Maximídia

Os impactos da IA como terapia na era da epidemia da solidão

João Archegas, do ITS Rio, Juliana Velozo, da Thoughtworks, e Rafael Silva, da Box1824, falaram sobre os riscos do uso de IA como terapia e o que as marcas podem fazer para amenizá-los

i 30 de setembro de 2025 - 16h55

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João Archegas, do ITS Rio, Juliana Velozo, da Thoughtworks, e Rafael Silva, da Box1824 no palco do Maximídia 2025 (Crédito: Edu Lopes/Máquina da Foto)

No Brasil, aproximadamente 12 milhões de pessoas já usam a inteligência artificial para fazer terapia, segundo dados de estudo publicado pela Talk Inc, empresa de pesquisa especializada em comportamento.

Globalmente, esse cenário não é diferente, inclusive, um estudo da Harvard Business Review revelou que terapia e companhia têm sido as funções mais atribuídas aos modelos de linguagem de IA generativa em 2025.

Rafael Silva, strategy & trends director da Box1824, alertou para como a inteligência artificial tem se tornado um tecido invisível que está mediando a internet como um todo, trazendo uma espécie de conforto e um viés de confirmação que muitas vezes não é encontrado em outro lugar. “É um reflexo de quanto estamos fragilizados e quando precisamos cada vez mais não só de confirmação, mas de um certo acalanto”, complementou.

No entanto, isso tem se tornado um problema grave para a sociedade como um todo. Há pouco mais de um mês, os pais do adolescente Adam Raine processaram a OpenAI, dona da plataforma de IA, após o garoto de 16 anos ter tirado a própria vida depois de conversar por meses sobre o assunto com o ChatGPT.

A vice-presidente sênior Latam da Thoughtworks, Juliana Velozo, enfatizou a importância de voltarmos para o fundamento do processo terapêutico, que envolve fazer perguntas pra levar os pacientes ao autoconhecimento e não somente dar respostas prontas, como ChatGPT e outras ferramentas de inteligência artificial têm feito. “O problema não é ele estar errado, mas te convencer que está certo”.

Assim como quase todas as inovações tecnológicas, outro problema é que essas ferramentas estão sendo desenvolvidas à medida em que estão sendo utilizadas. “Somos cobaias”, frisou Juliana. Inclusive, a executiva destacou a demora do ChatGPT em lançar sua ferramenta de controle parental, que aconteceu somente nesta segunda-feira, 29, mais de dois anos depois da popularização da plataforma.

“Até o momento o que conseguimos fazer é nos afastarmos um pouco dessa visão de só absorver o conteúdo e não refletir sobre a complexidade que é ser ser humano”, aconselhou Juliana.

Epidemia da solidão

Todo esse contexto envolvendo a inteligência artificial e seu uso indevido como terapia é agravado, principalmente, pelo momento em que a sociedade está vivendo a chamada “epidemia da solidão”.

João Archegas, coordenador do ITS Rio e professor de Direito da FAE, alertou ainda que 23% da população global se sente solitária e que, pela primeira vez na história, jovens de 18 a 20 anos se sentem mais solitários do que idosos de 70 a 80 anos, e que essa população mais jovem procura ajuda nesses modelos de IA, que são treinados enquanto produtos para falar o que as pessoas querem ouvir. “Terapia não é ouvir o que você quer, terapia é ouvir o que você precisa ouvir”, frisou.

Neste sentido, Juliana ressaltou que a maioria das pessoas que usam inteligência artificial como terapia acham que a ferramenta é mais empática, mesmo com a tecnologia não sendo capaz de ser empática por definição. “Empatia é: eu valido o seu sentimento, mas talvez o fale algo que não vai gostar, porque realmente estou querendo o seu bem”.

Epidemia do cinismo

Uma série de fatores culturais, sociais e econômicos podem ter levado a sociedade para este cenário, porém, uma situação excepcional parece ter fomentado ainda mais esse contexto: a pandemia de Covid-19.

Na visão de Silva, mesmo após o fim da pandemia, a sociedade continuou enfrentando outras crises que fogem de seu controle, como guerras e disputas tarifárias, o que acabou gerando traumas constantes nas pessoas. “E o que eu começo a fazer para fugir desses traumas é buscar aquele conforto”, pontuou.

Para escapar desses traumas, as pessoas passaram a recorrer muito mais a conteúdos com viés dopaminérgico, que acabam distanciando-as da realidade e anestesiando sentimentos.

Para Silva, além da epidemia da solidão, existe a epidemia do cinismo, que faz com que as pessoas estejam cada vez mais anestesiadas. “As marcas têm gerado, inclusive, nas pessoas anestesia. Não existe mais love brands ou pessoas que amem, de fato, as marcas”, argumentou. Na sua visão, os seres humanos querem voltar a sentir, mas a tecnologia, as marcas e o modelo como é operado hoje provocam, cada vez mais, a culpabilização do indivíduo.

Atualmente, questões complexas da existência humana, como a solidão são tratadas erroneamente, segundo Juliana, como problemas a serem resolvidos rapidamente, quando, na verdade, deveriam ser vistos como paradoxos a serem gerenciados ao longo do tempo.

Juliana reconhece que as diferenças de classes sociais afetam essa busca por terapias e ferramentas que possam ajudar as pessoas a gerenciar essas complexidades. “Devemos nos unir muito nessa questão de: não é uma corrida, uma maratona, é um processo de se entender, de absorver”, enfatizou.

Com relação à tecnologia, a executiva destacou outra preocupação pouco falada, a de que a tecnologia não é neutra, pelo contrário, carrega vieses de seus desenvolvedores, que em sua maioria são homens brancos americanos. “Precisamos ser muito intencionais, ter vagas afirmativas, ter desenvolvimento para diferentes gêneros e classes sociais”, argumentou.

Intimidade artificial

Outra preocupação desse panorama é a falsa percepção de conexão que é gerada pelo uso de tecnologias digitais. Esther Perel, psicoterapeuta, autora e podcaster, chama isso de Intimidade Artificial. “É criado uma espécie de simulacro de intimidade e empatia no uso de tecnologia, porque você está ouvindo o eco da sua própria voz”, pontuou Archegas.

O professor de direito enfatizou ainda que o isso se agrava em relação aos mais jovens, uma vez que têm preferido se comunicar por texto ou áudio, evitando chamadas de vídeo e reuniões presenciais, por se sentirem mais vulneráveis.

“Por isso intimidade artificial, você se sente acolhido, mas esse acolhimento é falso”, alertou, reforçando que no final do dia os modelos de IA estão somente tentando vender um produto, um serviço. Por isso, para Archegas, o primeiro passo ao se falar de regulamentação e governança deve passar por trazer transparência para essa relação.

Da era da atenção à era da intenção

Quando se trata de relação entre as marcas e o público consumidor, as pessoas estão buscando cada vez mais hiper conveniência, de acordo com Silva. Neste contexto, para o executivo da Box1824, as marcas estão criando pequenos monstros, uma vez que se tornou impossível oferecer a quantidade de conteúdo que as pessoas querem consumir.

“Só pensamos em criar conteúdo par alimentar os feeds e fazer com que as pessoas fiquem mais tempo nas plataformas”, afirmou o executivo. Logo a economia da atenção com vídeos de cinco segundos tem feito os consumidores priorizarem sensações momentâneas frente às marcas em si.

“Faço um convite às marcas construírem de fato marcas intencionais, é sair da era da atenção e ir para a era da intenção”, fortaleceu. Para ele, as marcas precisam transmitir três elementos principais aos consumidores: confiança, agência (poder de escolha) e sentido (propósito real de engajamento).