refugiados a se estabelecerem na Polônia.

A conversa entre eles foi moderada por Juia Hood, editora executiva da Business Insider. O executivo da Mastercard disse que ser um europeu do leste é algo que envolve questões de confiança – ou da falta dela – em seus governos e instituições. E não acreditar muito em soluções institucionais do problema. “Sabemos que para resolver problemas, temos que assumir nossa vida e vir com soluções criativas”, disse.

Já a jovem ativista bielo-russa e polonesa, crítica da própria Polônia, no que diz respeito aos direitos das mulheres, propôs, recentemente, um minuto não de silêncio, mas de gritos pelas mulheres, pela Ucrânia e pelos palestinos. E é esse tipo de ação criativa que ela usa para chamar atenção a temas sobre migração.

Agnieszka, que terá seu filme lançado nos EUA no fim deste mês, disse ter tradição de falar sobre assuntos controversos, desde que era adolescente comunista na Polônia, tendo na mãe uma polonesa católica e um pai que faleceu no holocausto. Tudo isso, disse, são  paradoxos de sua história que a tornaram sensível ao perigo iminente da humanidade: repetir crimes contra a humanidade.

Para ela, isso está acontecendo agora, com crescimento do populismo no mundo, que não tem sido capaz de lidar com a imigração, que talvez seja o maior problema relacionado a isso no momento. Para ela, a Europa, hoje, muito frágil, tem dois significados. Ao mesmo tempo que é o continente da democracia, liberdade, igualdade e direitos humanos, também é o lugar onde aconteceram os maiores massacres humanos da história. “Tudo começa com discriminação. E essa é uma dualidade sobre a qual sou destinada a falar”, disse. Uma vez que se define uma contadora de história, disse acreditar nas imagens não apenas como entretenimento ou curiosidade: “Tento ser complexa, honesta intelectual e artisticamente”.

Para a cineasta não faltam recursos para ajudar os outros, mas vontade. E se um filme não pode mudar uma guerra, ao menos pode mudar o mundo de quem assistiu, celebra. Ao mesmo tempo, enfatizou que a fase romântica da publicidade, em campanhas como a da Benneton, que exaltavam pontos em comum acima das diferenças humanas está longe da realidade atual de medos e violência.

De toda forma, há formas possíveis de lidar com a realidade. Jana lembrou Hanna Arendt, que, numa visão mais humana, preferia usar o termo “new commers” (algo como recém-chegados) que refugiados. Já o executivo da Mastercard, ao responder sobre o papel delicado das marcas em lidar com questões complexas foi categórico: “Não calcule o risco de fazer a coisa certa”.

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