Jessica Paula e as muletas viajantes: desafiando os limites da vida com deficiência
Criadora do Passaporte Acessível e primeira paraplégica a escalar o Pão de Açúcar deseja mostrar que PCDs têm direito à liberdade de explorar o mundo
Jessica Paula e as muletas viajantes: desafiando os limites da vida com deficiência
BuscarCriadora do Passaporte Acessível e primeira paraplégica a escalar o Pão de Açúcar deseja mostrar que PCDs têm direito à liberdade de explorar o mundo
Lidia Capitani
18 de setembro de 2023 - 12h47
Um par de muletas, 35 países e mais de 200 mil quilômetros percorridos. A história de Jessica Paula não começou quando ela ficou paraplégica aos seis anos, e sim quando ela tomou coragem para desafiar o capacitismo. Ela é fundadora do Passaporte Acessível, produtora de conteúdo focada em inspirar pessoas a conhecerem novos lugares. Em seu projeto atual, chamado “Sete Elementos”, a jornalista de formação atravessou os Lençóis Maranhenses a pé numa viagem de três dias. Já em sua mais recente aventura, foi a primeira paraplégica a escalar o Pão de Açúcar.
Nesta entrevista ao Women To Watch, Jessica Paula conta sua história pessoal, como surgiu o Passaporte Acessível e claro, sua experiência desafiando o cartão postal carioca. Ela destaca que sua deficiência é apenas uma parte da sua identidade. Com os atravessamentos da homossexualidade, do TDAH, a origem humilde e sendo empreendedora, Jessica Paula não se deixa limitar por categorias e desafia qualquer noção do que é impossível.
Poderia começar contando a história de como você se tornou paraplégica e como foi sua adaptação?
Aos seis anos, desenvolvi uma deficiência física por causa de uma mielite aguda. Na verdade, tudo começou com uma infecção na garganta que acabou afetando a minha medula espinhal. Nasci no interior de Goiás, em Rio Verde, e minha família e eu passamos por um longo processo para entender o que havia acontecido para finalmente obter o diagnóstico correto.
Minha jornada de adaptação foi longa e desafiadora. Eu tive que reaprender a fazer tudo, desde engatinhar até sentar. Primeiro com apoio e depois sem ele, até chegar ao ponto de usar as muletas que utilizo hoje. Ao longo do tempo, experimentei diferentes dispositivos de mobilidade, incluindo cadeira de rodas, andador e muletas comuns, até que aos 14 anos encontrei o modelo de muleta canadense que uso atualmente. Isso foi um marco significativo na minha jornada com a deficiência, porque ela me permitiu viajar pelo mundo.
Em seu livro “Estamos Aqui”, você documentou os conflitos armados na África e foi a primeira jornalista paraplégica do Brasil a cobrir uma zona de conflito. Como foi essa experiência?
Minha curiosidade de explorar o mundo sempre fez parte de quem sou, independentemente da minha deficiência. Inicialmente, deixei minha cidade natal em Goiás para estudar na Universidade de Brasília e, em seguida, busquei oportunidades de estudos no exterior. Essa minha paixão me levou a embarcar numa viagem de dois meses pela Etiópia, Sudão, Sudão do Sul e Uganda que viraram a primeira versão do meu livro como parte do meu trabalho de conclusão de curso da faculdade. Posteriormente, ele foi publicado e acabou se tornando um projeto maior.
No entanto, percebi que, ao explorar essas outras realidades, eu estava evitando falar sobre minha própria deficiência. Com o tempo, comecei a dar palestras para compartilhar essas histórias e falar sobre acessibilidade e diversidade. Embora eu ainda aborde outras questões sociais em alguns projetos, minha principal área de atuação hoje é a deficiência e acessibilidade.
Qual foi a motivação para iniciar o Passaporte Acessível e como ele surgiu?
Quando comecei a compartilhar minhas viagens nas redes sociais, percebi uma grande receptividade de pessoas em busca de referências. Pessoas com deficiência, como eu, enfrentam uma carência de representatividade em nossa geração. Minha única referência pessoal era Flávia Cintra, uma jornalista cadeirante do Fantástico. No entanto, percebi que outras pessoas com deficiência compartilhavam da mesma necessidade de ver alguém mostrando como é viver com uma deficiência, especialmente viajar e demonstrar que há possibilidades além de ficar em casa.
É fundamental destacar que a deficiência não é sinônimo de doença, mas a sociedade frequentemente nos enxerga como dependentes de cuidados constantes, o que não é a realidade da maioria de nós. Minha missão principal agora é mostrar que as pessoas com deficiência têm direito à liberdade de explorar o mundo.
O Passaporte Acessível se transformou em uma produtora de conteúdo focada em acessibilidade. Minha abordagem se concentra em desafiar estereótipos e crenças negativas sobre as capacidades das pessoas com deficiência. Mesmo após anos de trabalho, ainda ouço frequentemente que certas atividades não são possíveis para mim. No entanto, minha determinação me levou a questionar essas limitações ao longo da vida. Minha missão é não apenas inspirar pessoas com deficiência a acreditar em suas próprias capacidades, mas também educar aqueles que não vivem com deficiência sobre a importância da inclusão e a necessidade de combater o capacitismo, que é o preconceito contra pessoas com deficiência.
Você também foi a primeira paraplégica a escalar o Pão de Açúcar. Como foi a preparação para essa aventura e a experiência em si?
O Pão de Açúcar faz parte do meu projeto chamado “Sete Elementos”, uma série de vídeos onde desafio os sete elementos da natureza em contextos nos quais muitas pessoas disseram que, devido à minha condição física, eu não conseguiria. No caso do Pão de Açúcar, estava determinado a gravar o elemento “rocha” e comecei a procurar lugares para escalar. Notei que muitas pessoas escalavam o Pão de Açúcar, e algumas partes, mesmo para iniciantes, pareciam acessíveis. No entanto, quando consultei vários instrutores de escalada, a maioria afirmou que seria impossível escalar o Pão de Açúcar sendo paraplégica.
Essa resistência se tornou minha maior motivação para concluir o projeto. Meu primeiro desafio foi encontrar um profissional que acreditasse na possibilidade, o que não foi fácil. Ser a primeira pessoa com paraplegia a tentar essa escalada representou um desafio adicional. A escalada durou oito horas e acabou sendo mais difícil do que eu imaginava, principalmente devido à falta de referências.
Em certos momentos da subida, precisei me apoiar nos ombros dos guias, nos joelhos, tornozelos e até mesmo nas árvores, às vezes me arrastando no chão. Subi quase 400 metros de altitude inteiramente com os braços. Antes da escalada, tive um mês e meio de intensa preparação, embora o ideal fossem três meses, de acordo com um personal trainer especializado em pessoas com deficiência que me auxiliou. Além disso, fiz quiropraxia para lidar com dores e manter a postura adequada.
Hoje, quando vejo a imagem imponente do Pão de Açúcar, mal posso acreditar que realizei essa façanha inteiramente com meus braços. Mesmo com arranhões e machucados, essas marcas não trouxeram dor, mas sim um imenso sentimento de prazer e realização. Eu não inicio estes desafios com a promessa de sucesso, mas eu me dou o direito à tentativa. Uma das principais batalhas que enfrento é a ideia de que as pessoas com deficiência nem mesmo têm o direito de tentar antes de serem descartadas como incapazes.
A escalada não envolveu apenas o desafio físico, mas eu também desempenhei uma série de funções como produtora executiva, diretora de produção, diretora, roteirista e responsável pela área comercial. Além de tudo, eu sou a apresentadora e a atleta. A equipe cresceu rapidamente, passando de quatro pessoas para 40 pessoas. Neste mesmo projeto do “Sete Elementos”, também realizei a travessia dos Lençóis Maranhenses a pé, uma caminhada de três dias sobre as dunas que totalizou 40 quilômetros.
Tem alguma pergunta que você gostaria de responder, mas nunca te perguntaram?
O aspecto fundamental que desejo enfatizar é a multiplicidade de papéis e desafios que enfrentamos na vida. Além de minha deficiência física, sou uma mulher homoafetiva e cresci com poucos privilégios e escassas oportunidades no interior de Goiás. Além disso, tenho Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e sou empreendedora autônoma no Brasil, o que apresenta outros desafios. Acho essencial compreender que a deficiência é apenas um dos muitos elementos que moldam a minha identidade.
Na verdade, não posso separar completamente esses contextos, pois todos fazem parte de quem sou. No entanto, vejo meu trabalho como uma realização notável, considerando todas essas circunstâncias. Isso pode inspirar outras pessoas que enfrentam desafios semelhantes, pois muitas vezes as pessoas tentam encontrar justificativas ou desqualificar nossas conquistas devido a preconceitos ou estereótipos. É importante destacar que nossa identidade e experiência não se limitam à deficiência, pois sempre há uma complexidade de elementos em jogo. Essa perspectiva nos ajuda a valorizar e apreciar nossas conquistas, além de tornar nossas histórias ainda mais ricas e inspiradoras.
Compartilhe
Veja também
Como as mulheres estão moldando o mercado dos games
Lideranças femininas de diferentes players falam sobre suas trajetórias profissionais na indústria
Como Rita Lobo fez do Panelinha um negócio multiplataforma
Prestes a completar 25 anos à frente do projeto e com nova ação no TikTok, a chef, autora e empresária revela os desafios de levar comida de verdade dos livros de receitas para outros espaços